quinta-feira, 23 de novembro de 2017

EDITORIAL: OS VARRIDOS DO COMÉRCIO (1)

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)





Tentando trazer à colação a história recente do comércio na Baixa, com a maior honestidade intelectual e até onde a memória me conduzir, vou tentar retratar os últimos cerca de vinte anos, mais precisamente a partir de 1995. Porquê continuar a malhar no desgraçadinho, como quem diz escrever sobre o comércio? Porquê começar em 1995? Porquê o título? À primeira interrogação respondo que continuo a escrever sobre a actividade mercantil na Baixa por que, a meu ver, a história do comércio no coração da cidade, quer no nascimento, quer no crescimento, quer no pico máximo, quer na declinação (que vivemos hoje), não está feita. Embora eventualmente possa fazer remissões para o passado, estabeleço uma data de começo em 1995 por ter sido um ano de transição, o início de um novo ciclo político de abertura à esquerda, após dez anos de governos PSD, a viragem do milénio, o marco da chegada de uma nova sociedade mais informada e informatizada, a data em que, de certo modo, nasceu a última fornada de consumidores -que estão agora, neste ano da graça de 2017, com 22 anos. E é precisamente nestes dois estratos sociais, velhos comerciantes e novos consumidores, que, ao mesmo tempo que descrevo, vou tentando arranjar explicação para a queda do comércio tradicional, visto pelos olhos de um operador que começou a trabalhar na Baixa em 1973.
Porquê o título “os varridos do comércio”? Furtei a presente denominação a um antigo comerciante, e meu amigo, que chama assim aos colegas que foram “empurrados” para uma insolvência anunciada ou ainda estão no activo por necessidade e sabem antecipadamente que o seu destino está traçado a curto ou a médio prazo.
Foi precisamente por isto que, apesar de já ter produzido dezenas e dezenas de textos sobre este mesmo assunto, senti necessidade de escrever novamente sobre o declínio da classe.
Os comerciantes de rua serão vítimas de um sistema político interesseiro, onde só os grandes grupos económicos contam e os pequenos são moléculas invisíveis carregadas de obrigações?
Serão despojos de uma cultura assente no costume, em que a mudança e a novidade são os trilhos onde corre a máquina do progresso, que nunca foi tão rápida como hoje?
Serão peças velhas, sem utilidade, resquícios de um tempo que passou de moda?
Serão simplesmente os guardiões de um museu -que, como actores de uma peça trágica, dando vida às urbes pagam para trabalhar- em que se transformaram os velhos centros das cidades para os turistas e novos consumidores?
Como é evidente não vou responder a qualquer destas perguntas. O que pretendo é, partindo do passado para o presente, com seriedade fazer reflectir e, cada um por si, chegar a uma conclusão.

I

Estamos em 02 de Outubro de 1995. Ontem realizaram-se as eleições legislativas. António Guterres, ganhando o pleito eleitoral com maioria relativa, depois de uma década de governos PSD, centro-direita, liderados por Cavaco Silva, abre a porta de entrada do país ao Partido Socialista (PS), centro-esquerda.
A Câmara Municipal de Coimbra é liderada por Manuel Machado, em representação do PS.
O movimento comercial na Baixa segue o seu curso praticamente igual aos últimos vinte anos. A cidade, para quem vem do exterior, é uma espécie de Meca comercial. Aqui tudo se compra, aqui tudo se vende. As ruas estreitas e largas continuam apinhadas de pessoas. Os transeuntes, constituídos por nativos e visitantes de toda a região centro que aqui se deslocam para fazer compras, fazem fila indiana para percorrer escassos metros de calçada. Por esse facto, por um desmesurado movimento de pessoas a atropelarem-se nas vias, e também por começar a ser moda retirar os automóveis dos centros históricos, cinco anos antes, em 1990, Machado manda retirar o trânsito automóvel e transforma as Ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz em vias pedonais. Os jornais locais anunciam que no Verão, sobre orientação de Fernando Távora, que fora também o responsável pelo projecto de pedonalização das ruas largas, vão iniciar-se as obras de rebaixamento do piso da Praça 8 de Maio.

