Era
Segunda-feira desta penúltima semana de Março. Estava um dia lindo,
resplandecente, soalheiro como a anunciar a primavera. Mau dia para
aqueles cujo sistema imunitário falhou e, por causa de acidente,
grave ou leve, com dor, tosse ou mal-estar, os obrigou a recorrer às
urgências de um qualquer hospital, privado ou público.
No caso que vou narrar
trata-se dos CHUC, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra,
EPE.
Com dores no peito, uma tosse
profunda, tonturas e alguma dificuldade em respirar seriam cerca de
14h30 quando transportei a minha mulher e transpusemos a porta
sensorial do Hospital neste dia de sapateiro.
Como ela sentia um profundo
desequilíbrio, quando demos entrada nas urgências procurei uma
cadeira de rodas vazia para a acomodar. Nem de propósito, alguém,
que se prestava a sair, largou uma junto a nós.
Dirigimo-nos ao balcão e
fizemos a inscrição para atribuição de uma pulseira de cor que,
de acordo com a “Triagem de Manchester”, significa o
vermelho (emergente), laranja (muito urgente), amarelo (urgente),
verde (pouco urgente) e azul (não urgente).
O funcionário, depois de nos
questionar num resumido inquérito, entregou uma cinta amarela à
minha consorte.
Apesar de avistar vários
funcionários, entre médicos, enfermeiros e pessoal auxiliar a
entrecruzar-se pelo meio de muitas macas com doentes, ninguém se
preocupou em nos indicar os passos a seguir. Vi logo que ali
funcionava o “quem tem boca vai a Roma”. Pedi a
informação a um bombeiro, certamente à espera de um utente para o
conduzir de regresso na ambulância, e foi-me indicado.
Continuei a empurrar a cadeira
até uma pequena sala com várias cadeiras ocupadas à espera da
chamada para classificação e encaminhamento para os vários
serviços médicos correspondentes.
Cerca de meia-horas depois,
uma voz agridoce anunciava numa coluna de som pregada no tecto: “Ana
Maria (…) no Gabinete 1”.
Pensei para comigo que, pela
rispidez da chamada, deveria ser uma médica com os pés para a
reforma, agastada e farta de auferir pouco para tanto esforço.
Mentalmente comparei com o som adocicado das vozes digitais dos
megafones das estações de comboios.
Lá nos aprontámos e
penetrámos num pequeno gabinete onde, em frente a um ecrã de
computador, uma rapariga ainda nova, talvez com vinte e poucos anos,
de bata branca, nos recebeu sem grandes alardes de simpatia. Com um
seco: “De que se queixa?”, foi tomando notas na máquina
digital. Quando acabou o inquérito, virou-se para mim e, sem grande
empatia, ordenou: “vai ter de sair. Não pode estar aqui!”
Mais uma vez tive de recorrer
a pessoal exterior ao hospital para saber onde era a sala de espera
para acompanhantes.
II
A
sala
de espera era num contentor exterior com cerca de 60 metros
quadrados. Lá dentro, com uma casa-de-banho e restante área ampla,
meia centena de lugares
sentados
em chapa de ferro com buraquinhos, alinhadas, a formarem o
rectângulo, estavam parcialmente ocupados e poucos lugares vagos.
Do lado esquerdo, uma máquina,
muda e encimada por um visor, cumpria uma missão importante, mas não
dava a conhecer a sua utilidade. Mais uma vez, vendo fazer outros e
interrogando, se ficava a saber que era o instrumento, a ponte para
saber informações dos doentes previamente depositados na urgência.
Depois de colocar um dedo no equipamento, como se agradecido pelo
afago, dava-nos uma senha com um número sequencial, que, a seu
tempo, devagar, por que ali, contrariando a azáfama das urgências,
calmamente alguém chamaria. E de facto, como a interromper um
pensamento, uma voz feminina quebrou a quietude da construção
provisória: “Senha I – 220, no gabinete 2”.
Logo a seguir, em fustigo de
megafone engasgado, nova mensagem: “Familiares de Luísa ... na
entrada das urgências”.
Por cima e do lado do
acessório mudo, três aparelhos de ar condicionado, marcando 25
graus de temperatura, trabalhavam incessantemente naquela tarde
calorenta. Como um relógio parado que está certo duas vezes,
aqueles apetrechos de renovação de ar também iriam estar bem
regulados durante a noite, que se adivinhava fria e pouco
aconchegante.
Na parede em frente um LCD,
sintonizado na TVI, como um pregador que ninguém se interessava por
ouvir, debitava toda a sua programação.
