quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

MEALHADA: ONTEM HOUVE ASSEMBLEIA MUNICIPAL VIA INTERNET. VOCÊ SABIA?

(imagem da Web)



Ontem, 29 de Dezembro, a iniciar às 20h00 e, após votação de continuidade além das quatro horas e meia de duração, a terminar às 2h30, nesta madrugada, desta Quarta-feira, realizou-se a última sessão Assembleia Municipal deste ano de 2020. O particular e curioso é que foi realizada em video-conferência, através da Internet, pela Zoom Comunicações.

Em preambular, teve uma parte desinteressante e outra pelo contrário.

Comecemos pelo menos bom: como já nos vem habituando, o município mealhadense, para além do Edital da convocatória na página oficial enterrado nas catacumbas do site, nunca faz publicidade às suas reuniões executivas e de assembleia. Esta de ontem, transmitida em directo, por exemplo, não deveria ter sido noticiada pelas várias páginas digitais do concelho e até pelo Jornal da Mealhada? Acerca desta razão para este inqualificável apagamento desinformativo, cada um pode especular, mas, seja lá qual for, o governo local de maioria PS fica muito ofuscado na fotografia.

Continuando no menos feliz, a abrir o debate a presidente da Assembleia Municipal, Daniela de Melo Esteves, para além de informar que a conferência estava a ser transmitida da autarquia, deveria ter advertido o “auditório” de que, após o Período de Intervenção destinado ao Público, os assistentes via Internet não poderiam comentar absolutamente nada, isto porque a conferência estava a ser realizada em circuito fechado aos eleitos, mas com abertura ao público inscrito – no caso 53 assistentes particulares. Ou seja, quem escrevesse um qualquer comentário iria interferir nos trabalhos. Ora, como a mancha cai sempre onde nunca se pensa, pela minha ignorância, eu fui o “broncas”, ao comentar várias intervenções. Embora levando no meu currículo dezenas de assistências a reuniões oficiais físicas (no lugar de cidadão), desta vez o meu desconhecimento digital era total. Pensava que havia um moderador a receber os comentários e a passar a inscrição dos deputados à presidente do hemiciclo. Ou seja, até ser advertido, durante pelo menos mais de duas horas, lá ia escrevendo, mais que certo, a fazer rir os eleitos. Portanto, sem o saber, eu estava a participar directamente na convenção.

A meu ver, alguma coisa terá de ser feito para, por um lado, permitir o público acompanhante a participar através de deixas, por outro, impedir que alguém com intenções menos nobres invada o espaço e provoque alarme. No meu entendimento, bastaria a criação de um moderador a receber a participação de todos os intervenientes, incluindo os eleitos, e, no caso de inscrições, passar a informação à presidente.

Focando o lado interessante, está visto que, embora com ajustes, este acompanhamento das reuniões oficiais é o futuro a passar na Mealhada. Basta dizer que até por volta da meia noite estiveram presentes 53 espectadores. À hora em que encerrou, cerca das 2h30, havia 43.

Ainda no positivo, salienta-se a boa prestação de Daniela Esteves, a líder da assembleia. Solta, simpática, cordata e ponderada, pareceu-me muito bem.

Ainda nesta parte, não fosse o inconveniente extrapolar desvalorativo de Rui Marqueiro, em resposta à deputada bloquista, Ana Luzia Quintela Santos Cruz, e o presidente da Câmara Municipal teria passado com 18 valores. Assim, pela mancha, levou 15. Não há dúvida que o velho leão sorrateiro tem uma capacidade argumentativa de excelência. A fazer lembrar o desaparecido Abecassis, na Câmara Municipal de Lisboa, de olhos quase semi-cerrados, mas com uma elevada qualidade de convencimento. Francamente, se, por hipótese, Marqueiro tivesse enveredado por vendas, por alienar o que quisesse, seria o rei das transacções. Até na tirada em que, sem ofensa e em metáfora, passou a mão pelo pêlo ao presidente da Junta de Freguesia de Casal Comba, foi de mestre. Em certas alturas, chegou a parecer-me um padre. Vá-se com ele à bola ou não, pela estratégia de fina argúcia, devemos tirar o chapéu à sua perícia argumentativa.


MAS, AFINAL, O QUE PASSOU?


Com catorze pontos em análise para serem votados, depressa chegou a meia-noite e meia, final do tempo regulamentar de quatro horas e meia. Após votação, continuaram os trabalhos noite adentro.

As grandes estrelas de deputados a salvar o universo representário foram, sem dúvida alguma, a bloquista Ana Luzia Quintela e o comunista João Manuel Lima Louceiro.

A primeira, calma, firme concisa, representou muito bem o Bloco de Esquerda. Aliás, a meu ver, a merecer um lugar no futuro executivo a eleger no próximo Outubro.

A segunda estrela, João Louceiro, sem dar descanso nas interpelações a Marqueiro, esteve muito bem. Talvez se não juntasse tantas questões em pacote para cada intervenção a sua mensagem passasse melhor. De qualquer modo esteve muito bem.

Já, retirando um ou outro, como exemplo Nuno Santos, presidente da Junta de Casal Comba, a maioria dos seus colegas esteve muito aquém dos mínimos. Pareciam que estavam ali unicamente para o “aprovo” e “não concordo”. Já se sabe que tendo o PS maioria na assembleia havia uma certa necessidade de não desagradar ao chefe. Porém, o silêncio mostrado foi ensurdecedor. A falta de debate empobreceu a sessão. Uma pena, digo eu.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

UM HOMEM (IN)ACABADO

 

(imagem de Leonardo Braga Pinheiro)




No povoado rural, localizado na Beira-Baixa, a família Ribeiro, para além de contar muitos porcos, vacas e cavalos, era proprietária da maioria de terras aráveis e arbóreas em redor da aldeia e até ao Sol se perder no horizonte. O barão era o Senhor Joaquim (“Senhor” com maiúscula, como obrigava o grau de importância) e a matriarca era a Dona Francisca (para os amigos e mais chegados a Dona Francisquinha).

Como era costume em finais de 1960 e princípio da década seguinte, a multiplicação da prole era feita dentro do mesmo círculo de consanguinidade, entre primos e chegados, para não se parcelar ao desbarato a propriedade. O lema era manter e acrescentar a riqueza, jamais dividir por algum pé-rapado que se apresentasse como candidato a nubente.

Na grande sala de jantar da grande casa agrícola, decorada com longos reposteiros e cortinados de linho e vários quadros a óleo com a genealogia familiar recuada, a enorme mesa de carvalho sobressaia.

