terça-feira, 2 de abril de 2024

BARRÔ: AFINAL, A SUPOSTA CRUZ EM OURO ERA EM LATÃO

 





Planava eu, hoje pelo romper da aurora, serenamente no meu quarto ciclo de sono profundo quando a campainha do portão de entrada retiniu com insistência. Ou melhor, o toque era de raiva, uma fúria ressacada de alguém que precisava de despejar o saco das frustrações.

O relógio da capela do adro ensaiava os primeiros toques a lembrar que o ditado “vale mais quem Deus ajuda do que quem muito madruga” é falso.

Com um olho aberto e outro meio fechado, enfiando à pressa o primeiro robe que me veio à mão, corri para as escadas para acudir aquela aflição.

Era a dona Miquelina, a esposa do L. A., Laurindo Abrenúncio, sobre quem, ontem, contei a história da suposta cruz, em ouro, encontrada por ele na ribeira, junto ao Moinho Velho.

Bastou-me um olhar de relance, mesmo a meio-olho, pelo rosto contraído, para verificar que se adivinhavam ciclones e arruadas de chuva.

Antes de chegar próximo dela, guardando uma pequena distância de segurança, ensaiei o melhor sorriso e uma frase simpática de boas-vindas:

- Bom dia, dona Miquelina, bons olhos a vejam. Passou uma boa quadra da Páscoa?

-Deixe-se de lamechises, que eu não estou para brincadeiras. Está a ouvir, sua amostra de jornalista de caserna?

Respirei fundo. Estava em vias de uma discussão turbulenta. Optei pela ignorância. Fiz-me de sonso.

- Não estou a perceber, aconteceu alguma coisa de grave, que eu não saiba?

- Não sabe, o quê? Seu troca-tintas de uma figa… - respondeu em interrogação com brutalidade e simulando uma investida.

Não sabe o que escreveu ontem? Não adivinhou que, por ser o Dia das Mentiras do primeiro de Abril, era uma patacoada?

Respirei outra vez, enchendo o peito de ar, soerguendo a cabeça, e preparei-me para o pior.

E fui aparando os golpes com argumentação de xaxa.

- Vai desculpar, dona “Miquinhas” – utilizei o diminutivo intencionalmente para ver se adocicava a lábia turbulenta da mulher -, mas foi o Laurindo, o seu marido, que me contou tudo. Até gravei. Quer ouvir?

- Não quero ouvir nada. Ponto final. O meu homem é um tonto. E quem manda lá em casa sou eu. Está a ouvir sua besta?

Engoli em seco. O melhor era mesmo desvalorizar as expressões. Se fosse demasiado lisonjeiro, e, por exemplo, lhe oferecesse uma flor de um dos vasos que calcorreiam as escadas, poderia ser acusado de assédio. Se fosse demasiado agressivo, sei lá, ainda poderia ser acusado de violência "rual" – uma derivada da doméstica, mas perpetrada na via pública.

Uma mulher, hoje, tem mais poder territorial que o Papa Francisco. Basta o ser para fazer encolher o parecer do mais afoito dos homens.

Prossegui, tentando ganhar tempo com a calma que tanto me caracteriza:

- está a exagerar, dona Miquinhas…

- Pois, isso é que não estou, seu troglodita… E não me trate por “Miquinhas”. Isto é só para os meus amigos...

Intervalei com uma pergunta de retórica:

- Mas, afinal, o que a incomoda? Ainda não percebi…

-Ai não?!? Ai não?

Então, não sabe que a cruz, colocada junto ao moinho por uns engraçadinhos, era de latão? Alguém precisava de saber acerca disso?

Para além disso, ninguém precisa de saber o que se passa em minha casa. Entende, seu escritor de meia-tijela?

Ainda ensaiei uma última questão:

- E como é que está o Laurindo?

- Uma lástima… Com uma depressão, que nem a graça de todos os santos lhe valem. Como que acha que ele estará?

-Compreendo – rematei sem convicção.

- Não compreende nada. E muito menos a vergonha que ele está a passar.

Já se tinha convertido à Religião Católica, e mais, já se tinha inscrito como Juiz da Igreja Paroquial de Luso. E agora, assim, nada…

Já estava a ver o meu Laurindo com a opa vermelha vestida e a pegar no estandarte… Ai que saudade…

Quem paga o meu desapontamento?


1 comentário:

Anónimo disse...

Grande Luís!!!
Já tinha saudades das tuas publicações.
Forte abraço do amigo Joaquim