sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

CARTA ANÓNIMA: A COBARDIA INSTITUCIONALIZADA

Segundo a notícia transcrita no Jornal da Mealhada, de 20 de Fevereiro: “Presidente da Direcção da APPACDM foi investigado, com base numa denúncia, feita por carta, a um órgão de comunicação social, onde são feitas acusações muito graves, de corrupção”. Acerca dos autores da carta anónima, Acácio Lucas, o visado pela “acusação”, garantiu: “O documento foi escrito por funcionários da instituição, mas não posso acusar ninguém sem ter certezas. A justiça serve para descobrir se as acusações são ou não verdadeiras, mas também para descobrir quem foram os autores da carta”.
Ora aqui começa a saga iníqua e labiríntica deste homem que não conheço. Ele, agredido na sua honra, torpemente vilipendiado por um cobarde sem dignidade e sem rosto, não pode acusar ninguém, e diz ter esperança que a justiça descubra os autores da carta. Em contrapartida o poltrão, a coberto do manto diáfano do obscurantismo, pode acusar discricionariamente sem prestar contas. Não está em causa se Acácio Lucas é culpado ou inocente –embora, mesmo após o inquérito em curso pelo Ministério Público, e mesmo em caso de vir a ser constituído arguido, só após o transitado em julgado se poderá falar em “culposo” ou “inculpado”- o que se põe em causa é a forma como um Estado de Direito aceita uma denúncia e, sem princípios de salvaguarda da honra do cidadão atingido, aceita, com base numa delação traiçoeira, iniciar uma investigação, mesmo sabendo que jamais essa pessoa será inocentada pelo populis. Mesmo absolvido, o estigma perdurará para além do tempo.
É curioso como no Estado Novo a delação, com base num informador anónimo da extinta Pide, é hoje, unanimemente condenada com veemência e considerada atentatória aos mais elementares princípios da segurança jurídica. Então como compreender que pior do que isso, num retrocesso à Inquisição, um Estado Liberal, em que os Direitos Liberdades e Garantias são o primado da sua individualidade, aceite os mesmos métodos quinhentistas ou de um autoritarismo condenável sem contestação? É claro que a resposta dada pelo legislador e pelos defensores deste injusto sistema é demais conhecida: “o Estado de Direito garante-lhe um processo justo”. Garantirá mesmo? E no caso de nem sequer vir a ser pronunciado, quem é responsabilizado pela vergonha, pelo estigma, e noites em claro? E, ainda mais, se o Código Penal, no seu artº 365º, referente à denúncia caluniosa e imputação de medida disciplinar ou contra ordenação, procura na sua bondade defender o denunciado, através da possibilidade do subsequente procedimento criminal em caso de denúncia infundada, exactamente para, como medida preventiva, evitar a proliferação desse mesmo recurso? Então, como entender que a ordem jurídica aceite uma denúncia anónima, sabendo, a priori, que o denunciado fica numa posição vulnerável e sem possibilidades de imputação de responsabilidades ao demandante fantasma? Ou seja, por desconhecimento do autor material da denúncia, o denunciado, perante a lei, é discriminado. É verdade que ao legislador apenas lhe interessa o objecto, que, neste caso, é a descoberta da verdade. Mas se a lei é o primado da ordem jurídica, aquela só pode ser justa, em verdade e em equidade, se tiver em conta os meios para alcançar os fins.
Por outro lado, pela recorrência, infelizmente, hoje tão em voga, se depreende que a lei, devendo premiar o altruísmo, a coragem e o exercício da cidadania, ao aceitar o mérito da denúncia anónima como princípio desencadeante da acção, pelo contrário incentiva “o atira e foge” e, ainda mais grave, desonera completamente o autor de qualquer penalidade ou censura social, do seu acto atentatório ao (mau) uso da moral e dos bons costumes, e, ao invés de fomentar a licitude e a conspicuidade, esta prescrição legislativa incentiva o ataques soez.
Valerá a pena pensar nisto? É que amanhã,como no "Processo", de Kafka, você, pode ser o próximo.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

COIMBRA: DEBATE DA CULTURA, O FLOP E O FIASCO

(IMAGEM DA WEB)



