segunda-feira, 8 de julho de 2013

PATRIMÓNIO DA DESUMANIDADE





 São 10h00, nesta segunda-feira dia de todos os homens, acabadinhas de bater na torre sineira da vetusta Igreja de Santa Cruz. A Praça 8 de Maio, onde está implantado este templo construído no princípio da nacionalidade e edifício arquitectónico dos mais importantes de Coimbra, está a começar a espreguiçar-se e a abalançar-se para o começo de um novo dia. O Sol, luz ante luz, vai crescendo a abocanhar todos os recantos ensombrados. 
Como malandro que usa e abusa do aforismo “vale mais quem Deus ajuda do que quem muito madruga”, esta parte da cidade começa a trabalhar tarde e vai para a cama cedo, como as galinhas. O movimento de passantes é ainda incipiente. Como é hábito, os poluidores de esquinas e do chão com cascas de amendoim, trabalhadores incansáveis, são os primeiros a assentar arraiais no antigo adro. Um velho comerciante, passa em frente à catedral. Pára por segundos, faz o sinal da cruz e, hesitante entre penetrar na casa de Deus e Panteão Nacional sarcófago dos nossos primeiros Reis ou continuar em peregrinação para a sua loja a acreditar num bom negócio -que há-de surgir como milagre, se Deus Nosso Senhor quiser-, acaba a prosseguir o seu caminho. É possível que a sua escolha na vontade não fosse feita totalmente de forma racional. Provavelmente o grande furgon, de cor amarela das batatas fritas Lay’s, que, em presuntiva provocação ambiental, estava estacionado em frente e assombrava a reputação e quietude do memorial histórico, tivesse responsabilidade na opção do reputado homem de negócio. Mas também não ligou muito ao monstro de ferro que de forma abusiva e intrusiva barrava o seu olhar. Comerciante, mesmo com disponibilidade, agora mais do que nunca, não tem vagar para pensar em mais nada a não ser na sua salvação; a profissional, na razão de que está cada vez mais difícil aguentar; a terrena, porque o tempo já escasseia e está no epílogo da vida; e a eterna, porque, vale mais acautelar, não vá depois o Criador, como juiz parcial e tendencioso, ajustar contas e levar à letra tudo o que de menos bom se fez por cá.
Nas ruas estreitas o lixo, como monumento ao desperdício, apatia e deixa correr de um citadino e parte de um povo que não tem emenda a não ser pela coima, amontoa-se em tudo quanto é ruela, beco e viela estreita. Incluindo os mandatados para a responsabilidade da função, poucos se importam com esta afronta visual. Num estranho serviço, quase em contraposição, o Abílio, funcionário camarário, como jumento que puxa uma carroça, está feito um humano transformado em máquina que se limita a fazer a sua programação diária. Num barulho prolongado, de zooonnn, arrasta o enorme aspirador em busca de beatas e papelinhos deixados por transeuntes mal formados e sem educação que ninguém em tempo útil ensinou e agora já é tarde. Disto tudo, deste marasmo conspirativo, não se sabe o que pensará o funcionário desta surpreendente função de recolher partículas no chão da calçada quando está rodeado de entulho grosso abandonado –e será que a maioria admite que o homem que recolhe lixo até pensa como gente? Nesta sociedade formada por estereótipos e quadros discriminatórios lá imaginará que o Abílio, para além da sua função rotineira, também tem cérebro e vida como qualquer um de nós? Para muitos, uma pessoa apenas vale pela gravata que usa e pelo lugar estatutário que ocupa. É assim como avaliar um livro, na sua história e escrita, pelo nome sonante do autor e pela capa.
Mas, agora me lembro, eu estava a escrever sobre a Baixa e a sua recente classificação de material Património Mundial. Porque será que descambei na imaterial desumanidade? Nem sei bem. Às tantas, estes mentais desvios disfuncionais terão a ver com a vaga de calor que nos assola. É a canícula! É a canícula!


1 comentário:

Anónimo disse...

Boa tarde amigo Luis, por acaso hoje pelas 8 da manhã fotografei a baixa de Coimbra cheia de lixo, mas pior do que às 8 da manhã é que pelas 13h30 horas estava tudo na mesma mas incluindo cheiro a lixo que não se aguenta.Mas a Rua da Sofia não tinha lixo pelas 8 da manhã nem pelas 13h40. A baixa e baixinha é a Capital do Lixo acumulado.

Jorge Neves

Vogal Independente na Freguesia de São Bartolomeu