quinta-feira, 12 de outubro de 2017

UM QUASE ACIDENTE, QUASE QUASE, NA RUA EDUARDO COELHO





Seriam para aí umas 15h00 de hoje na torre sineira da Igreja de São Bartolomeu. Apesar do dia estar a meio, o silêncio sepulcral na Rua Eduardo Coelho era apenas quebrado pelo abrir de portas de uma ou outra loja mais tradicional que ainda segue a cartilha universal dos velhos costumes, ou pelo bocejar de um outro comerciante que, fazendo contas ao dia, se sentia molengão e ensonado. Nos beirais, por cima e onde o olhar se perde a caminho do céu e em direcção aos santos milagreiros, os pombos, uns numa merecida sesta, outros a catar a pulga no penacho, outros ainda a ensaiar uma descarga de dejectos para cima do primeiro papalvo que se colocasse a jeito, tomavam banhos secos.
Sem nada premeditado para abalar a pacatez de uma ruela simples e modesta como modestos são os lugares singelos, foi então que a meio da antiga rua dos sapateiros, com frente para a artéria das mulheres que outrora cozinhavam pão e ali vendiam como tremoços, alguém ouviu dois homens, um invisual e outro quase cego de braço dado, depois de atestar e ligarem os motores de arranque, a dirigirem-se a pé, em correria, para o Largo do Poço. Diz quem viu que a velocidade naquele curto troço de calçada praticada pelos dois, cego e quase cego, estaria muito próxima dos 100 à hora, isto, claro está, numa zona de trânsito condicionado e onde a calma marca a hora e a quilometragem não deve exceder os 20. Para complicar a coisa, diz quem viu, ao que parece os dois condutores de si mesmo -ou melhor, o menos cego que pilotava o mais cego- presumidamente levavam um grão na asa, como quem diz, excesso de álcool no sangue -sublinho o “presumidamente” porque não se realizaram exames toxicológicos. Numa aritmética simples, está de ver que juntando as duas premissas, excesso de velocidade e mais álcool, o resultado da adição é igual a acidente. E foi mesmo o que aconteceu. Ouvindo-se o ribombar de vidros, o plim pim pim de objectos a beijarem as pedras, o som oco de dois corpos embarrilados a caírem no asfalto sem protecção, e toda a gente veio espreitar para ver o que estava a acontecer. Teria um qualquer santo caído lá de cima e vindo aos trambolhões por aí abaixo? Ter-se-á questionado em solilóquio.
Os sonâmbulos acordaram de repente, os pombos, alvoraçados pelo susto, levantaram voo e procuraram novo abrigo mais pacífico, o dono da loja, perante os estragos, alegadamente arranhou na cabeça e teria proclamado: “o que é que eu faço com isto?
Como conheço bem o lesado e afirmo ser uma pessoa de bem, de boa paz com o mundo e de muito respeito alheio, como não falei sobre a avaliação dos danos nem na vontade a seguir, adivinho que está tudo perdoado e nada vai ser alterado. Ou seja, a Rua Eduardo Coelho vai continuar na modorra habitual, os dois cegos vão continuar desiguais, um mais cego do que o outro, a tasca da zona vai seguir o mesmo ritmo na venda de tintolas de fazer estalar a língua, os mercadores vão continuar às portas de olho meio-aberto, meio-fechado, e o dia, inevitavelmente, caminhará para o seu fim. Valha-nos Santa Engrácia, protectora dos acasos que quebram as rotinas da cidade.




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