Em finais da década de 1980 fez a sua aparição
pública na Rua Visconde da Luz. Tinha uma aparência eclética, algo seleccionada,
aquele que seguia uma nova linha de pensamento social. Tal como o nome indicava,
a sua indumentária reportava-o para a Monarquia. As suas quatro colunas
neoclássicas pintadas de cor grená conferiam-lhe uma aura de catedral. Era o
tempo que se abria para uma nova religião que haveria de destronar outras
milenares e, como síndrome social, alastraria e abraçaria todos, pobres,
remediados, ricos: o consumismo.
Escrevo sobre o Centro Comercial Visconde, situado numa
das ruas da calçada, na Baixa de Coimbra.
Em analogia com esta modernidade
que enterra tudo o que está para trás e apagando a sua história, parece
incrível o que vou escrever. Nessa altura, creio que em 1989, chegou-me um
boato –que se viria a verificar não ser- de que o café Vasco da Gama, situado no terceiro-andar - e que, tal como esta
média área comercial, tinha aberto há pouco tempo-, tinha adquirido um forno
especial que, em pouco mais de um minuto, aquecia qualquer produto que
contivesse água na sua composição. E lá fui eu ver de que milagre se tratava.
Era um micro-ondas, provavelmente dos primeiros chegados a Coimbra. Como tinha
um estabelecimento de hotelaria, vi imediatamente o quão útil poderia ser tal
instrumento e comecei logo a procurar adquirir um igual. Os preços eram
proibitivos. Sei que acabei por ir a Lisboa e adquirir um modelo parecido por
cerca de 150 contos, setecentos e cinquenta euros hoje –como se sabe, agora, o preço de um deste vulgar utensílio familiar ultrapassa pouco
mais de 25 euros.
Apesar do primeiro Shopping-Center ter aberto em 1977, na Avenida Sá da Bandeira –curiosamente,
andei lá a pintar os tectos de algumas lojas- e poucos anos depois ter aberto
um outro na Rua da Sofia, a abertura deste novo centro de vendas, mesmo no
coração da Baixa, foi um acontecimento de largo espectro comercial e, pelas
suas cerca de 32 lojas distribuídas por quatro andares e que era possível adquirir
em propriedade horizontal, foi motivo de grande procura. De alto-a-baixo, com
entrada nas traseiras pela Rua Corpo de Deus e saída pela rua larga ou inverso,
imediatamente todos os seus pontos de venda foram ocupados entre o arrendamento
e a venda.
O tempo foi passando, abriram na cidade outros,
outros e outros, e todos sabemos no que deu. Hoje o Centro Comercial Visconde, nos quatro andares e nas cerca de 32
lojas, apenas duas mulheres resistem com arranjos de costura. Uma senhora no
primeiro-andar, com aproximadamente 60 anos, e outra no terceiro, a dona
Mariana Rodrigues, com quem vou trocar umas impressões. Venha comigo. Entremos
pela Rua Visconde da Luz. Vamos transpor a entrada com duas lojas vazias, uma
de cada lado, a receber-nos em silêncio e subindo até ao terceiro-andar num
ambiente fantasmagórico e de solidão que se apanha a rodos. Chegados,
deparamo-nos com o outrora café Vasco da
Gama e depois Visconde, montado
com máquinas, louças e copos, mesas e cadeiras, como se estivesse prontinho a
abrir. É como se permanecesse em sentinela de soldado que desconhece que a guerra acabou e quisesse dizer que foi vencido pelo
tempo mas não está convencido. Vamos bater na montra de vidro da loja da Dona
Mariana, já que ela, como princesa enclausurada, se encontra no seu interior a
costurar mas com a porta fechada à chave por dentro. Tem medo de estar aqui,
Dona Mariana? Interrogo em provocação. “Tenho
e não tenho!” –responde. “Tenho por
que neste corpo cansado que o senhor vê já conta 67 primaveras e a genica já
não é a mesma. Por outro lado, não tenho porque sou uma mulher de luta e não me
escondo atrás do silvado para fugir aos problemas. Às vezes sinto-me um pouco
esmorecida. Quem viu isto cheio de vida, este centro comercial, e vê hoje, dá
vontade de chorar. Apesar disso, não me sinto triste por estar praticamente só.
A loja é minha, sabe? Adquiria-a com muito suor e lágrimas. Só por isso me
mantenho no meu posto. Claro que nunca perco a esperança de um dia ver este
shopping renascer das cinzas. Parece que uma das lojas do rés-do-chão já está
arrendada. Pode ser que isto arranque! Deveriam baixar as rendas e colocar aqui
jovens com projectos virados para a prestação de serviços. Se não fizerem nada,
isto é, cada proprietário se mantiver alheio e em conluio com este abandono,
vamos perder tudo. O senhor não acha?”
1 comentário:
É, infelizmente o retrato da decadência que assola não só a nossa cidade, mas todo o nosso país. Estamos a cair vertiginosamente no charco, num lamaçal de corrupção, políticas de interesses pessoais, falta de pudor político e demais epítetos que poderia acrescentar a estas "imagens", e que culminam na destruição da Democracia que tanto nos custou a alcançar; sobretudo a nós, que nascemos antes do 25 de abril e que comemos o pão que o diabo amassou!
Um abraço amigo e de(s)esperança- M.
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