 Como foi amplamente divulgado, reuniram ontem, 20 de Fevereiro, no Teatro de Gil Vicente, cerca de 400 pessoas –segundo o Jornal de Notícias- cujo objectivo era (e foi) um debate sobre a cultura em Coimbra. Tudo partiu de um texto, como o título “Pelo direito à cultura e pelo dever de cultura!”, postado num blogue na Internet, em que se pedia a sua subscrição online, apelidado de “Amigos da Cultura”. Este texto assinado essencialmente por professores universitários ligados à cultura, entre eles, Abílio Hernandes, Adília Alarcão, António Sousa Ribeiro, Boaventura Sousa Santos, Carlos Fiolhais, Carlos Fortuna, Carlos Reis, Elísio Estanque, Vital Moreira, entre outros. Assim como nomes importantes ligados ao teatro, à advocacia, à fotografia, à arquitectura, deputados municipais, sindicalistas, etc., entre eles, cito apenas alguns nomes, como por exemplo, António Augusto Barros, Francisco Paz e Isabel Craveiro; António Arnaut, Ferreira da Silva e Marinho e Pinto; Alexandre Ramires, Albano da Silva Pereira e Paulo Abrantes; Alexandre Alves Costa, Luís de Sousa e José António Bandeirinha; Catarina Martins e Serafim Duarte (bloco de Esquerda), João Silva (PS); Fátima Carvalho e Mário Nogueira.
Para começar (mal), em vez das 17 horas, como fora previamente anunciado, começou eram 17h25. Se este é um pormenor de somenos importância, embora, saliente-se, que se se tratava de um debate de cultura, começar com vinte e cinco minutos de atraso é, a meu ver… incultura. Pode até argumentar-se que esta derrogação advém dos 15 minutos de tolerância académica, mas invocar esse mau costume arreigado aos portugueses num debate sobre cultura é, quanto a mim, uma (in)cultura que urge banir da sociedade.
Continuando a descrever o azarento começo, Manuel Maria Carrilho, ex-ministro da Cultura e deputado Socialista, que estava anunciado como participante na mesa do debate, não veio de Lisboa porque estava… doente. Outra personalidade anunciada também para estar presente na mesa, o Director Regional da Cultura do Centro, António Pedro Pita, também esteve ausente, devido a uma reunião em… Lisboa. Muitos azares num debate de extrema importância para a cidade, segundo os organizadores.
Abílio Hernandes, ex-presidente da “Coimbra Capital da Cultura 2003”, moderador neste debate, a abrir, começou por referir “estamos aqui em defesa dos que fazem cultura em Coimbra”. Defendeu que existe oferta cultural na cidade, mas acusou a Câmara Municipal de Coimbra (CMC) de não desenvolver uma política na área. “A autarquia tem mesmo uma política anti-cultural. Gostaríamos que a câmara estivesse aqui, mas não está, e não é fácil manter um diálogo com uma parede”, referiu – talvez em resposta, hoje, no dia a seguir ao debate, Carlos Encarnação, presidente da CMC, em entrevista à Antena 1, na rubrica “Portugal em directo” afirmou que "não estive presente porque não me foram garantidas condições de igualdade aos restantes oradores. Se me tivessem sido garantidas eu teria muito gosto em ter estado (…) nunca faltei a um evento em que estivesse em causa a cidade”.
Várias pessoas intervieram numa espécie de catarse, na procura de uma cultura fantasma. Todos falaram de cultura, mas sem especificarem exactamente nem o que pretendiam nem o que entendiam por cultura. Um ponto era comum, a CMC e nomeadamente o vereador do pelouro da cultura eram os visados, como se fossem um alvo em que todos deviam espetar um dardo.
Como estive presente, e por uma inexplicável “dependência” psicológica de interferir, à qual sou incapaz de fugir, chegou a minha vez de intervir. Comecei por explicar que, como ressalva de interesses, sou um “não alinhado”. Sou um cidadão anónimo de Coimbra. Não defendo qualquer associação, nem sou "advogado" de defesa de qualquer instituição. Não subscrevi e não concordo com o texto apresentado na Internet, sob o lema “Pelo direito à cultura e pelo dever de cultura”. É um texto profundamente ideológico, carregado de uma “esquerda” retinta e exacerbada. É manipulador cujo interesse único é apontar baterias à CMC. Parece quase um manifesto político-partidário, e a cultura deve transcender a “partidarite”.
