Segundo a notícia transcrita no Jornal da Mealhada, de 20 de Fevereiro: “Presidente da Direcção da APPACDM foi investigado, com base numa denúncia, feita por carta, a um órgão de comunicação social, onde são feitas acusações muito graves, de corrupção”. Acerca dos autores da carta anónima, Acácio Lucas, o visado pela “acusação”, garantiu: “O documento foi escrito por funcionários da instituição, mas não posso acusar ninguém sem ter certezas. A justiça serve para descobrir se as acusações são ou não verdadeiras, mas também para descobrir quem foram os autores da carta”.
Ora aqui começa a saga iníqua e labiríntica deste homem que não conheço. Ele, agredido na sua honra, torpemente vilipendiado por um cobarde sem dignidade e sem rosto, não pode acusar ninguém, e diz ter esperança que a justiça descubra os autores da carta. Em contrapartida o poltrão, a coberto do manto diáfano do obscurantismo, pode acusar discricionariamente sem prestar contas. Não está em causa se Acácio Lucas é culpado ou inocente –embora, mesmo após o inquérito em curso pelo Ministério Público, e mesmo em caso de vir a ser constituído arguido, só após o transitado em julgado se poderá falar em “culposo” ou “inculpado”- o que se põe em causa é a forma como um Estado de Direito aceita uma denúncia e, sem princípios de salvaguarda da honra do cidadão atingido, aceita, com base numa delação traiçoeira, iniciar uma investigação, mesmo sabendo que jamais essa pessoa será inocentada pelo populis. Mesmo absolvido, o estigma perdurará para além do tempo.
É curioso como no Estado Novo a delação, com base num informador anónimo da extinta Pide, é hoje, unanimemente condenada com veemência e considerada atentatória aos mais elementares princípios da segurança jurídica. Então como compreender que pior do que isso, num retrocesso à Inquisição, um Estado Liberal, em que os Direitos Liberdades e Garantias são o primado da sua individualidade, aceite os mesmos métodos quinhentistas ou de um autoritarismo condenável sem contestação? É claro que a resposta dada pelo legislador e pelos defensores deste injusto sistema é demais conhecida: “o Estado de Direito garante-lhe um processo justo”. Garantirá mesmo? E no caso de nem sequer vir a ser pronunciado, quem é responsabilizado pela vergonha, pelo estigma, e noites em claro? E, ainda mais, se o Código Penal, no seu artº 365º, referente à denúncia caluniosa e imputação de medida disciplinar ou contra ordenação, procura na sua bondade defender o denunciado, através da possibilidade do subsequente procedimento criminal em caso de denúncia infundada, exactamente para, como medida preventiva, evitar a proliferação desse mesmo recurso? Então, como entender que a ordem jurídica aceite uma denúncia anónima, sabendo, a priori, que o denunciado fica numa posição vulnerável e sem possibilidades de imputação de responsabilidades ao demandante fantasma? Ou seja, por desconhecimento do autor material da denúncia, o denunciado, perante a lei, é discriminado. É verdade que ao legislador apenas lhe interessa o objecto, que, neste caso, é a descoberta da verdade. Mas se a lei é o primado da ordem jurídica, aquela só pode ser justa, em verdade e em equidade, se tiver em conta os meios para alcançar os fins.
Por outro lado, pela recorrência, infelizmente, hoje tão em voga, se depreende que a lei, devendo premiar o altruísmo, a coragem e o exercício da cidadania, ao aceitar o mérito da denúncia anónima como princípio desencadeante da acção, pelo contrário incentiva “o atira e foge” e, ainda mais grave, desonera completamente o autor de qualquer penalidade ou censura social, do seu acto atentatório ao (mau) uso da moral e dos bons costumes, e, ao invés de fomentar a licitude e a conspicuidade, esta prescrição legislativa incentiva o ataques soez.
Valerá a pena pensar nisto? É que amanhã,como no "Processo", de Kafka, você, pode ser o próximo.
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