No mesmo lado, encostadas à
casa-de-banho, duas máquinas de “vending”, uma com
sandes, chocolates, sumos e água, outra para bebidas quentes, chá,
café, chocolate quente.
Do mesmo lado direito de quem
entrava, uma estreita mesa mantinha em cima um frasco com álcool
desinfectante. Num novo costume, a fazer lembrar o mergulho da mão
na pia de água-benta e acompanhado do sinal da cruz ao entrar numa
igreja, a maioria purificava as mãos.
Depois de arranjar um lugar
vago, acomodei-me o melhor possível num canto do salão com uma
visão ampla do espaço. Embora não fazendo ideia do tempo que iria
permanecer ali à espera, ia preparado para esperar: levava comigo
três jornais, um diário e dois semanários.
Volta e meia levantava os
olhos dos periódicos e apreciava o que se passava ao meu redor.
Comecei a aperceber-me que muitos acompanhantes, pretendendo adquirir
um produto das máquinas de venda automática para comer ou beber,
começavam a distribuir palmadas e apalpadelas no mecanismo. Mas a
coisa, como mulher enrugada e habituada a carinhos e açoites nos
campos agrestes do interior, não cedia. Num quadro de solidariedade
alguém se levantava e ia ajudar o desconhecido.
Enquanto via repetidamente
este quadro, pensava se, quando chegasse a minha hora do lanche, iria
acontecer a mesma coisa. Apostei comigo que era capaz de me entender
com a “barriga de aluguer alimentar” a troco de moedas.
III
Ao
meu lado uma família cigana de um reconhecido clã conimbricense
estava ali representada em quatro gerações. Entraram cerca das
15h00 a, segundo ouvi, acompanharem um idoso ao serviço de
urgências. As horas iam passando e, sem informações do seu
familiar, sobretudo homens mais velhos e mais novos, ora davam uma
passagem ao exterior, ora se acomodavam na cadeira. Um deles, da
geração mais recuada, de voz rouca e um pouco entaramelada, usando
na cabeça um chapéu à texano, conversava com o ancião no
inconcebível passar de horas sem saber nada do seu ente querido.
Mesmo ao meu lado consegui perceber: “Há
muitos anos, fulano trouxe aqui um tio. Demoraram horas a atendê-lo.
Então, irritado pela pouca atenção dada pelo pessoal médico,
partiu a porta e entrou por ali dentro. Acabaram a dar-lhe razão”.
Mais ao lado, duas raparigas
da mesma etnia, com vinte e poucos anos, vestidas informalmente com
saias de ganga, e uma delas com um menino de cerca de quatro anos ao
colo, volta e meia recebia um telefonema a pedirem-lhe informações
do doente. Reparei na linguagem cuidada e demonstrando uma cultura
acima da média. A outra colega, instigada por uma senhora mais
velha, falava com desenvoltura, simpatia e conhecimento. Pensei para
mim que, apesar das dificuldades, a batalha pela inclusão deste povo
está fazer-se a bom ritmo. E é pela geração das mulheres mais
novas.
IV
Eram
cinco horas da tarde, tinha concluído a leitura do diário, um dos
três jornais que levei para, se necessário, me fazer galopar no
tempo. Como sempre faço em situações análogas, pousei o caderno
informativo na pequena mesa junto à entrada, para, por um lado, no
princípio de economia circular, dar uma nova utilidade ao que já
era imprestável para mim. Por outro, porque gosto de fazer este
teste para contabilizar os visitantes que iriam desfolhar o título.
Levantei-me e cliquei na
máquina das senhas para saber como estava a minha doente preferida.
Apesar dela ter ficado com o telemóvel, achei preferível saber
informações mais personalizadas.
O meu estômago começava a
reclamar por mais atenção. Era chegada a hora de testar a minha
esperteza para me entender com a máquina vendedora de comida e
bebida. Preparado para o embate, lá fui eu armado em cavaleiro e
postei-me em frente da besta. Claro que eu não me iria deixar ficar
mal. Olhando de cima a baixo, não consegui entender aquilo. Fónix.
Tal como muitos que me antecederam, o remédio foi pedir ajuda para
merecer atenção do objecto digital. E pronto, com uma sandes, uma
bebida e um chocolate no regaço, estava formado mais um ajudante
para outras gentes em dificuldades idênticas. Por curiosidade,
chamou-me a atenção os acessíveis preços praticados dos bens.