Aquela noite de consoada era especial. Com os candelabros e os talheres de prata a refulgir o crepitar das chamas provindas da avantajada lareira guardada por dois leões em pedra, os oito filhos, quatro rapazes e quatro raparigas, sete deles já arrumados com respectiva consorte e já alguns rebentos, estavam todos sentados na lateral em cadeirões com espaldar. Nos topos aconchegava-se o pater-familia e a esposa. Os muitos criados, como sombras misteriosas sopradas pelo vento, cirandavam para que nada faltasse naquela noite tão extraordinária.

Afinal não era todos os dias que se brindava ao anúncio de casamento do último filho. Hilário, para além de estar bem colocado nos caminhos-de-ferro, era um homem alto, bem vincado na personalidade e bem-apessoado na apresentação. “um pão”, como pensava a sua noiva, de maças do rosto ruborizadas, acomodada a seu lado. Etelvina, moçoila filha de boa e bastada família, virgem, com tudo no sítio, imaculada de peito erecto, era linda de fazer ressuscitar um morto.

Mas no meio daquele ruído tão próprio onde ressalta a exaltação da alegria, entre os futuros sogros de Etelvina havia um olhar de profunda preocupação. Como raios infravermelhos a atravessar aquela longa mesa, Joaquim e Francisca, volta e meia com a fronte enrugada, partilhavam um segredo que viria a mudar a vida da sua futura nora.


II


Veio a Primavera, regressaram as andorinhas com o seu chilrear de esperança, e a rua principal do povoado, com gosto e esmero, começou a ficar toda ornamentada com ramos de acácias floridas. Desde a capela até à casa dos Ribeiros, um longo corredor atapetado de flores forrava a calçada de paralelepípedo.

O enlace de Hilário e Etelvina estava marcado para um Domingo de 13 de Maio, dia de Nossa Senhora de Fátima.

Por entre o resultado da caçada ao veado e ao javali, que antecedeu o casamento, foram abatidos cinco bezerros, três ovelhas e dez leitões.

E veio o dia. Da cidade próxima sede da diocese, para celebrar a união, veio o senhor bispo. Naquele pacato lugar recôndito, onde o Sol fustiga no Verão e o gelo enregela os ossos no Inverno, nunca se viu tanta gente vinda dos lados da serra. Aparentemente a felicidade inundava todos os corações. Todos, todos talvez não. Duas pessoas, Joaquim e Francisquinha, nessa noite, não pregaram olho. Mas, porquê?

Com os noivos a serem os reis da roda, a festa prolongou-se e entrou noite dentro, muito além da meia-noite, com baile abrilhantado pelo acordeonista mais famoso das redondezas. Por entre olhares de troça e bocas de ocasião, alguns homens mais descarados interrogavam: “mas será que ele não tem pressa nenhuma de levar a noiva para a cama?

O silêncio naquele lugar sagrado, como manto diáfano, tomou tudo em redor. Desde os vivos até aos sepultados no pequeno cemitério, todos descansavam em paz.

Foi então que, por volta das duas horas e picos, gritos lancinantes ecoaram em toda a aldeia. Velhas e novas, ricas e pobres mulheres vieram à janela e exclamara: “Meus Deus! Não há dúvida, é a voz da Etelvina, a noiva! O que teria acontecido?”

O resto da noite foi todo passado em claro. A curiosidade roía os braços de Morfeu e impedia que qualquer um se deixasse embalar na mais humilde sonolência.


III


Apesar da bisbilhotice corroer a alma, ninguém ousou bater à porta da recém-casada para saber o motivo dos berros que rasgaram a noite.

Se é certo que não houve repetição da gritaria, também era verdade que aquele episódio carecia de explicação plausível. E na falta da verdade contam-se histórias picantes e inverosímeis. Aos poucos, foram-se inventando boatos que preenchiam o vazio de conhecimento. Para uns, talvez a maioria, o Hilário era extraordinariamente dotado e tinha assustado a pobre esposa, Etelvina. Para outros, a rapariga, virgem, como nunca vira um homem nu, mais que certo, assustara-se com tanto pêlo que o marido carregava no corpo e confundira-o com um macaco.

E tudo teria ficado na indefinição, não fora o caso da mulher começar a decair físico e mentalmente, dia-após-dia. No princípio mal-arranjada, rua acima, rua abaixo, passeava sozinha com os olhos virados ao chão. Progressivamente foi mudando para pior. Passou a andar acompanhada com um cão rafeiro. E sempre que um grupo de mulheres a fitava ou lhe dava a boa-sorte, Etelvina, numa fúria incontrolada, respondia: “Suas putas! Suas cabras! Quereis homem? Vinde ter com o meu burro! Ou aqui com o meu piloto!

Por vezes, quando decorria a homilia da pequena catedral, abruptamente, o cerimonial era interrompido: “hiu… hiu… Suas putas! Querem homem? Venham ao meu piloto!

Etelvina, já num completo ensandecimento, chegou a ser encontrada completamente em pelota nas ruas e becos da aldeia. Acabou por ser internada ainda nova num hospício para doentes mentais.

Veio a saber-se que o Hilário, o marido de Etelvina, quando criança imberbe, fora mordido por um porco e este animal comera-lhe completamente o pénis. Fora tudo de tal modo abafado que, para além dos progenitores, ninguém mais sabia.

domingo, 27 de dezembro de 2020

LADRÕES DE PRESÉPIOS

 

(Foto de Fátima Cristina)



Segundo Fátima Cristina, membro do grupo “Mealhadenses que amam a sua terra”, na sua página no Facebook, dá-nos conta de que, num procedimento reprovável a todos os níveis, um ou mais ladrões, roubaram o presépio, constituído por seis imagens médias, Nossa Senhora, São José, o Menino Jesus, o boi, a vaca e a ovelha, em Santa Cristina, próximo da Pampilhosa.

Citando Fátima, “A Comissão da Capela e a população de Santa Cristina estão muito chocados e tristes... Roubaram o presépio da Nossa Capela...

Nesta época tão difícil para todos, em especial para os nossos velhinhos, o Presépio era um motivo de alegria.

Nunca pensámos que algo assim pudesse acontecer na Nossa pacata Aldeia, temos pena que haja pessoas que possam fazer tais ações.”

Certamente não teria sido brincadeira – a ser, foi de muito mau gosto -, mas se foi, apelamos a quem o fez que, numa noite destas de frio e neve, assim como foi levado envolvido nos braços de Morfeu – poderia até ser consequência de sonambulismo -, que seja devolvido à sua proveniência.

Como deixou transparecer a autora, não é o valor real das peças que se alude – que salvo melhor opinião, não será de grande monta -, mas o sentimentalismo imanente, a espiritualidade que este quadro, nesta época festiva de celebração da família, representa para os nossos vizinhos da aldeia de Santa Cristina.

