(IMAGEM DA WEB)
Depois de ter falado com o meu namorado e ele me ter interrogado acerca do que é que eu queria fazer, tomei a decisão de abortar. Poderia eu tomar outra decisão? Estou a trabalhar há cinco anos a recibo verde; vivo em casa dos meus pais; o meu namorado está desempregado. Que futuro poderia dar ao meu filho?
Não é que não gostasse, e até talvez preferisse levar esta gravidez até ao fim, se a minha vida financeira o permitisse, mas também não é nenhuma tragédia de conflito interior fazer esta interrupção. No último referendo votei sim, em consciência.
Quando fiz a quarta semana de gestação já estava decidida: iria abortar. Sabia muito bem que, legalmente, o podia fazer até às dez semanas. Foi então que, estando a passar uns dias em casa de um familiar, senti aquelas dores intensas e, não aguentando mais, pensei que poderia ser uma gravidez com complicações. Fui então ao hospital mais próximo, o São Francisco Xavier, em Lisboa. Aí fui atendida e convidada a deitar-me na maca para ser observada. Não sei como surgiu o diálogo, mas a certa altura, a médica estava a perguntar-me: “vamos deixar-nos de rodeios. Quer este filho?”. Fui parva. Disse-lhe que estava a ponderar uma Interrupção Voluntária de Gravidez (IVG). Eu sabia que naquele hospital 100 por cento dos médicos eram objectores de consciência. “Já é a segunda mulher para IVG hoje”, sentenciou a médica secamente, de supetão, não esperando réplica. Não fui observada, e as dores foram ignoradas. Deixei de ser uma pessoa normal para ser “mais uma” que queria fazer um aborto. Senti-me discriminada, à margem. Senti o que, se calhar, sentiram outras mulheres antes da lei ser promulgada. Neste hospital ninguém me encaminhou, apenas me disseram para eu ir a um estabelecimento de saúde da minha área de residência. Fartei-me de chorar, desmistificaram tanto o aborto… para isto?! Mil pensamentos me passaram pela cabeça, até pensei em ir a Espanha, como antigamente. E, se eu fosse uma miúda de 16 anos sem estudos, o que teria acontecido? Ou tinha avançado com a gravidez ou fazia o aborto num sítio sem condições.
Ainda com dores, nesse mesmo dia, na segunda semana de Outubro, fui ao Hospital de Cascais onde me fizeram uma ecografia para saber se era uma gravidez sem complicações e para datá-la. Fui bem tratada, não me queixo, excepto num ponto que considero crucial: não me deram os três dias, que corresponde a um período obrigatório de reflexão e consignado na actual legislação, uma vez que esta decisão deve ser sempre tomada de forma tranquila, consciente e responsável.
É certo que eu estava decidida. Mas e se não estivesse? Como sou psicóloga, em termos emocionais estava preparada, ou pelo menos assim julgava estar para lidar bem com tudo aquilo. Mas não sabia o que iria enfrentar em termos físicos, nem poderia conhecer todos os riscos de uma IVG, uma vez que era a primeira vez. O médico apresentou-me um consentimento livre e informado, que nem metade consegui ler, e disse: “assine no fim”. Nem me perguntou porque tinha engravidado, nem a minha história, nem se queria pensar melhor. Sabem o que senti? Senti que o médico não queria saber quem eu era, a minha história, para não se ligar. Senti que havia pressão para despachar e uma grande tensão, como se ele estivesse a fazer uma coisa que não é permitida e quisesse a página virada. Achei que estava a ser tratada como uma peça de carne.
Como se isto não chegasse, fez o pior que se pode fazer a uma pessoa, fez-me sentir um número e mais uma entre outras insignificantes: disse-me que, quando chegasse à sala de espera, onde estavam outras mulheres, mandasse entrar a próxima. Disse também que a enfermeira depois me chamaria para a administração dos fármacos. Aguardei na sala de espera com as outras mulheres. Todas as que ali estavam eram licenciadas e foi uma formada em farmácia que me explicou como ia ser o processo medicamentoso, o que iria sentir. A enfermeira apenas me perguntou se tinha comido, requisito para ingerir os comprimidos, que atacam o estômago. Ninguém me preparou para as dores horríveis que viriam a seguir e que parece que rasgam o esófago.
Passadas cerca de três semanas, continuo a pensar que falta um equilíbrio ao processo. Passou-se de “8 para 80”.
Em consciência, votei “sim” no referendo do aborto. Não votei “sim” no “despacha” e no venha a próxima.”
(Notícia publicada no jornal “Público” de 4 de Novembro. As declarações são da própria, inseridas com arranjo literário meu e em necessário contexto, aqui na 1ª pessoa. Apenas a sua vida profissional foi romanceada)
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