(IMAGEM DE LEONARDO BRAGA PINHEIRO)
Estávamos em 1936, quando Maria, num longo grito, não se sabe se revoltada por ter acabado de levar uma palmada, bem assente no rabo, pela parteira, se a adivinhar que o mundo em que acabara de entrar era muito pior do que aquele que acabara de sair. Não se sabe muito bem de onde provinham os receios de Maria. Afinal à sua volta havia tudo o que qualquer recém-nascido poderia desejar. O quarto estava muito bem mobilado, com uma mobília “Art Deco”, com as suas linhas geometrizadas, implicadas no cubismo, movimento que perpassava na Europa e que já tinha chegado às Américas. Em cima do mármore de Estremoz, do psiché, um crucifixo com um Cristo de rosto sofrido, talvez para mostrar aos recém-chegados que a vida seria dura, sem contemplações, e quem viesse que se preparasse para o pior. Para equilibrar, junto dele, uma imagem de Nossa Senhora de Fátima de rosto sereno, com meio sorriso, implicitamente, sem querer entrar em choque com o Criador, como a dizer que a vida é muito mais do que apenas sacrifícios. Vivamos em paz, não levemos o sacrifício ao extremo. Sejamos felizes.
Os longos reposteiros de damasco, complementados por paredes forradas a papel aveludado com flores, talvez saídas do jardim bíblico do Éden, mostrava que aquela casa se não era abastada, pelo menos estava muito acima do comum dos portugueses da época, que sentiam na pele a falta de tudo; de dinheiro, de comer e até de esperança de viverem para além dos 50 anos. A Europa vivia tempos conturbados, tinha sido há pouco varrida pelos ventos da grande depressão de 1929, que pusera os grandes Estados Unidos da América na quase indigência. Em Espanha, dava-se o inevitável choque entre a esquerda, de movimentos operários de filosofia comunista, anarquista e socialista, e a direita de Francisco Franco. Neste ano, começa a Guerra Civil Espanhola. Em Itália, Mussolini preparava-se, através do seu expansionismo fascista, para invadir a Grécia e entrar em guerra contra os aliados. Na Alemanha, Hitler, eleito chanceler três anos antes, como ditador racista e anti-semita, preparava-se para perpetrar o maior genocídio da humanidade.
Por cá, Salazar, um cordeiro no meio dos lobos, se considerarmos a ambição política geoestratégica e o expansionismo assassino de Hitler, Franco e Mussolini, embora seguindo a mesma filosofia fascista, de autoritarismo ditatorial, assente no corporativismo e no partido único, a União Nacional. Depois de ter sido empossado por Carmona, como Presidente do Conselho de Ministros, e ter dado início ao Estado Novo em 1933, tentava a todo o custo o saneamento das finanças públicas.
É neste ambiente político que nasce Maria ali para os lados do Norte. Já se começa a entender o seu prolongado choro de rebelião por ter saído do ventre materno. Mas havia mais. O seu pai, abastado proprietário agrícola, naturalmente filiado na União Nacional, e admirador profundo do ex-professor de finanças da Universidade Coimbra, tinha dois pontos fracos: as mulheres e o jogo. Quando Maria nasce, a sua outra irmã Matilde, mais velha 5 anos, escondida em recantos da grande casa, ou fazendo que dormia, assistia, amiúde vezes, a grandes discussões entre a sua mãe e o adicto do seu pai. A situação financeira, embora não fosse preocupante, foi-se detiorando, ainda mais com a 2ª Grande Cuerra e o seu obrigatório racionamento. Nem mesmo assim o pai de Maria deixava de jogar. Em 1947, ano do início do plano Marshal –Programa de Recuperação Europeia-, que consistia na ajuda técnica e económica, denominada doutrina Truman, proporcionada pelos Estados Unidos, integrada aos Estados Europeus devastados pela guerra. Salazar, como sabemos, por sua iniciativa escusou-se a integrar este plano. Dizia eu, então, que neste ano de 1947 o pai de Maria, numa jogada infeliz, arrisca a sua melhor e única terra de semeadura que resta à família e…perde. Com a vergonha de encarar a família, por ter perdido a sua única e última base de sustento e a dignidade, preferiu desistir da vida.