Diz o povo no seu aforismo popular, quem, no Natal, rouba um Menino Jesus, ao longo do ano vai carregar uma cruz.

Portanto, senhor(es) ladrão(ões), para que uma brincadeira planeada não resvale para coisa muito séria, vamos lá devolver o seu a seu dono.


  E O LUSO TAMBÉM NÃO ESCAPA


Soubemos agora, também nesta data, 23 de Dezembro, foi furtada uma tábua alegórica ao Natal pintada com a imagem da sagrada família e a mensagem de “Boas Festas”.

Segundo a página da Junta de Freguesia de Luso, no Facebook, “Caros Lusenses, é com tristeza e mágoa que somos obrigados a partilhar convosco que durante a tarde de hoje, 23/12/2020, alguém decidiu roubar uma das tábuas do presépio que a população do bairro de Luso D'Além colocou no jardim da Tibéria. As fotos são da tábua que foi roubada, que já esteve colocada em outros sítios da nossa vila e que, para além da sua beleza natural, traduz a beleza do amor e dedicação das pessoas que, com carinho e entusiasmo, a criaram. Estamos solidários. Todos somos lesados. Pedimos a quem tenha algum tipo de informação sobre este acto repugnante que nos faça chegar de alguma forma. (...)





quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

FELIZ NATAL

 



Na qualidade administrador do blogue, desejo a todos os membros um feliz Natal na companhia de quem mais amam. Nesta época festiva - mas normal e menos atípica -, tenho por costume oferecer uma viagem ao Reino Unido.

Este ano, valha-nos o nosso imenso pesar, devido ao malfadado corona-vírus, vi-me completamente impossibilitado de cumprir a tradição. Ainda tentei marcar com a embaixada para a possibilidade de falar com Boris Johnson, mas disseram-me que o primeiro-ministro inglês estava no cabeleireiro a tentar um penteado decente para comemorar o recente acordo com a União Europeia.

Assim sendo, nem imaginam como estou pesaroso, tenho de adiar a entrega de vouchers para o ano. Fica a nossa esperança. Mesmo assim, Feliz Natal para todos.


terça-feira, 22 de dezembro de 2020

PIETÁ





Não, a mulher está dormindo,
juntamente com o menino,
talvez sonhe que está indo,
levando o seu pequenino,
para a sua terra, partindo;
Ali, na Loja do Cidadão,
onde começa o Eldorado,
para uns, que já cá estão,
pensam: “está tudo arrumado!”,
outros, valorizam até tostão;
Tal quadro não deixa de ser irónico,
o “hoje”, afirmativo, da cidadania,
a disfunção entre o “ser” e o biónico,
concentrando a vontade e a mais-valia
na máquina, desprezando o “ser crónico”;
A alma desta mulher é a “Piedade”,
retrato dum tempo corrente,
sofrida, chora de saudade,
pela injustiça que sente,
nos humanos, a sua maldade;
Lá, o menino representa Jesus a morrer,
nos braços caídos da Virgem Maria,
a mulher dorida simboliza o sofrer,
a Loja do Cidadão, a fé, a utopia,
a gente que passa, a insensibilidade do “ser”. 


quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

CONTO DE NATAL: A “TI” RITA

 

(Imagem da Web)




Durante tantos anos que até lhe perdi a conta, da minha janela, eu segui os seus passos. Eles eram metódicos como um relógio suíço. De segunda a sábado eu sabia o que ia acontecer fora da sua casa. E lá dentro, no aconchego das suas quatro paredes, eu especulava com cada passo percorrido no soalho de madeira. Chegava mesmo a parecer ouvir o seu arrastar cadenciado e silencioso dos seus pés naquele chão brilhante e bem-limpo de um primeiro-andar.

Impreterivelmente, às 9h30, com a sua roupa simples e chinelas de trazer por casa, ela descia os vários lances de degraus e saía para comprar o jornal ao quiosque ali a dois passos. Uma hora depois, às 10h30, saía com o marido de mãos dadas para fazer a sua caminhada – ambos vestiam fatos de treino e calçavam sapatilhas. Pelos traços e madeixas brancas, ambos estariam aposentados.

Sessenta minutos depois regressavam ao lar. Como se eu fizesse parte de um enredo de espionagem do escritor John Le Carré, do meu ponto de observação, eu registava tudo o que via e tentava adivinhar o obscuro e imaginável.

Aquele casal no patamar dos três terços da vida era a porta de entrada de um tempo misterioso e imprevisível que se aproximava de mim a passos rápidos. Na casa do meio-século, provavelmente, em relação a eles, eu teria menos vinte anos. Aqueles cônjuges simbolizavam a paz interior que eu tanto desejava e não tinha na minha vida. Olhava para eles e, como se constituíssem um quadro realista de um bom pintor, sei lá, talvez Henrique Medina, realizava a minha catarse, método psicanalítico que consiste em trazer à consciência recordações recalcadas. Tantas vezes, olhando da minha janela, eu dava por mim a apanhar duas lágrimas rolantes pelo meu rosto ressequido de amor.

Profissionalmente, eu trabalhava em costura. Era costureira, ou modista, se preferirem por ser mais pomposo. Foi devido ao meu talento para o corte e costura que fui trabalhar para aquele estabelecimento de pronto-a-vestir e de vestidos por medida. O atelier era também no primeiro-andar. Com uma grande janela que abarcava todo o largo em frente aos meus olhos, eu memorizava cada gesto, cada sorriso dos vizinhos próximos. Era uma espécie de peça de teatro em jogo mental, em que os actores, os confinantes, logo que davam um passo em direcção à rua, antecipando-me à realidade tangível, efabulava o que ia suceder antes de acontecer.

Estou em crer, nenhum dos “vigiados”, em tempo algum, se deu conta do meu atrevimento. Um facto curioso, apesar dos anos passados na função investigadora, nunca cheguei a saber o nome verdadeiro de qualquer deles. Quando nos cruzávamos, reciprocamente, apenas saía a saudação habitual: “bom dia ou boa tarde ou boa-noite”.

Eles eram apenas figurantes de uma comédia, entre o trágico e o cómico, inventada por mim. Mas todos tinham nomes. Sem padre de paróquia, eu fazia a sua consagração. Foi assim que baptizei a “Ti Rita”.