Depois de ler o referido texto na Internet dos "amigos da cultura" apetece-me parafrasear Kennedy, “não procurem a Coimbra e à CMC o que podem fazer pela cultura, procurem antes o que podemos todos fazer pela cidade”.
A cultura de Coimbra, quanto a mim, parece que gira, unicamente, em torno de dois pólos: a academia com o fado –ainda por cima enfeudado- ou a Queima das Fitas e o teatro. E absolutamente mais nada!
Coimbra não tem uma cultura "underground", uma cultura de risco, que seja marginal e criativa. Parece que apenas funciona se tiver o motor oleado pelo subsídio. Citando o aforismo, acontece que em casa que não tem pão todos ralham e ninguém tem razão.
Parece que tudo se resume ao teatro, que com todo o respeito por quem nele emprega o seu esforço, mas os conimbricenses aderem mal. E aqui é necessário pensar se o problema, de não adesão, estará nos urbanos ou nas peças apresentadas –muitas vezes demasiado longas e de percepção difícil para a maioria. E aqui louvo uma pessoa que muito estimo, ligada à direcção de uma reconhecida companhia –Isabel Craveiro, do Teatrão-, que em entrevista ao Diário de Coimbra (DC), há cerca de três meses, dizia exactamente isso mesmo: “temos de avaliar o nosso trabalho e inferir da razão de o público vir pouco ao teatro. Se calhar temos de mudar de estratégia” –citado de memória.
Porque não se aposta no teatro de revista? Porque é “pimba”, como era classificado, também em entrevista ao DC, há cerca de um mês, um reconhecido encenador?
Dá impressão que a cultura dita “alta ou erudita” se quer impor ditatorialmente à que vem do povo, classificando esta de pacóvia e parola. Esquecendo que todos contribuímos e somos fazedores de cultura. Repare-se aí na mesa, os oradores (5) são todos professores universitários. Será que não faltarão aí outros intervenientes? E nomeadamente -e porque não?- um qualquer “Zé da Esquina”, que até escreve umas coisas e, além de mais, até soletra uns versos maravilhosos?!
Depois deste extenso preâmbulo, devo confessar que vim a este debate com uma intenção. Ou seja, falar dum caso escandaloso, que no seu abandono é criminoso, refiro-me ao ex-Museu Nacional da Ciência e da Técnica. Este museu, nascido em 1971, por obra de um dos maiores físicos portugueses: Mário Augusto da Silva. Está em “coma” profundo desde 2005 –por força do Dec. Lei 10, de 2005- em que o museu foi integrado no futuro museu do conhecimento.
Praticamente, desde essa data que o museu em Coimbra, na Rua dos Coutinhos e no Antigo Colégio das Artes, se encontra encerrado ao público. Agora pasme-se: desde essa altura, há cerca de dois anos, estão 7 funcionários sem trabalho atribuído, sem saberem o que fazer, o labor que individualmente desenvolvem, desde catalogação e fotografias do espólio do museu, é da sua inteira iniciativa e sem que lhes seja dada qualquer satisfação quanto ao seu futuro. Lembro também que o seu acervo é fabuloso. É constituido por milhares de peças, algumas únicas no mundo.
Sem entrar em acusações fáceis, lembro que apesar da promessa do magnífico Reitor, do vereador da Cultura, e do presidente da Câmara Municipal de Coimbra, em lançarem as bases para a criação de um futuro museu -in Jornal das Beiras 21NOV2004- tudo continua na mesma.
Lembro aos senhores, organizadores este debate sobre a cultura em Coimbra, que a Baixa de Coimbra, para além do Museu do Chiado, não tem mais nenhum museu. E, quanto a mim, tem condições para o ter. Não um museu “morto”, mas um museu “vivo”, interactivo, que dê vida a uma zona histórica moribunda. E até existe um grande espaço que se enquadra perfeitamente: o antigo DRM, o quartel militar na Rua da Sofia. Mas conto, oportunamente, entregar um anteprojecto, em forma de ideia, ao executivo camarário, e na próxima Assembleia Municipal estarei presente para lhe pedir apoio e levar esta ideia ao seu conhecimento.
Seguidamente falaram outros intervenientes no debate. Quanto a mim, foi uma pena. Por falta de outros participantes, nomeadamente a CMC, INATEL, Juntas de Freguesias, Associações Cívicas e outros agentes envolvidos na cultura, este encontro foi um profundo fiasco. Como diria o meu amigo Paulo Abrantes: “a montanha pariu um rato”.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