Regressei ao meu lugar de
observação para saciar a fome e à espera de ser chamado para obter
informações da minha Ana.
V
E
o número da minha senha, em alto som, foi chamado ao gabinete 1.
Importava agora encontrar a sua localização. Sem sinaléctica à
vista, a coisa não parecia fácil. Mais uma vez o “quem tem
boca vai a Roma”. Era no interior do piso das urgências. Uma
médica de meia-idade, de sorriso fácil e cativante, recebeu-me com
amabilidade. Ao meu comentário de que tinha sido difícil encontrar
o gabinete replicou: “Sabe, estamos em obras, está tudo um
pouco mais complicado. Atendemos aqui mais de duzentas pessoas a
solicitarem informações”. Perante o seu ar assertivo, fiquei
sem reacção. Quanto a algo sobre a minha parente disse: “Sei
que está a fazer exames, mas aqui não consigo dizer mais nada”,
enfatizou.
Acompanhado
pelo clamor constante de ambulâncias a passar, regressei ao meu
lugar. A sala de espera continuava cheia, praticamente, com as mesmas
pessoas. Volta e meia a porta abria-se para deixar passar quem
ansiava por saber da saúde de alguém próximo.
A
família cigana continuava alerta. De tempos a tempos o telefone
tocava para saber do estado do patriarca. E uma das raparigas mais
novas confidenciava: “Estamos aqui desde as 15h00. Não sabemos
nada ainda”.
Liguei
à minha mulher para saber como estava. “estou sentada numa
cadeira, já me levaram a de rodas. Ainda não me fizeram nada, nem
me perguntaram o que estou a fazer aqui. Isto parece um cenário de
guerra, com macas a baterem umas nas outras com os doentes a pedirem
atenção e o pessoal médico e auxiliar a atropelarem-se uns aos
outros”.
Quando
lhe perguntei se já tinha comido alguma coisa, respondeu: “Ainda
não me deram nada. Já pedi um copo de água, mas cada um sacode a pulga do capote dizendo que não é com ele”.
VI
Já
passava das 18h00, a tarde continuava linda e o Sol, o rei do
Universo, como se pretendesse dar força e ânimo aos presentes com a
sua matiz vermelho-alaranjado, entrando pelas vidraças de duas
janelas, numa exposição telúrica rastejante, parecia confortar e
beijar.
Atirei-me
ao segundo jornal, certamente pela ansiedade, mesmo encostando a
cabeça na parede não conseguia descansar
Eram
cerca das 19h00, a sala já apresentava algumas cadeiras vazias. Foi
então que entraram dois personagens meus conhecidos e se sentaram.
Um deles, o homem, conhecia-o muito bem. Arrumava carros junto à
Loja do Cidadão há uma dezena e meia de anos. Outrora profundamente
apaixonado pelo álcool, enganado por uma amante e desenganado pela
vida, com 66 anos de idade, é uma das poucas figuras típicas da
Baixa ainda vivas. Há cerca de uma década contei a sua história de
vida. Na altura era colaborador de um jornal com uma página semanal.
Escrevi a história deste figurão e praticamente de todos os que
deambularam pelas pedras da calçada. Muitos deles já não estão
entre nós.
Ela,
agora com cerca de 45 anos, era prostituta e sempre fez a sua vida
difícil lá na zona. Apesar de nos cruzarmos imensas vezes, creio
que nunca falei com ela. Sempre tive ideia de que era
tóxico-dependente.
Não
pareceram reconhecer-me, fosse por eu estar com máscara, ou não.
Cada um, depois de ir à casa-de-banho, retirou o seu telemóvel e
ligou-o na tomada, a recarregar a bateria.
Ele
viria a emprestar o seu carregador a duas senhoras. Tinha vários num
pequeno saco de apertar na cinta.
Passado
pouco tempo entrou um terceiro figurante. Alto, com cerca de
meio-século, limpo, bem-vestido e calçado com calça de ganga e
sapatilhas e um impressionante blusão de cor beije, ostentando nas
costas um enorme emblema da Académica. Tinha uma farta cabeleira com
cabelo branco levemente a raiar as costas. Os seus modos eram suaves
e finos. Não fosse uma pálpebra muito inchada e negra e diríamos
que era Beethoven reencarnado.
