Hoje, que não tenho nada para fazer, deu-me para passear pelas ruas da cidade. Ouço aqui, escuto acolá, à espera de encontrar qualquer conversa que me interesse. As poucas pessoas que passam, embrenhadas nos pensamentos intricados das suas vidas, passam por mim e parecem nem me ver. Parece que já nem tempo há para conversar. Que saudades daqueles tempos em que as ruas eram um borbulhar de gente viva. Em que o seu movimento pedonal, em qualquer dia da semana, parecia a procissão da Rainha Santa. Tenho saudades duma qualquer dona Efigénia, que morava num qualquer 3º andar, falava cá para baixo, para a D. Ermelinda, e, quase gritando, numa coscuvilhice doentia, contavam as tricas todas de toda a rua. Quem por ali passasse ficava logo a saber tudo acerca daquela mulher bela do 33 A. Fomos do oito para o oitenta. Se nesse tempo era demais, hoje é indescritivelmente de menos.
Alto! Estão ali, naquele banco de pedra, quatro velhotes reformados a jogar à sueca. Vou aproximar-me e tentar ouvir o que dizem. Pode ser que seja alguma coisa de interesse. Sinceramente, não tenho grande fé, de que hão-de conversar os aposentados da vida? O tema há-de ser mulheres, com sexo à mistura, as baixas reformas, ou então aquelas histórias chatas, em que o preâmbulo começa sempre por “no meu tempo era assim…no meu tempo é que era bom”, um pouco como eu, no mesmo pensamento valorativo, estou a começar a entrar –pensava eu.
Dei as boas tardes e sentei-me num pequeníssimo espaço disponível do banco. Responderam à minha saudação, todos em uníssono, pareciam o coro de Santo Amaro de Oeiras, embora não conseguissem disfarçar um olhar de pasmo, de interrogação interior, exteriorizado pela fixação dos seus olhos, intuí que cada um deles, talvez como defesa, pensasse: “quem é o marmanjo? Hum…das duas uma ou vem-nos vender alguma coisa ou pregar-nos alguma do conto do vigário, mas se pensas que somos “otários” estás bem enganado”.
Para meu espanto, falavam de cultura. Da cultura em Coimbra. Sentado no canto direito do banco de pedra, eu ia escutando, e cada vez mais surpreendido ia ficando à medida que o tempo passava. Os octogenários sabiam tudo –ou pelo menos pareciam saber. Eles comentavam um site na Internet, denominado “Os amigos da cultura”, subscrito por cerca de seis dezenas de personalidades importantes na vida coimbrã, que convidava cidadãos a subscreverem, através de assinatura, o que eles apelidaram de “Pelo direito à cultura e pelo dever de cultura!”.
-Já viu isto compadre, isto aqui é uma parvónia, não há nada!? Fiz muito bem em assinar “a tal petição”, boas razões têm lá os “dotores” para denunciar este atraso de vida, estes défices de culturas –lança achas para a fogueira o “ti” Jaquim Rabecão, dirigindo-se ao Manel “pintassilgo”, tentando distraí-lo numa jogada de Às de espadas. Figura curiosa este Rabecão, pensei com os meus botões. De cigarro na canto da boca, tipo James Dean. Ar de jingão, complementado com um fino bigodinho, com um cabelo espetado, talvez tentando tirar partido de uma cãs que o tempo impusera.
-É verdade amigo Jaquim, eu também assinei. As culturas, aqui no baixo-mondego, estão todas a desaparecer. Foi o milho, foi o trigo, e, praticamente, até o arroz já pouco se vê. Ninguém quer vergar a mola. Trabalhar faz calos –condescende o “pintassilgo” com um sorriso matreiro, não se deixando enrolar na conversa, e cortando o Ás de espadas com um trunfo. Tinha um aspecto pesado este Manel “pintassilgo”. Obeso, careca, de samarra com gola de raposa e uns óculos de armação de baquelite a segurar umas lentes grossíssimas, a servir de ponte entre uma miopia existencial e uma realidade possível. Devia ter sido agricultor, talvez daqueles que no fim da década de oitenta, a então CEE pagou para ir para a prateleira e não fazer mais nada.
-Ó pá não sejas parvo! Eu também assinei. Não é essa cultura que o Rabecão se refere -intromete-se “a tralhão” –entre duas “passas” do cigarro de enrolar- sem conseguir disfarçar algum enfado, o Toino “dos eléctricos”, assim chamado por ter sido guarda-freio dos velhos amarelos e ronceiros, desaparecidos da cidade no início da década de oitenta – é o “Saneamento básico da cultura”, pelo menos é o que diz lá no “abaixo assinado” da net. Houve, por parte da “Cambra” um corte de 60% nas verbas destinadas à cultura no orçamento de 2006…
-Espera aí –interrompe o Albino “mãos de tesoura” –assim chamado, creio, por ter um “ar” de delicadinho e excesso de maneirismo. De lacinho às pintinhas, cabelo penteado para trás à Errol Flynn, cachimbo no canto da boca, com tiques de intelectual. Os dedos alongados, de pianista frustrado, mostravam a razão do apodo. Volta e meia, sempre que queria cortar ou pôr fim a uma conversa, fazia um “V” enorme com os dedos-, eu também assinei e não é esse “saneamento básico” que os “dotores” se referem. Não é esse do tratamento de esgotos. Falam em “saneamento básico” no sentido de ser uma medida higiénica, de qualidade essencial para as condições de vida do povo de Coimbra. Tenta explicar aos companheiros de sueca, com ênfase e voz de cana rachada, o intelectual de maneiras um tanto ou quanto efeminadas.
-Calma, cada vez estou a perceber menos –insurge-se irritado o Manel “pintassilgo”- mas afinal o que é a “cultura” que “eles” falam lá?
Reparei, do meu canto, a gozar o panorama, que tanto o Jaquim, como o Toino, como o Albino, foram apanhados de surpresa, começaram a olhar uns para os outros sem saberem o que responder. O Albino, talvez por ser mais letrado, dividido entre um atrapalhado afoitamento e um gaguejar de improviso, meio titubeante lá tentou desembaraçar-se daquela pergunta incómoda e respondeu:
-Ó “pintassilgo”, então não se está mesmo a ver?! Cultura é o conjunto de costumes e tradições que constituem a herança de uma comunidade. Remata, agora mais calmo, entre uma alongada “passa” no cachimbo, o Albino, como que a querer mostrar que o saber dos livros era com ele.
-Mau! Insurge-se o "pintassilgo". Cada vez estou mais no zero. Diz-me uma coisa, a corrupção não é uma tradição dos portugueses? Foi o que sempre ouvi, desde o meu pai ao meu avô. Isso quer dizer que esses “dotores” querem fazer renascer esse costume? Mas por outro lado, quando ligo a “trevisão” só ouço dizer que se deve acabar com ela. Em que ficamos…ó Albino?
-Não! Nada disso. Com dificuldade, pondo-se de pé, tentava explicar o intelectual ao pessoal da cartada.
Sorrateiramente, abandonei o meu posto de observação. Aquilo estava a tornar-se uma conversa de doidos. Ninguém deu pela minha falta. Vou “cuscar” para outra freguesia.
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