PRESENTE É A SEMENTE DO PASSADO E O FRUTO DO FUTURO

(IMAGEM DE LEONARDO BRAGA PINHEIRO)

 Estávamos em 1936, quando Maria, num longo grito, não se sabe se revoltada por ter acabado de levar uma palmada, bem assente no rabo, pela parteira, se a adivinhar que o mundo em que acabara de entrar era muito pior do que aquele que acabara de sair. Não se sabe muito bem de onde provinham os receios de Maria. Afinal à sua volta havia tudo o que qualquer recém-nascido poderia desejar. O quarto estava muito bem mobilado, com uma mobília “Art Deco”, com as suas linhas geometrizadas, implicadas no cubismo, movimento que perpassava na Europa e que já tinha chegado às Américas. Em cima do mármore de Estremoz, do psiché, um crucifixo com um Cristo de rosto sofrido, talvez para mostrar aos recém-chegados que a vida seria dura, sem contemplações, e quem viesse que se preparasse para o pior. Para equilibrar, junto dele, uma imagem de Nossa Senhora de Fátima de rosto sereno, com meio sorriso, implicitamente, sem querer entrar em choque com o Criador, como a dizer que a vida é muito mais do que apenas sacrifícios. Vivamos em paz, não levemos o sacrifício ao extremo. Sejamos felizes.
Os longos reposteiros de damasco, complementados por paredes forradas a papel aveludado com flores, talvez saídas do jardim bíblico do Éden, mostrava que aquela casa se não era abastada, pelo menos estava muito acima do comum dos portugueses da época, que sentiam na pele a falta de tudo; de dinheiro, de comer e até de esperança de viverem para além dos 50 anos. A Europa vivia tempos conturbados, tinha sido há pouco varrida pelos ventos da grande depressão de 1929, que pusera os grandes Estados Unidos da América na quase indigência. Em Espanha, dava-se o inevitável choque entre a esquerda, de movimentos operários de filosofia comunista, anarquista e socialista, e a direita de Francisco Franco. Neste ano, começa a Guerra Civil Espanhola. Em Itália, Mussolini preparava-se, através do seu expansionismo fascista, para invadir a Grécia e entrar em guerra contra os aliados. Na Alemanha, Hitler, eleito chanceler três anos antes, como ditador racista e anti-semita, preparava-se para perpetrar o maior genocídio da humanidade.
Por cá, Salazar, um cordeiro no meio dos lobos, se considerarmos a ambição política geoestratégica e o expansionismo assassino de Hitler, Franco e Mussolini, embora seguindo a mesma filosofia fascista, de autoritarismo ditatorial, assente no corporativismo e no partido único, a União Nacional. Depois de ter sido empossado por Carmona, como Presidente do Conselho de Ministros, e ter dado início ao Estado Novo em 1933, tentava a todo o custo o saneamento das finanças públicas.
É neste ambiente político que nasce Maria ali para os lados do Norte. Já se começa a entender o seu prolongado choro de rebelião por ter saído do ventre materno. Mas havia mais. O seu pai, abastado proprietário agrícola, naturalmente filiado na União Nacional, e admirador profundo do ex-professor de finanças da Universidade Coimbra, tinha dois pontos fracos: as mulheres e o jogo. Quando Maria nasce, a sua outra irmã Matilde, mais velha 5 anos, escondida em recantos da grande casa, ou fazendo que dormia, assistia, amiúde vezes, a grandes discussões entre a sua mãe e o adicto do seu pai. A situação financeira, embora não fosse preocupante, foi-se detiorando, ainda mais com a 2ª Grande Cuerra e o seu obrigatório racionamento. Nem mesmo assim o pai de Maria deixava de jogar. Em 1947, ano do início do plano Marshal –Programa de Recuperação Europeia-, que consistia na ajuda técnica e económica, denominada doutrina Truman, proporcionada pelos Estados Unidos, integrada aos Estados Europeus devastados pela guerra. Salazar, como sabemos, por sua iniciativa escusou-se a integrar este plano. Dizia eu, então, que neste ano de 1947 o pai de Maria, numa jogada infeliz, arrisca a sua melhor e única terra de semeadura que resta à família e…perde. Com a vergonha de encarar a família, por ter perdido a sua única e última base de sustento e a dignidade, preferiu desistir da vida.