II


Como estava na hora de almoço, antevia “Ti Rita” agarrada ao fogão. Tendo em conta que possivelmente seriam assalariados por contra de outrem, ou talvez funcionários públicos, seria, porventura, uma cozinha modesta, numa casa tradicional portuguesa, onde se viam muitos objectos pendurados nas paredes. Era como se cada coisa identificasse uma época das suas vidas cheias de pequenas coisas, e cada coisa contasse uma passagem.

Enquanto a esposa fazia o almoço, o marido, com muito carinho estaria a pôr a mesa. De seguida daria um amoroso beijo ao de leve na consorte e, pondo a rodar um vinil de Leonard Cohen no pick up. Ouvindo, absorvendo a voz rouca do canadiano, sentou-se no sofá da sala a ler o jornal do dia - fantasiava eu na minha memorial história melosa.

Quando o relógio, da marca “Reguladora”, pendurado na parede branca da sala por cima do terno de sofás de veludo, bateu as 2h30, como habitualmente, já o casal transpunha a porta de saída e o batente em ferro secundou a máquina horária de corda manual.

Como sempre, o marido, todo janota, soergueu o tronco, puxou as calças para cima na zona do cinto, distendeu o colete, ajeitou a gravata, acariciou o chapéu e deu um pequeno beijo da amor à mulher.

A “Ti Rita”, toda apessoada e produzida em quase uma hora em frente ao espelho da retrete, num relance como só uma mulher consegue, como nada disse, deu por aprovada a indumentária do companheiro. E, num passo cadenciado de militar russo, atiraram-se à rua.

Eu sabia que, com grande precisão, noventa minutos depois eles regressariam ao ponto de partida. Na meia-hora subsequente, a mulher iria estender os seus trapinhos humildes. Pela qualidade dos lençóis algo coçados e sem marca dava para ver que eram mesmo um par de pessoas simples como tantos milhares que atravessam este Portugal de norte a sul.

Uma vez por semana, junto à porta, um automóvel meio-descolorido e já cansado de rodar parava. Do seu interior, um homem na casa dos “cinquentas”, abandalhado no porte, saía e tocava à campainha. “Ti Rita” vinha à janela e debruçava-se sobre o visitante. Em seguida atirava uma chave para baixo. O indivíduo, baixando-se sobre o chão, apanhava o objecto que permitia a intrusão. Abria a porta traseira do carro, retirava uma trouxa atada com dois nós e subia as escadas de acesso ao piso cimeiro. Dez minutos depois, fazia o trajecto inverso com roupa muito bem dobrada – presumi que seria um seu filho único, sem trabalho nem vontade de trabalhar. Um peso-pesado que, parido por aquela mãe, o que os ligava era o amor incondicional e a consanguinidade.


III


Um dia, logo de manhã, fui alertada pelo som aflito de uma ambulância com o sonar ligado e a parar junto à casa da minha narrativa. Em corrida, entraram dois para-médicos com uma maca. Passados escassos minutos levaram o homem da casa para o hospital.

Passados dias, do meu ponto de observação, apercebi-me que “Ti Rita” vestia de preto dos pés à cabeça – coitada, o marido morreu!, dei por mim a lamentar e a pensar que a minha história estava quase a ver o fim.

Ainda não tinha caído uma folha anual no calendário quando, de repente, vejo a mulher, como fresca e viçosa alface, toda rejuvenescida a sair para comprar o jornal. Seria a mesma? Dei por mim, em solilóquio, a questionar os meus botões. Anda passarinho novo a fazer ninho no beiral, concluí.

Poucos dias passados, comecei a ver um carro de boa marca a parar junto à porta da velhota. O condutor, numa prestação de cavalheiro estudada em longas noites de insónia, rapidamente saía e ia abrir a porta lateral à madame.

Da minha janela, eu adivinhava o deleite da velha senhora. Entravam juntos e cerca de uma hora depois o galã, com ar um pouco ajoujado, batia a porta e seguia a sua existência no seu popó, extensão de si mesmo.

Curiosamente, o vestuário estendido a secar na roldana subiu de patamar de classe. Agora a roupa da cama era muito mais fofinha.


IV


Depois de largo tempo de rotina repetida, novamente uma ambulância estava parada junto à casa por mim inspeccionada. Sentada numa cadeira de rodas, vi então a “Ti Rita” ser transportada, presumivelmente, para ser avaliada por um médico no hospital.

Mais uma vez, arranhando na cabeça, em perspectiva, estava a ver o breve fim da minha cusquice.

Para minha surpresa cerca de uma semana após a saída da velha moradora, vi que o pequeno edifício estava parcialmente coberto com tarjetas de “Vende-se - negociação particular”, seguido de um número de telefone.

Em pensamento de epitáfio, soletrei: descanse em paz!. E fiz o funeral à minha analisada.

Passados meses, foi num Dezembro de Natal que avistei vários homens a retirarem os muitos anúncios de venda. Mais uma vez, numa conjectura tão minha, acreditei que ia ter novos locatários e, assim, prosseguiria o meu jogo.

Foi então, para minha grande surpresa, que avistei a “Ti Rita”, ainda um pouco combalida, a entrar no seu velho lar.

No quiosque dos jornais, vim a saber que o filho, dando-a como morta e falsificando documentos, esteve à beira de lhe vender o prédio.

Rematou o vendedor de jornais: “olhe, menina, foi um verdadeiro milagre de Natal a senhora ter recuperado a saúde!


terça-feira, 15 de dezembro de 2020

VEM AÍ O NATAL! OUTRA VEZ? JÁ?

 

(Retirado da Web)



VEM AÍ O NATAL! OUTRA VEZ? JÁ?


É Dezembro, as folhas, cansadas de uma vida presa, vão caindo lentamente...

Dando lugar a outras que nascerão de novo na Primavera em sua substituição...

O Outono, em sopro de brisa suave, vai caminhando em busca do seu sucessor...

O tempo, na sua marcha lenta, dá uma das suas muitas faces de quarto-crescente...

As andorinhas, abandonando seus ninhos, já partiram em busca de outro chão...

Deixaram memórias vivas, construídas em beirais, de uma vida errante, o lavor...

A percorrer milhares de léguas, cortando continentes, vão regressar alegremente...

Num milagre da Natureza, os novos passarinhos irão recomeçar a multiplicação...

No seu intenso chilrear ao sol-pôr mostrarão que a felicidade é apenas um clamor...

Um sentir dentro do peito, um bater no coração, uma flor que cresce, uma semente...

Um rio de águas calmas, um prado verde deitado ao Sol, as palavras de uma oração...

Numa roda natural, a seguir ao frio de geada, inevitavelmente, virá o tórrido calor...

Por maior desastre que aconteça, em equilíbrio preciso, tudo tenderá para o ausente...

Um porvir de mudança, um futuro de esperança, uma existência nova, uma bênção...