II

A zona da Alta, sobretudo as Escadas de Quebra Costas, para além da hotelaria, está essencialmente povoada com estabelecimentos dedicados ao mobiliário. Embora houvesse também dois alfaiates, uma livraria, uma loja de electro-domésticos, uma oficina de rádios, uma casa de canetas, um velhustro e um alfarrabista.
Abaixo do Arco de Almedina, a Baixa prossegue o seu curso aparentemente normal. No entanto, pressente-se no ar alterações ao seu “status quo”, ao seu situacionismo, e alguma preocupação, sobretudo para os profissionais do comércio. A abertura do Continente e da Makro no Vale das Flores ocorrera dois anos antes, em 1993, e, embora recente, a deslocalização de clientela estava em curso e já provocava mossa no negócio. Nessa altura, aquando da abertura destas grandes superfícies, chegou a realizar-se uma manifestação de protesto liderada por César Branquinho, um comerciante com lojas na Rua das Padeiras, próximo do PS e muito activo nas lides associativas e que chegou a ser presidente da ACIC, Associação Comercial e Industrial de Coimbra.
Como se fosse pouco a concorrência que vinha em grande escala, por força das políticas de Cavaco Silva no obedecer a directivas europeias -Portugal aderiu à então CEE, Comunidade Económica Europeia, nove anos antes, em 1986-, pelo abandono dos campos, o terciário passou a ser um porto de abrigo de todos os encalhados. O resultado deste encarte é que começaram a abrir negócios em tudo quanto era vila e cidade periférica da grande urbe. Por isso mesmo, aos poucos, Coimbra ia perdendo a atractividade comercial que sempre tivera ao longo do século XX. Mas, salienta-se, apesar disso, a cidade fervilhava de gente. Um ano antes, em 1994, pela adesão de Portugal à Organização Mundial de Comércio, começaram a surgir as “lojas de trezentos” como cogumelos em manhã de nevoeiro. Na Rua das Padeiras, onde irrompeu o primeiro espaço comercial onde se vendia tudo, desde guarda-chuvas a ferramentas, havia longas filas de pessoas à espera para entrar.

III

O comércio na Baixa está dividido por áreas classicistas. As ruas largas, a Visconde da Luz e Ferreira Borges, constitui a fina flor que tem por objecto servir a elite da cidade. Para além de deter os melhores cafés e muitos consultórios médicos nos pisos superiores, aqui estão situadas as grandes casas de moda e duas sapatarias de marca.
Nas ruas estreitas e praças adjacentes está o comércio mais popular. Neste ano encerrou um grande armazém de mercearia nas ruas estreitas, os tendeiros que vendem tudo em porção de quilo temem a sua extinção.
A ocupar verticalmente todo o edifício, o ponto de venda está no rés-do-chão. Está muito centralizado, isto é, um comerciante chega a ter oito lojas a vender o mesmo artigo num espaço de cem metros quadrados entre vielas que se cruzam. Outros, na mesma rua ou praça, quase encostados uns aos outros, detêm dois, três e quatro estabelecimentos, todos com o mesmo artigo para venda. Não é surpresa saber que algumas destas empresas têm no seu quadro de pessoal quarenta trabalhadores, alguns deles com mais de trinta anos de casa. Mas as vendas estão a cair muito rapidamente e muitas destas firmas não conseguem ganhar para pagar aos funcionários. Os despedimentos, sobretudo nos servidores mais novos para não pagar indemnizações, começam em catadupa. As grandes empresas, que deram nome à Baixa comercial nas últimas décadas, entram em falência técnica e vão durar poucos anos.
(ARTIGO EM CONTINUAÇÃO)

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