VII
Já
passava das 20h00. A sala, já com menos gente, estava mergulhada na
penumbra. Pensei para comigo que deveria ir acender as luzes, mas,
acalmando o meu ímpeto, dei por mim a ver o que acontecia. E
aconteceu: uma mulher vestida com a farda da Repsol, certamente
trabalhadora num posto abastecedor de combustível da reconhecida
marca espanhola, levantou-se, acendeu as luzes e fechou as janelas,
já que o frio invadia tudo em redor, não fosse os três aparelhos
de ar condicionado contribuírem para um ambiente ameno e levemente
aquecido.
Os
três protagonistas, logo que apanharam um banco vazio só para si,
estenderam-se ao comprido e fecharam os olhos. A mulher, com as
pernas enroladas, ficou mesmo à minha frente. Durante horas, olhando
para cada um deles à vez, fui fazendo uma espécie de catarse,
libertação de sentimentos ou emoções reprimidas.
Olhando
a mulher deitada no banco com as pernas enroladas em conchinha,
relembrei a minha primeira vez, em 1976, em que fui obrigado a dormir
num banco de Estação. Foi logo no meu primeiro dia do serviço
militar. Era Janeiro. Tinha que assentar praça em Estremoz. Como era
intimado a apresentar-me no quartel às 9h00, depois de me informar
dos horários, na véspera, abalei de Coimbra de comboio. Só que não
me disseram que o trem não ia além da estação de Portalegre, que
distava cerca de uma dezena de quilómetros da cidade. Cheguei cerca
das 22h00 e só tinha ligação para Estremoz no dia seguinte por
volta das 8h00. Dinheiro para pagar a um táxi e pernoitar numa pensão
da cidade não havia. A solução foi mesmo passar pelas brasas ali mesmo no
banco. Passei tanto frio que, à distancia de 45 anos, ainda consigo
sentir o tremor nos ossos.
Pensei
que a vida é uma espécie de roleta russa. Em cada seis pessoas, por
motivos vários, uma cai no charco e vai descambar.
VIII
O
relógio
marcava 23h00. A família cigana tinha partido há pouco. Tinha
recebido a informação de que não valia a pena esperar pelo
diagnóstico. Estava tudo muito atrasado. O melhor mesmo era irem
para casa. E foram. O salão tinha agora 8 acompanhantes e os três
sem-abrigo estendidos ao comprido.
As
informações personalizadas estavam a terminar. A partir daí só
telefonando para um número que deveria estar ali anunciado… mas
não estava.
Eu
já lera os dois semanários que me restavam. Tal como o diário,
coloquei-os na mesinha pequena e à disposição de quem quisesse
ler. Apenas duas pessoas folhearam o diário. Uma delas foi uma moça
cigana. Pensei para mim que a imprensa em papel, acabando os velhos
como eu, está mesmo condenada ao desaparecimento.
Liguei
à minha amada. Depois de muito reclamar que era diabética,
tinham-lhe dado uma copo de água e um pacote de leite. Disse também
que a desorientação nas urgências era quase total. Uma senhora ao
seu lado tinha recebido a medicação trocada. Para piorar, por que
um mal nunca vem só, colocaram-lhe oxigénio… que era destinado à
minha companheira. A outra azarada doente exclamou: “Estes
gajos querem matar-me”.
IX
Eram
cerca de duas horas da manhã. As ambulâncias eram agora mais
espaçadas. Passavam duas por hora.
Como
se obedecessem a um controle remoto, primeiro levantou-se o arrumador
e comeu duas sandes embaladas previamente por si. Senti uma vontade
enorme de lhe oferecer uma bebida. Sei lá porquê, não o fiz.
A
seguir o Beethoven comeu uma sandes, bebeu um café e foi fumar um
cigarro lá para fora.
Em
seguida, a mulher de vida difícil levantou-se e foi à
casa-de-banho – a propósito, esta parte essencial da higiene
humana, apesar de não me ter apercebido de ver alguém a limpar,
durante todo o tempo em que estive presente, quer a sanita, quer a
bacia de lavatório mantiveram-se sempre limpas.
Tal
como os companheiros, a sem-abrigo retirou duas sandes da sacola e
comeu com ansiedade.
Eram
3h30 quando recebi um telefonema da minha mulher para me dizer que,
provavelmente, ficaria internada e o melhor mesmo era ir embora para
casa. E ficou mesmo.
Foram
13h00 à espera. Esta crónica não pretende ser uma via para a
crítica fácil a um serviço essencial que, sabemos todos, é
estruturante na sociedade portuguesa. Antes é um meio para atingir o
pensamento. E todos, mas todos, precisamos muito de pensar o que
queremos do SNS, Serviço Nacional de Saúde, para uma vida que,
infelizmente, é cada vez mais curta.