Um Natal solidário, uma quadra solta de poesia apócrifa, uma perene época de amor.

NOTÍCIAS DE BARRÔ: AMANHÃ O SENHOR PADRE VISITA-NOS

 





Amanhã, Quarta-feira, pelas 10h00, inserido em visita de cumprimentos natalícios e pastorais às comissões de capelas do concelho, na qualidade de pároco agregado, o padre Rodolfo Santos Oliveira Leite visita Barrô.

Segundo Edite Pedro, da missão de capela local, “ao que sei, o sacerdote, numa visita rápida, já que vai fazer o mesmo em outras aldeias, vem apenas apresentar cumprimentos à nossa comissão. Evidentemente que se alguns moradores quiserem estar presentes serão bem-vindos. Contudo, a visita específica para se apresentar à população, tanto quanto julgo saber, será agendada para mais tarde, certamente quando passarem os efeitos nefastos da pandemia.

Relembro que o actual sacerdote substituiu recentemente o padre Carlos Alberto da Graça Godinho. Segundo o Anuário Católico de Portugal, consignado pelo Arcipreste Coimbra Norte, Rodolfo Leite, o novo presbítero, tem à sua conta o serviço pastoral em Barcouço, Casal Comba, Mealhada, Vacariça e Ventosa do Bairro, Luso e Pampilhosa. Para além disso, é também Capelão da Santa Casa de Misericórdia da Mealhada.


MENSAGEM DE NATAL DO PÁROCO”


Esta semana, Barrô foi surpreendido por um desdobrável em folha A4, em cores em que o azul predomina, com a “Mensagem de Natal do Pároco – Dezembro 2020 – Unidade Pastoral da Mealhada”.

Dividida por dois itens, o primeiro, a predominar, é uma “oração para a noite de Natal”. Para ser lida “na melhor oportunidade, antes ou após a consoada”, é apresentada como uma peça de teatro; temos um narrador, o público assistente e o leitor.

No segundo, na última parte, a “Mensagem do Pároco”, naturalmente sobre o Natal, sobressai:

Caros paroquianos:

Venho saudar-vos com muito afeto, nesta época tão especial e tão bela que estamos a viver. Contudo, este ano, não deixa de ser um natal diferente. A pandemia veio transformar os nossos hábitos, complicar as nossas vidas e pôr em suspenso os nossos projetos e o nosso futuro. (…)

E termina com um “Santo Natal!”.

Assinado, “O vosso Pároco, Padre Rodolfo Santos Oliveira Leite


domingo, 13 de dezembro de 2020

NOTÍCIAS DE BARRÔ: O BOM FILHO À CASA TORNA

 

(Foto de arquivo)




Depois de trinta e três anos por terras helvéticas, António Dias Taveira – o Taveira como era reconhecido no meu tempo e na sua passagem pela escola primária da Lameira – regressou de vez à terra que o viu nascer, mais propriamente à aldeia de Barrô.

Decorria o ano de 1987 quando o Taveira, fazendo um balanço entre o que tinha à sua disposição e o futuro que se aproximava a passos largos, rumou à Suíça, um país montanhoso e situado no centro da Europa considerado à época o eldorado de alguns barrosenses e muitos outros milhares de nacionais.

Como exemplo do português “self made man” que tão bem conhecemos, sem qualquer receio, metendo as mãos ao que aparecia para alcançar a desejada tranquilidade pessoal e familiar, começou por trabalhar numa quinta agrícola (“une ferme”, como recorre o António, ainda muito familiarizado com o francês) onde fazia o que era necessário.

Depois de poucos anos na agricultura, foi para uma empresa de construção onde se manteve também alguns anos.

A seguir, numa experiência que considera única e de grande formação humana, encaixou-se numa casa mortuária. Durante cerca de uma dezena de anos, dando cada vez maior valor à vida, conviveu de perto com a morte.

Para terminar a sua faina laboral em beleza, manteve vários anos e até há pouco a ligação a um escritório que tratava de tudo o que respeitasse a correspondência.


UM FIOZINHO CHAMADO SAUDADE


Mesmo com a inolvidável maravilha natural dos lagos, das vilas, dos picos elevados dos Alpes suíços, o António, naqueles momentos de maior introspecção, dava por si a pensar na sua pequena aldeia, Barrô, aquele enclave situado entre a Mealhada e o Luso, onde se encontram os seus ancestrais. Tinha muita saudade do Sol que beija as cercanias desde a Ribeira do Salgueiral até ao alto do Couto, no ponto norte da povoação. Tinha nostalgia dos seu familiares e, apesar de estar afastado há muitas décadas, das gentes humildes do lugar. É certo que os mais novos, os filhos da velha geração, não os iria reconhecer. Mas, tinha a certeza, sendo o povoado historicamente decano na arte de receber, tudo iria correr bem.

É também certo que a decisão de regressar às origens juntamente com a sua esposa implicava separar-se dos seus quatro filhos, todos já com a vida organizada na nação dos trilhos e estações do esqui e dos célebres bairros medievais, mas o corte nunca seria definitivo, de tempos a tempos voltaria a abraçar os seus, o sangue do seu sangue.


E COMO VÊS BARRÔ, AGORA?


Na comparação entre a povoação que deixou em 1987 e hoje, António Taveira não tem dúvidas: “não tem nada a ver com esse tempo! Mas vejo isso a duas velocidades”.

A primeira, hoje, para seu contentamento, todas as ruas estão alcatroadas – embora umas melhor que outras. Nota-se uma grande preocupação geral com o meio-ambiente. A limpeza é uma constante. Nota ainda que, aparentemente, todos os habitantes têm um nível económico muito acima do que se vê noutras terras.

A segunda, apesar de ainda estar aqui há pouco tempo, apercebe-se que, quando anda por aí a passear os cães, não se vê ninguém nas ruas. “Ora, embora tente entender os novos costumes, isto é uma total contradição com o nosso tempo de meninos”, enfatiza.

Em meu nome pessoal e em nome do nosso lugar de eleição, se posso escrever assim, apresentamos as nossas cordiais saudações e as boas-vindas ao António Taveira.


FALECEU UM DOS NOSSOS GRANDES COLEGAS

 





Antes de ontem, na sexta-feira, realizou-se o funeral do nosso prestigiado e reconhecido colega das lides comerciais, Jorge Manuel Baptista Mendes, de 89 anos, sócio-gerente do grupo de lojas Jorge Mendes. Com três estabelecimentos com o mesmo nome em Coimbra, dois na Praça do Comércio e outro na Rua dos Combatentes, o Kilo Americano, todos dedicados à decoração para o lar.