Maria, então com 11 anos, além de ficar sem pai, herda uma situação financeira catastrófica. A mãe de Maria, a braços com dificuldades, com dois filhos para criar, torna-se austera e dura, mas não cruza os braços. Naquele rosto, os seus dois filhos nunca mais vislumbraram um sorriso e muito menos gestos de amor e ternura. Tornou-se calculista e sublevada contra a sorte que lhe caiu em desdita. A maioria das grandes amizades do tempo do seu marido, como nuvens tocadas pelos raios solares, esfumaram-se no ar. Dos muitos, apenas restava aquela família proprietária duma grande fábrica de têxteis na Areosa, que, por acaso, só por acaso, tinha um filho varão da mesma idade de Maria. Como qualquer mãe que quer o melhor para a filha –pelo menos era assim que entendia-, mentalmente começou a engendrar o seu plano: aquele filho varão era o genro que lhe convinha, e Maria quisesse ou não quisesse tinha de o desposar. “Lá estávamos em tempo de escolher marido desde que fosse rico. Isso é que era bom”. –pensava para si a mãe de Maria.
Havia um senão: Maria não o queria ver nem pintado de ouro fino. Então não é que o raio da rapariga se embeiçara pelo sapateiro da rua? “Onde é que isto já se viu? Estes jovens nem sabem escolher o melhor para si. Felizmente que eu sei o que é melhor para ela”-repetia a mãe de Maria em pensamentos multiplicados. Então dá-se a segunda tragédia naquela casa hermética e solarenga: com 18 anos, Maria desapareceu. Fugiu com o sapateiro. A sua mãe nunca mais soube dela. Nem na hora da sua morte, mesmo quando a voz se esvaia em fio inaudível, de tanto se repetir a pedir perdão à sua filha perdida, esta deu sinais de si.
Maria, juntamente com o então companheiro, vieram parar a Coimbra. Cedo se viu quem mandava lá em casa. Ela não alinhava em tradições machistas. O companheiro, que no mundo não via outra mulher, subordinadamente, aceitou a troca de chefia. Maria era muito poupada e muito dura. Muitas vezes o ex-sapateiro, agora empregado fabril, perguntava a si próprio se o coração de Maria não seria feito de pedra, mas admirava profundamente aquela mulher. Mais ainda o interesse redobrado que ela demonstrava em ler. Ela lia e relia tudo o que podia. E, se o amor tudo perdoa, naturalmente, ele, que sofria desse mal escravizante, evidentemente que a absolvia em pleno.
Veio o primeiro filho, o segundo; o quarto nasceu morto. Veio o quinto, o nono morreu passado 3 dias. Veio o décimo, o décimo-terceiro nasceu morto, com o cordão umbilical enrolado ao pescoço. E vieram os seguintes até ao décimo-sexto. 13 filhos estavam vivos. Por incrível que pareça Maria geria esta prole com mão de ferro, como autêntico comandante militar.
Os mais velhos eram obrigados a mendigar na rua, todos os dias, e levarem para casa uma importância pré-estabelecida. Aquele que não cumprisse tinha à sua espera uma “surra” monumental. Este dinheiro, conjuntamente com o ordenado do marido, era empregado na alimentação e no vestir de todos. Os horários escolares eram cumpridos à risca e ai daquele que faltasse à escola. Por paradoxal que pareça todos os filhos de Maria iam para a escola limpos, bem alimentados, e bem vestidos. Não havia tempo para ternuras, nem beijos, nem abraços. Se Maria não recebeu carinho como poderia distribuir uma coisa que não conhecia? Pelo contrário havia demasiada pancada. Maria chegava a instigar o seu marido para bater nos insurrectos. Os três últimos, por serem os mais novos, além de se livrarem de andar a pedinchar nas ruas da cidade, conseguiram tirar cursos superiores. Hoje, com 71 anos, Maria, já viúva, sempre agarrada a um livro, continua a não ser terna e a não dar beijos aos netos. Às vezes, à procura de uma explicação, quando algum dos seus 13 filhos, que a adoram, todos muito bem colocados na vida, lhe perguntam porque foi tão dura para eles, ela responde: “dura eu? Vocês são é doidos! Eu alguma vez fui como vocês me pintam?...
(História verídica, baseada em factos reais)
1 comentário:
esse foi o pior comentário que eu já ouvi
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