Maria, então com 11 anos, além de ficar sem pai, herda uma situação financeira catastrófica. A mãe de Maria, a braços com dificuldades, com dois filhos para criar, torna-se austera e dura, mas não cruza os braços. Naquele rosto, os seus dois filhos nunca mais vislumbraram um sorriso e muito menos gestos de amor e ternura. Tornou-se calculista e sublevada contra a sorte que lhe caiu em desdita. A maioria das grandes amizades do tempo do seu marido, como nuvens tocadas pelos raios solares, esfumaram-se no ar. Dos muitos, apenas restava aquela família proprietária duma grande fábrica de têxteis na Areosa, que, por acaso, só por acaso, tinha um filho varão da mesma idade de Maria. Como qualquer mãe que quer o melhor para a filha –pelo menos era assim que entendia-, mentalmente começou a engendrar o seu plano: aquele filho varão era o genro que lhe convinha, e Maria quisesse ou não quisesse tinha de o desposar. “Lá estávamos em tempo de escolher marido desde que fosse rico. Isso é que era bom”. –pensava para si a mãe de Maria.
Havia um senão: Maria não o queria ver nem pintado de ouro fino. Então não é que o raio da rapariga se embeiçara pelo sapateiro da rua? “Onde é que isto já se viu? Estes jovens nem sabem escolher o melhor para si. Felizmente que eu sei o que é melhor para ela”-repetia a mãe de Maria em pensamentos multiplicados. Então dá-se a segunda tragédia naquela casa hermética e solarenga: com 18 anos, Maria desapareceu. Fugiu com o sapateiro. A sua mãe nunca mais soube dela. Nem na hora da sua morte, mesmo quando a voz se esvaia em fio inaudível, de tanto se repetir a pedir perdão à sua filha perdida, esta deu sinais de si.
Maria, juntamente com o então companheiro, vieram parar a Coimbra. Cedo se viu quem mandava lá em casa. Ela não alinhava em tradições machistas. O companheiro, que no mundo não via outra mulher, subordinadamente, aceitou a troca de chefia. Maria era muito poupada e muito dura. Muitas vezes o ex-sapateiro, agora empregado fabril, perguntava a si próprio se o coração de Maria não seria feito de pedra, mas admirava profundamente aquela mulher. Mais ainda o interesse redobrado que ela demonstrava em ler. Ela lia e relia tudo o que podia. E, se o amor tudo perdoa, naturalmente, ele, que sofria desse mal escravizante, evidentemente que a absolvia em pleno.
Veio o primeiro filho, o segundo; o quarto nasceu morto. Veio o quinto, o nono morreu passado 3 dias. Veio o décimo, o décimo-terceiro nasceu morto, com o cordão umbilical enrolado ao pescoço. E vieram os seguintes até ao décimo-sexto. 13 filhos estavam vivos. Por incrível que pareça Maria geria esta prole com mão de ferro, como autêntico comandante militar.
Os mais velhos eram obrigados a mendigar na rua, todos os dias, e levarem para casa uma importância pré-estabelecida. Aquele que não cumprisse tinha à sua espera uma “surra” monumental. Este dinheiro, conjuntamente com o ordenado do marido, era empregado na alimentação e no vestir de todos. Os horários escolares eram cumpridos à risca e ai daquele que faltasse à escola. Por paradoxal que pareça todos os filhos de Maria iam para a escola limpos, bem alimentados, e bem vestidos. Não havia tempo para ternuras, nem beijos, nem abraços. Se Maria não recebeu carinho como poderia distribuir uma coisa que não conhecia? Pelo contrário havia demasiada pancada. Maria chegava a instigar o seu marido para bater nos insurrectos. Os três últimos, por serem os mais novos, além de se livrarem de andar a pedinchar nas ruas da cidade, conseguiram tirar cursos superiores. Hoje, com 71 anos, Maria, já viúva, sempre agarrada a um livro, continua a não ser terna e a não dar beijos aos netos. Às vezes, à procura de uma explicação, quando algum dos seus 13 filhos, que a adoram, todos muito bem colocados na vida, lhe perguntam porque foi tão dura para eles, ela responde: “dura eu? Vocês são é doidos! Eu alguma vez fui como vocês me pintam?...