Com um pouco de atraso, à família enlutada, em meu nome pessoal e em nome da Baixa comercial, se posso escrever assim, as nossas mais sentidas condolências. Que o nosso querido amigo descanse em paz.


UM POUCO DA SUA HISTÓRIA


Nascido em 1931 numa família de cinco filhos onde o bichinho do comércio era o sangue que corria nas veias e artérias e alimentava o coração da prole, nem o facto de a economia mundial se encontrar em profunda depressão – originada pelo “crash da bolsa”, em que os valores cotados na Bolsa de Nova Iorque caíram a pique e, com essa queda abrupta, ter desencadeado uma crise mundial – levou a que o velho Mendes, o progenitor do agora homenageado, deixasse de incentivar o seu rebento a seguir as suas pisadas logo a seguir aos estudos básicos.

Decorria o ano de 1946 quando, com 15 anos de idade, começou a trabalhar no número 99 da antiga praça velha, no estabelecimento familiar.

Quis o destino que seu pai, o timoneiro do negócio, adoecesse precocemente e, por este facto anómalo, fosse empurrado ainda novo para o leme do barco mercantil. Apesar dos tempos difíceis que se viviam em Portugal, sobretudo com o rebentamento da guerra nas ex-colónias, o jovem Mendes, então com 33 anos, sonhador e com grande sensibilidade para a nobre arte de negociar, balouçava entre atirar-se para novos projectos na área do desporto ou na decoração de interiores. Como o gosto pela segunda tocava mais fundo e era uma paixão, acabou por enveredar num longo caminho que, apesar das dificuldades que todo o comércio a retalho atravessa, nunca se arrependeu – falava o agora falecido numa longa conversa, agora recuperada, há dois anos, em 2018, por ocasião do seu 87º aniversário.


O COMÉRCIO TRADICIONAL VISTO PELO OLHAR DE UM VETERANO


As grandes superfícies comerciais são as grande causadoras da morte da decoração de interiores e de vários ramos do comércio tradicional. Prometem muitos empregos mas depois vê-se que não é assim. O grande empregador foi sempre o comércio tradicional” - enfatizava Manuel Mendes numa conversa que, pelo gosto em ouvir, me deu muito prazer.

Você já viu o Leroy (Merlin)? Tem tudo! Não é barato! Tem é mais quantidade que qualquer loja. Tem stocks brutais!

O comércio está muito enfraquecido! Os comerciantes, no geral, perderam a capacidade financeira. O comerciante está desmotivado e afogado em dívidas. O comércio de rua continua a perder qualidades. Hoje a concorrência está em roda livre. Estamos subjugados ao grande capital Global. O pequeno comerciante não pode competir”.


E COMO VÊ A BAIXA, SENHOR MENDES?


Vejo o futuro da Baixa muito complicado. Um dos muitos problemas é o estacionamento a pagar, porque afasta os clientes. Outro ainda foi a saída das lojas-âncora da zona histórica.

Para a Câmara Municipal de Coimbra o comércio não tem qualquer registo de importância.

A Agência para a Promoção da Baixa de Coimbra tem feito um bom trabalho para trazer pessoas para a Baixa, mas para o comércio, especificamente, traz pouco retorno.

O metro ligeiro de superfície é fundamental para o desenvolvimento da Baixa. Estou muito esperançado. Se for concretizado, vai haver uma mudança muito grande nesta zona.

Para inverter a actual situação é preciso haver menos casas abertas mas de melhor qualidade - e aqui estou a incluir o comércio e a indústria hoteleira. A maioria não tem qualidade.

Por outro lado, há uns anos falei com o engenheiro Craveiro (João Paulo Craveiro) e ele defendia uma tese que eu não concordei. Dizia o engenheiro que, devido ao facto de algumas ruas serem muito estreitas e impedirem o sol de entrar, se a oportunidade surgisse, era preciso que a autarquia adquirisse e mandasse demolir alguns quarteirões com prédios centenários para construir ilhas onde a luz entrasse e evitasse o cheiro fétido que se respira por vezes. Hoje, passado algum tempo, concordo inteiramente com ele. Repare o que se fez no Largo do Romal. Há cerca de cinquenta anos mal se respirava. Alguns edifícios foram abaixo e hoje, como vê, está lindo.

Estou muito feliz por ainda estar a trabalhar diariamente nas lojas. Cumpro três horas de manhã e outras três durante a tarde.

Nunca atropelei ninguém. Fiz sempre o mais correcto com a concorrência. Por isso tenho muitos amigos. Nas minhas lojas foram muitos os comerciantes que ali tiraram o curso.”. Entrevista realizada em 2018.


terça-feira, 8 de dezembro de 2020

PROCURA-SE A MAGIA PERDIDA DO NATAL

 

(Imagem da Web)



Estamos a cerca de duas semanas do Natal. Como prisioneiros que esperam apenas o anúncio da hora da execução, os comerciantes em geral, a restauração e a hotelaria, enrolados num manto de melancolia causada pela pandemia, perdidos num estado de emergência, que, sendo alegadamente excepção, passou a ser a norma vigente, dentro de outro Estado avassalador.

Olhando a porta de entrada - sempre que a podem manter aberta -, à espera do cliente-surpresa que lhe safe o mês, vêem o fim cada vez mais próximo – este início de texto é desgraçado e apocalíptico? É, sim senhor! Mas fique o senhor leitor a saber que é a verdade. Este é o ambiente que se vive atualmente em Portugal.

Com poucas saídas, o pequeníssimo comerciante de roupas, fazendo directos em vídeos de vendas, repetitivos, uns atrás de outros, vira-se para o online. Sem se aperceber que está a dar um tiro no pé, prossegue o seu caminho em busca da salvação financeira. Sem dar conta que o que vende, sob honrosas excepções, é tudo igual e provém do mesmo fornecedor chinês, no norte do país, o seu horizonte, a curto prazo, é a destruição individual e colectiva de todo o sector. Substituindo a técnica da feira popular de rua, invadindo tudo o que é página da Internet, a vulgaridade veio para ficar até ser compulsivamente arredada por ineficácia.

Na sua filosofia, a compra sempre esteve envolvida em três premissas: o desejo, a originalidade e o mistério. Ora, está de ver que estas compulsivas ofertas em massa arrasam todos os princípios de motivação social.

Por outro lado, o preço sempre foi o fiel da balança que separa a sociedade, mas sempre a cair, inevitavelmente, contribui para a vulgaridade e o desinteresse geral.

O usuário da Internet é como um predador em busca da sua presa. Incessantemente, procura galinha gorda por pouco custo e a novidade. Se quanto ao preço estamos conversados, por que à medida que os preços embaratecem por força desta concorrência selvática, a margem de lucro diminui e o vendedor, sem o conseguir evitar, vai resvalando mais para o fundo do fosso; já no que toca à originalidade, sendo quase tudo igual, está à vista uma overdose colectiva, cujas consequências se adivinham pessimistas.

Escamotear esta veracidade é negar a própria vida e fazer de conta que tudo vai bem.

É difícil não ser negacionista e não aceitar o que está a acontecer como uma tese da conspiração. Que o que se perspectiva, por um lado, é o desmantelamento da economia social, tal como a conhecemos até aqui, assente numa classe média com auto-emprego nos seus pequenos negócios, por outro, um ataque certeiro à liberdade. Assente nas actuais condições de ciclo, produzir, vender e comprar, se a venda e a compra desaparecerem na micro-economia o processo económico das famílias desmantela-se como um castelo de cartas. Quem sai bem deste desastre anunciado? O império das grandes marcas e a grande economia, naturalmente.

Felizes daqueles que, extasiados num amanhã que nunca chega, se negam a aceitarem esta certeza e continuam a pedalar numa bicicleta presa ao chão.

No conjunto, os comerciantes mais antigos, sem força anímica, desbaratando diariamente as poupanças de uma vida, estão velhos pela idade e os mais novos, recém-chegados à actividade, descapitalizados e sem chão, estão envelhecidos pela frustração de verem os seus sonhos, carregados de otimismo utópico agora realizados, serem esmagados pela brutalidade da realidade.

Se o desanimar é o verbo, a esperança numa época de vendas como era o Natal já foi. Para aumentar o desalento crescem interrogações para o futuro.

Com uma CCP, Confederação do Comércio e Serviços de Portugal, débil na defesa do comércio nacional, com associações locais insolventes ou com um pé na falência, os lojistas, sem um órgão associativo forte que os defenda institucionalmente, estão entregues à sua sorte.

Uma coisa é certa, os pequenos operadores, neste Natal e outros que virão, estão entalados entre um presente cheio de incógnitas e um futuro que, infelizmente, cada vez mais se augura pouco auspicioso. Mesmo Assim, sem se saber onde e como, tenhamos fé.


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

QUE DIA É AMANHÃ?

 

(Imagem da Web)



QUE DIA É AMANHÃ?


Amanhã é dia de Natal!
Eu quero lá saber se amanhã vai chover,
se não vai haver vinho para beber,
se esta noite, com insónia, vou dormir mal?
Amanhã é dia de Natal!
Que me importa os vetos e os recados do presidente,
o desdém, a dor de corno que alguém com isso sente,
e digam que esse comportamento só lhe fica mal?
Amanhã é dia de Natal!
Gritem à vontade contra esta maldita virulada,
contra o estado de emergência, o confinar, que são chaga,
Mas, por favor, não me desanquem a bater no meu portal,
Amanhã é dia de Natal!
Não me falem das assinaturas para a candidatura do Marcelo,
acerca do tabu, do mistério que eu não afivelo,
é um assunto, não-assunto, natural,
Amanhã é dia de Natal!
Não me embrulhem em coisas que deveriam ser religiosas,
ou outras quaisquer vontades cínicas e manhosas,

não se agarrem ao poderzinho, que parece mal,
Amanhã é dia de Natal!
Que tenho eu a ver com a queda do PSD,
se foi por erro crasso, não fui eu nem você
que contribuímos para o trambolhão e pantanal,
Amanhã é dia de Natal!
Não me enterrem no mar de angústia e tristeza,

como se este mundo lacrimoso findasse a sua natureza,

mostrem-me alegria, riam com graça, façam um arraial,
Amanhã é dia de Natal!
Livrem-me da polémica do Covid-19 e da vacina,

recuperando a fé na economia, acabando com a rapina,

não me azucrinem com a cobardia endémica, que é boçal,
Amanhã é dia de Natal!
Recordem-me o rico o cheiro à abóbora e à canela,

o pinhão que torra no forno-a-lenha, e ao lume a panela,

o leite-creme queimado pela espátula abrasada no metal,

Amanhã é dia de Natal!

Relembrem-me o Menino Jesus, e o espírito que o rodeava,

o sapatinho na lareira, o desejo da criança, nas prendas que ansiava,

o Pai Natal, a descer pela chaminé, com o seu silêncio genial,

Amanhã é dia de Natal!

Tragam-me o Natal perdido. Enviem-me um postalinho,

tenho a saudade a bater à porta desse tempo tão certinho.

o Natal é o toque na alma, o amolecer do espírito seminal,

Amanhã é dia de Natal!
Não me enviem “
boas festas”, em pacote, nas redes sociais,

como se o Natal fosse um barco à deriva em busca de um cais,

que volte depressa a normalidade, o beijo, o abraço, o celestial,

Amanhã é dia de Natal!

domingo, 6 de dezembro de 2020

MEALHADA: CABRALISTAS AO PODER

 

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)



Na edição desta semana do semanário Jornal da Bairrada (JB), um artigo de opinião faz parar tudo. Com o título “Entregaram o ouro ao bandido?”, Carlos Cabral, ex-presidente da Câmara Municipal de Mealhada durante 14 anos, até 2013, e eleito pelo Partido Socialista (PS) – e que viria a desvincular-se do PS já este ano de 2020 por altura da venda do capital da Escola Profissional Vasconcelos Lebre por parte da autarquia a um grupo privado -, dando nome às coisas, faz ler duas vezes o artigo em questão.

Escrevendo do alto magistério de reputação que se lhe reconhece, sem receio de ferir susceptibilidades dos seus antigos camaradas de partido e sobretudo o seu sucessor na cadeira do poder, Rui Marqueiro, o antigo edil, sem papas na língua, acusa a Câmara e a Assembleia Municipal de, “com a faca e o queijo na mão”, a coberto do interesse nacional, menosprezarem o interesse das populações locais, “quando são perfeitamente conciliáveis”, e com a sua comparticipação política na aprovação de Interesse Municipal na denominada Linha da Concordância, “entregarem o ouro ao bandido”, como quem diz à empresa Infraestruturas de Portugal.

Não é que Cabral diga mais neste artigo do que já foi escrito até à exaustão por vários articulistas, aliás, em 29 de Outubro, último, no mesmo JB e em texto seu, já falava em que vários autarcas da Mealhada, com o seu voto favorável, “entregaram a faca e o queijo” sem conseguirem em troca o que era essencial para as comunidades abrangidas. Mas há quesitos que se levantam.