(História verídica, baseada em factos reais)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

LUSO: POR QUEM OS SINOS DOBRAM?

Na edição de 13 de Fevereiro último, o Jornal da Mealhada expressava em duas páginas as preocupações fundadas e legítimas de um grupo de comerciantes do Luso, acerca da degradação contínua e desleixada das “suas” Termas do (seu) Luso.
Antes de continuar, convém mostrar um pouco de história desta famosa água de mesa e termal, utilizada no tratamento de problemas renais e males da pele.
Consultando várias informações dispersas e o site da Sociedade de água de Luso (SAL), nos seus 150 anos de história, ficamos a saber que a descoberta das curas no restabelecimento da saúde, desta água, foi em 1726, no 1º inventário das águas minerais portuguesas, da autoria de Francisco da Fonseca Henriques, em que é mencionada e a sua localização em Luso. Constata-se também que só meio século depois se verifica o aproveitamento terapêutico desta água.
Passando um pouco à frente, em 22 de Dezembro de 1916 é constituída a Sociedade Água de Luso, SARL. Em 1970, a então nascida em 1934, Sociedade Central de Cervejas (SCC) e em 1977 rebaptizada de Centralcer, Central de Cervejas, EP –depois de ter sido nacionalizada no 25 de Abril- entra no capital da SAL, tornando-se accionista. Em 2003, a Central de Cervejas, agora SA, Sociedade Anónima e a SAL foram adquiridas pela Scottish and Newcastle (S&N), com sede na Escócia, que passou a deter o controlo, em acções, a 100% daquelas duas empresas nas Águas de Luso.
Ao que parece, recentemente, estas acções foram adquiridas pela Heineken-Carlsberg.
Fazendo uma pequena retorna ao passado, imaginemos que estamos no fim da década de 60, do século último, em Setembro, quase a finalizar a época balnear. Eu e você leitor, viajando pela linha da Beira Alta, de comboio, vamos desembarcar na Estação ferroviária de Luso. Apercebemo-nos do grande movimento desta estação de Caminho de Ferro. Muita gente sai do comboio e outros tantos iniciam viagem. No banco de madeira da segunda carruagem você dorme profundamente. De repente dá um salto. Foi acordada pelo grito estridente de uma mulher, de meia idade, baixa, de avental, de cabelo apanhado num toutiço, que percorrendo, em passo rápido, aquela paragem de dez minutos, disponibiliza, a troco de cinco tostões, uma bilha de barro, prometendo matar a sede aos viajantes daquele trem. A forma sonora de apregoar o seu produto, ainda que sibilante, era encantadora: “áagguuaaa de Lussooooo”.
Quem não quisesse, se tivesse tempo, podia ir ao bar da estação beber uma gasosa em forma de pirolito, uma laranjada, uma Guaraná, ou um Licor de Ginjas, tudo da fábrica Bussaco, que laborava ali mesmo ao lado e que era identificada pelo enorme depósito de água, que do outro lado da linha desafiava as leis da gravidade.
Depois de descer do transporte por ferrovia, pegamos nas nossas malas e vamos a pé –porque não podemos gastar muito- em direcção à vila, que dista dali cerca de um quilómetro, onde contamos passar 15 dias nas famosas Termas de Luso. Ambos temos insuficiência renal e aqueles insistentes pruridos na pele, e, por isso o dermatologista enviou-nos para aquelas Termas. Chegamos então ao “alto da Venda Nova”. Aí começamos a aperceber-nos do movimento de adultos e crianças a entrar e a comprar nas lojas do Adelino Carvalho. Reparamos no ar feliz dos petizes, entretidos a desfolhar os novos livros escolares para o ano que se avizinha. Quase em frente, na loja comercial do senhor Carlos a mesma coisa: muita gente das redondezas a comprar e a pedir para apontar no livro.
Continuando, passamos na padaria do Vale e compramos uns pães e uma roscas doces. Começamos a ouvir o sino da igreja. Vamos passar mesmo em frente dela. Reparamos que muita gente se encaminha para o templo sagrado. Na porta lateral está o senhor vigário todo vestido de preto, de sotaina até aos pés, a receber os convidados do Senhor.
Continuamos a andar e, por momentos, paramos a admirar o Grande Hotel do Luso, projecto de 1937, do grande arquitecto modernista Cassiano Branco –a propósito, hoje, no seu site, na Internet, porque não tem o Grande Hotel do Luso um link com a sua história? Nem sequer é feita referência ao grande projectista. Evidentemente que apenas contentamos o olhar, a nossa bolsa não chega para tanto. Continuamos no meio do fervilhar de gente, utentes das termas, sobretudo casais, de meia-idade, de mão dada, que no seu andar dolente, certamente, desligaram os relógios. Reparamos no ruído que provém do pequeno mercado a abarrotar de gente. Assim como o Casino, pleno de efervescência. Lá dentro está uma exposição de pintura de Carlos Ramos, pintor Coimbrão, que começava a alcançar um merecido reconhecimento.
No terreiro da Fonte das onze bicas não se rompia com gente, uns a encher uns garrafões de água, outros a comprar cavacas doces nas barracas ali ao lado. Lá ao cimo da avenida, o Cine Teatro do Luso parecia um baluarte estático também a defender a cultura da vila.
Continuamos o nosso caminho e subimos em direcção ao Hotel Serra. Era um bom hotel mas com preços mais modestos para a nossa bolsa. Era ali que tencionávamos ficar. Era, disse bem. Estava completo. Bom, nesse caso, vamos para uma pensão famosa que toda a gente que frequenta as termas conhece: a Pensão Lusa. E ali ficámos muito bem hospedados durante a quinzena de Setembro de 1969.
Hoje, se, hipoteticamente, fizéssemos o mesmo trajecto iríamos ficar profundamente decepcionados. Da movimentada estação ferroviária de outrora, hoje pouco mais resta do que um decrépito apeadeiro que a REFER, num economicismo atroz condenou ao abandono e à invisibilidade. Da identitária fábrica de refrigerantes Bussaco apenas resta o depósito de água –que, quanto a mim deveria ser classificado de interesse público. Nos mil metros que distam do agora apeadeiro até ao Luso, os castanheiros, alquebrados pelo tempo, parecem chorar de abandono. As Lojas do Adelino Carvalho e do Carlos da Venda Nova, uma sombra de outros tempos, tentam, por todos os meios resistir às grandes superfícies, à lei da selva, e à cegueira deste Estado neoliberal.
A padaria do Vale encerrou há muitos anos. O hotel Serra jaz em ruína, ainda salvo erro, e a Pensão Lusa, com a placa de “vende”, encerrada há muitos anos, procura novo dono que, em histoicismo, continue a sua história. A Igreja, embora com menos fiéis, continua a receber em preces a esperança de um amanhã melhor dos habitantes da freguesia de Luso. Os sinos, num trinado dobrado, parecem mostrar que os seus comerciantes tem razão em estar preocupados com as suas Termas e no abandono a que foram votadas.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