O busílis da questão reside em duas premissas: primeiro, pela clarividência do artigo, bem escrito e, em lanças bem afiadas, a atingir em cheio a máquina socialista na terra do leitão. Segundo, com mais este artigo, mais que certo, é o anunciar às gentes da Pampilhosa e Travasso que está quase disponível para encabeçar um movimento de cidadãos nas próximas eleições autárquicas, que decorrerão no próximo Outubro.

A ser assim, com uma cajadada certeira mata-se duas formigas (agora não se pode nomear os cães). Uma, pegando nas “mortalhas ensanguentadas” dos prejudicados pela escabrosa decisão, lava a alma e dignidade perdidas dos vários proprietários por onde passa a linha – incluindo os pampilhosenses e a sua Estação com promessas incumpridas pela IP - no conturbado processo da Linha da Beira Alta. Outra cajadada à vista, é que a vingança serve-se fria. Se Cabral nas próximas eleições vencer a Câmara Municipal como independente, como considera ter sido destratado pelos membros do seu antigo grupo partidário, um dia, quando morrer, vai levar um sorriso aberto no rosto.

Estarei enganado?

SIC: DISCRIMINAÇÃO SOCIAL OU LUTO REFORÇADO?

 

(Imagem da Web)




A SIC, nesta tarde de Domingo, alterou a sua programação habitual em memória da lamentável morte de Sara Carreira, de 21 anos, ocorrida ontem num brutal acidente de automóvel na A1.

Todos os Domingos, durante a tarde, a televisão de Balsemão tem apresentado o “Domingão”, um programa de música, protagonizada por artistas portugueses, durante cerca de cinco horas.

Ora, em face do trágico fim da herdeira do clã Carreira, o que fez a televisão generalista? Passou o filme “A vida de Jesus” e, nos intervalos, esteve sempre a mostrar trechos da vida curta da cantora. Estará certo? Como espectador diário da SIC, creio que não. Estamos perante um denodado exagero lutuoso na figura em apreço. Parece que faleceu o nosso Chefe de Estado – vade rectro, Satanás.

Do ponto de vista social, um desastre desta envergadura, sobretudo, envolvendo uma jovem que muito teria para dar às artes, é sempre penoso e lamentável. Do ponto de vista pessoal, qualquer família, seja de que classe for, num caso destes, fica destroçada.

No caso presente, a família Carreira pediu respeito e contenção pela sua privacidade.

Por conseguinte, salvo melhor opinião, estamos perante um abuso de confiança da SIC; uma elevada discriminação; o parecer querer impor um luto reforçado à população portuguesa num período em que o tempo é de angústias e sofrimento.

É certo que podemos sempre mudar de canal, mas, mesmo assim, não está certo. Um canal generalista, fazendo um serviço semi-público, tem uma responsabilidade acrescida na formação intelectual e informação cidadã. E sobretudo, tendo em conta as suas diferenças - sem exagerar -, deve tratar o luto de qualquer individualidade com total comedimento e o menos espectáculo possível.

Apesar do que escrevo, não se pense que não estou solidário com a família Carreira no acontecimento funesto que a escolheu em sorte macabra.

As minhas sentidas condolências.

sábado, 5 de dezembro de 2020

BARRÔ E O SEU DESLIGAMENTO HISTÓRICO DA CULTURA

 

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)




Há dias perguntei a um meu familiar próximo se na nossa aldeia, em Barrô, actualmente, havia algum morador que tocasse um instrumento musical, mesmo que fosse jovem. A resposta foi negativa. Ou seja, num universo de cerca de uma centena de residentes, ninguém passa cartão à música. Ressalvo que nas últimas seis décadas também não me lembro de haver qualquer instrumentista no lugar.

De repente, numa viagem ao passado, recordo que a povoação foi – e ainda é – muito rica em jazidas de barro em toda a sua periferia – daí o nome Barrô - e que nas décadas de 1950/60 e 70, pela sua elevada qualidade, deram origem a duas grandes fábricas cerâmicas de telha e tijolo no alto Couto, no cimo do lugar, próximo de Vila Nova de Monsarros – na linha de fronteira com o concelho de Anadia.

Então, olhando para trás, uma pergunta subsiste: sendo o povoado tão rico em matéria-prima, a argila, por que razão nunca teve artistas ligados ao barro?

É óbvio que não se podendo responder com certeza absoluta, só podemos especular. Prosseguindo na conjectura, podemos facilmente adivinhar que a cultura foi sempre o parente pobre das nossas gentes humildes.

É claro que não podemos esquecer a nossa reputada Natália Morais, que sempre se dedicou ao empalhamento de garrafões em vime. Hoje, apesar da sua longa idade, mas de boa saúde, felizmente, a Natália, por força da sua profissão ter caído em desuso, é a nossa embaixadora cultural no concelho – um dia destes falarei dela aqui – e convidada pela Câmara Municipal da Mealhada para qualquer feira, ou mercadinho, como atracção artística.

No limite, até podemos pensar que a cultura não faz falta nenhuma. Mas será assim?

Antes de prosseguir, devemos apresentar o significado de Cultura: Edward B. Tylor dá-nos a definição. “Cultura é "todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade, extraído da Wikipédia.

Claro que a linhagem de um povo, no seu perpassar da tradição, manifestando-se na sua erudição, faz imensa falta. Acima de tudo, na ausência de alegria fisionómica, em manifestação comportamental, e afundamento na solidão e angústia colectivas.

O preenchimento dos tempos vagos com recriação artística é o alimento da alma. Gentes sem substrato cultural são um povo fechado sobre si mesmo, sem consciência da beleza que suplanta a natureza das coisas. O que transforma as pessoas de simples passageiros terrenos para humanos transcendentais é a sua espiritualidade ecuménica, relativo ao universo, à terra habitada.

Só para mostrar, por exemplo, se se pretender criar um grupo coral, um grupo instrumentista, um grupo folclórico e até um grupo de teatro cénico, inevitavelmente, a sua criação esbarra na falta de formação musical.

Se esta crónica não prestar para mais nada, ao menos, faço votos que sirva para alertar os novos pais, sobretudo para incentivarem os seus filhos para aprenderem música.

Vale a pena pensar nisto?


RECTIFICAÇÃO


Após escrever este texto na página do Facebook, vários moradores de Barrô insurgiram-se contra o facto de, segundo um informação menos certa, eu ter escrito que na aldeia não havia um único instrumentista. Felizmente, afinal há mais do que um que tocam vários instrumentos. Por outro lado, para meu contentamento, fiquei a saber que a música já faz parte do futuro de vários miúdos.

Ainda bem que estava errado. A quem se sentiu enganado as minhas desculpas.