UM AMOR PROJECTADO

“Mais uma vez o homem olha para mim. Bolas! Porque insistirá o velhote em olhar, para mim, daquele jeito? Será que nunca viu uma mulher?
Entrei recentemente nos “entas”. Anatomicamente, sei que sou uma quarentona agradável de ser vista, por fora e imaginada por dentro das minhas roupas, por um qualquer homem. Sou bonita, e o que mais me salienta é que tenho uma espécie de áurea de mistério. Uma espécie de Ponte de Madison County –lembram-se? Isso mesmo! Aquele filme realizado por Clint Eastewood, com Jeff Bridges e a espectacular Meril Streep, em que os dois filhos, ao vasculharem as coisas da mãe, recentemente falecida, encontram um diário, de um romance intenso, vivido pela progenitora. Já estão a ver qual é não estão? Aliás, confesso, gosto imenso deste filme. Identifico-me com ele. Ou melhor: creio que todos nós. Todos temos um lado oculto, que só nós mesmos conhecemos.
Modéstia à parte, sei que facilmente poderei ser a intérprete de um sonho erótico de qualquer bicho careta com calças e com apêndice saliente. Mas mesmo assim, porque será que sempre que venho ao café, umas vezes sozinha, outras vezes na companhia dos meus filhos, o homem me olha daquela maneira? Não é um olhar igual aos outros. É daqueles olhares que nos trespassam, que parecem despir-nos de roupa, de preconceitos, fazem-nos sonhar, entram-nos na alma. No princípio estranhamos, incomoda-nos. Apetece-nos esbofetear o atrevido. Depois, aos poucos, entranhamos aquele olhar sedutor, carregado de desejo, ou outra coisa que não consigo explicar racionalmente, e não conseguimos viver sem ele. Um dia, inevitavelmente, vai desaparecer e nós, como desamparadas, sentimo-nos órfãs, e então, curiosamente, passamos a procurar, noutro qualquer homem, incessantemente, esse olhar perdido. Qualquer mulher sabe do que falo. Mas este homem, ao fixar-me assim, não é só desejo que intuo naqueles olhos. Quando me vê, ele transforma-se. Sinto que sou o “seu” sol, o calor e a luz que ilumina a sua alma. Que estranho mistério carregará esta pessoa? Gostava de saber. Às vezes ponho-me a imaginar o que teria sido a sua vida. O ser humano é tão interessantemente estranho. Somos uma fachada ambulante. Carregamos uma máscara, ou várias, para cada situação. Atrás dessa máscara social está sempre um drama ou um mistério. Eu sei do que falo. Também tenho o meu. Chamo-me Helena. Prazer! Só pela minha denominação já vêem que, metaforicamente, provenho da mitologia grega. Sou filha de Zeus. No meu tempo, na Grécia antiga, possuía a reputação de mulher mais bela do mundo. Sempre tive muitos pretendentes, entre eles, muitos dos maiores heróis como Ulisses, por exemplo. Posso-vos dizer que cheguei a ser raptada e, no resgate, desencadeei uma guerra.
Por isso ou por outra coisa qualquer, após o meu nascimento, nos anos 60, tive uma infância marcante. Não entrarei em pormenores, mas foi cheia de episódios determinantes –sobretudo um, que por mais que faça por esquecer não apago da memória-, que para o bem e para o mal haveriam de consolidar, em mim, uma personalidade vincada. Querem saber como sou, estou mesmo a ver. Está bem! Vou levantar a ponta do véu. Sou divorciada há cerca de dois anos. O meu “ex” maltratava-me. Foi o culminar de uma relação tempestuosa. Às vezes perguntava-me o que o levava a “embirrar” comigo, mas estou convencida que nem ele sabia o porquê dessa embirração. Era como se eu o irritasse profundamente. Creio que tinha inveja de mim. Ainda não vos disse mas sou muito culta. A vida ensinou-me de que o saber é poder –contrariamente a ele, que se enterrava no vício e pouco se importava com a cultura. Adoro filosofia. Gosto de Kant. Mas sou prolixa na minha leitura, vou de Kafka a Miguel Sousa Tavares. Também escrevo. E modéstia à parte escrevo muito bem. A escrita é a minha fuga. Nas minhas metáforas chego a perder a noção da realidade. Tão depressa posso ser uma meretriz a servir num bordel de Madrid –gosto de escrever com uma elevada carga erótica- como uma dama pura e casta. O que escrevo é só para eu ler. Ainda tentei escrever num site, na Internet, mas sentia-me despida, como se estivesse a partilhar algo íntimo e só meu. Sempre tentei escrever bem. Sou uma perfeccionista. Tudo o que faço tem de ser bem feito. É como se a minha exegese fosse imanente. A minha profissão também assim o exige. Tenho de ser um exemplo no meu trabalho. Os meus discípulos assim o arrogam. Sou muito competente e simpática. Como sou muito inteligente, aprendi a “utilizar” a simpatia como arma. Faço dela uma máscara constante e manipulo quem eu quiser. Então os homens…meu Deus! Pobres desgraçados! Até se sentem intimidados. Dizem que “tenho uma luz natural”, imanente, que sai de dentro da minha alma. Que parece um candeeiro aceso numa noite escura como breu. A verdade é que atraio as pessoas. Às vezes pareço um íman. Quem me rodeia, “colam-se” a mim como se eu fosse feita de grude. Sei que estão a pensar que só estou a mostrar coisas boas, mas também tenho tristeza e muita solidão. Sobretudo quando “desligo” do meu trabalho. É como se “reencarnasse” numa outra personagem frágil. É como se, ao chegar a casa, despisse a máscara social e ali estou eu, nua e crua. É então que me “refugio” na minha escrita, na leitura, no cinema. Vou muito ao cinema. Ainda não disse pois não? Também gosto muito de arte. Sou muito sensível. Se calhar sou sensitiva…
Ah…esqueci-me do homem do café, aquele que vive obcecado por mim. Provavelmente serei um antigo amor projectado. Talvez ele visse em mim uma antiga namorada sua. Quem sabe?”

sábado, 9 de fevereiro de 2008

A CRISE DA (AGRI)CULTURA

Hoje, que não tenho nada para fazer, deu-me para passear pelas ruas da cidade. Ouço aqui, escuto acolá, à espera de encontrar qualquer conversa que me interesse. As poucas pessoas que passam, embrenhadas nos pensamentos intricados das suas vidas, passam por mim e parecem nem me ver. Parece que já nem tempo há para conversar. Que saudades daqueles tempos em que as ruas eram um borbulhar de gente viva. Em que o seu movimento pedonal, em qualquer dia da semana, parecia a procissão da Rainha Santa. Tenho saudades duma qualquer dona Efigénia, que morava num qualquer 3º andar, falava cá para baixo, para a D. Ermelinda, e, quase gritando, numa coscuvilhice doentia, contavam as tricas todas de toda a rua. Quem por ali passasse ficava logo a saber tudo acerca daquela mulher bela do 33 A. Fomos do oito para o oitenta. Se nesse tempo era demais, hoje é indescritivelmente de menos.
Alto! Estão ali, naquele banco de pedra, quatro velhotes reformados a jogar à sueca. Vou aproximar-me e tentar ouvir o que dizem. Pode ser que seja alguma coisa de interesse. Sinceramente, não tenho grande fé, de que hão-de conversar os aposentados da vida? O tema há-de ser mulheres, com sexo à mistura, as baixas reformas, ou então aquelas histórias chatas, em que o preâmbulo começa sempre por “no meu tempo era assim…no meu tempo é que era bom”, um pouco como eu, no mesmo pensamento valorativo, estou a começar a entrar –pensava eu.
Dei as boas tardes e sentei-me num pequeníssimo espaço disponível do banco. Responderam à minha saudação, todos em uníssono, pareciam o coro de Santo Amaro de Oeiras, embora não conseguissem disfarçar um olhar de pasmo, de interrogação interior, exteriorizado pela fixação dos seus olhos, intuí que cada um deles, talvez como defesa, pensasse: “quem é o marmanjo? Hum…das duas uma ou vem-nos vender alguma coisa ou pregar-nos alguma do conto do vigário, mas se pensas que somos “otários” estás bem enganado”.
Para meu espanto, falavam de cultura. Da cultura em Coimbra. Sentado no canto direito do banco de pedra, eu ia escutando, e cada vez mais surpreendido ia ficando à medida que o tempo passava. Os octogenários sabiam tudo –ou pelo menos pareciam saber. Eles comentavam um site na Internet, denominado “Os amigos da cultura”, subscrito por cerca de seis dezenas de personalidades importantes na vida coimbrã, que convidava cidadãos a subscreverem, através de assinatura, o que eles apelidaram de “Pelo direito à cultura e pelo dever de cultura!”.
-Já viu isto compadre, isto aqui é uma parvónia, não há nada!? Fiz muito bem em assinar “a tal petição”, boas razões têm lá os “dotores” para denunciar este atraso de vida, estes défices de culturas –lança achas para a fogueira o “ti” Jaquim Rabecão, dirigindo-se ao Manel “pintassilgo”, tentando distraí-lo numa jogada de Às de espadas. Figura curiosa este Rabecão, pensei com os meus botões. De cigarro na canto da boca, tipo James Dean. Ar de jingão, complementado com um fino bigodinho, com um cabelo espetado, talvez tentando tirar partido de uma cãs que o tempo impusera.
-É verdade amigo Jaquim, eu também assinei. As culturas, aqui no baixo-mondego, estão todas a desaparecer. Foi o milho, foi o trigo, e, praticamente, até o arroz já pouco se vê. Ninguém quer vergar a mola. Trabalhar faz calos –condescende o “pintassilgo” com um sorriso matreiro, não se deixando enrolar na conversa, e cortando o Ás de espadas com um trunfo. Tinha um aspecto pesado este Manel “pintassilgo”. Obeso, careca, de samarra com gola de raposa e uns óculos de armação de baquelite a segurar umas lentes grossíssimas, a servir de ponte entre uma miopia existencial e uma realidade possível. Devia ter sido agricultor, talvez daqueles que no fim da década de oitenta, a então CEE pagou para ir para a prateleira e não fazer mais nada.
-Ó pá não sejas parvo! Eu também assinei. Não é essa cultura que o Rabecão se refere -intromete-se “a tralhão” –entre duas “passas” do cigarro de enrolar- sem conseguir disfarçar algum enfado, o Toino “dos eléctricos”, assim chamado por ter sido guarda-freio dos velhos amarelos e ronceiros, desaparecidos da cidade no início da década de oitenta – é o “Saneamento básico da cultura”, pelo menos é o que diz lá no “abaixo assinado” da net. Houve, por parte da “Cambra” um corte de 60% nas verbas destinadas à cultura no orçamento de 2006…
-Espera aí –interrompe o Albino “mãos de tesoura” –assim chamado, creio, por ter um “ar” de delicadinho e excesso de maneirismo. De lacinho às pintinhas, cabelo penteado para trás à Errol Flynn, cachimbo no canto da boca, com tiques de intelectual. Os dedos alongados, de pianista frustrado, mostravam a razão do apodo. Volta e meia, sempre que queria cortar ou pôr fim a uma conversa, fazia um “V” enorme com os dedos-, eu também assinei e não é esse “saneamento básico” que os “dotores” se referem. Não é esse do tratamento de esgotos. Falam em “saneamento básico” no sentido de ser uma medida higiénica, de qualidade essencial para as condições de vida do povo de Coimbra. Tenta explicar aos companheiros de sueca, com ênfase e voz de cana rachada, o intelectual de maneiras um tanto ou quanto efeminadas.
-Calma, cada vez estou a perceber menos –insurge-se irritado o Manel “pintassilgo”- mas afinal o que é a “cultura” que “eles” falam lá?
Reparei, do meu canto, a gozar o panorama, que tanto o Jaquim, como o Toino, como o Albino, foram apanhados de surpresa, começaram a olhar uns para os outros sem saberem o que responder. O Albino, talvez por ser mais letrado, dividido entre um atrapalhado afoitamento e um gaguejar de improviso, meio titubeante lá tentou desembaraçar-se daquela pergunta incómoda e respondeu:
-Ó “pintassilgo”, então não se está mesmo a ver?! Cultura é o conjunto de costumes e tradições que constituem a herança de uma comunidade. Remata, agora mais calmo, entre uma alongada “passa” no cachimbo, o Albino, como que a querer mostrar que o saber dos livros era com ele.
-Mau! Insurge-se o "pintassilgo". Cada vez estou mais no zero. Diz-me uma coisa, a corrupção não é uma tradição dos portugueses? Foi o que sempre ouvi, desde o meu pai ao meu avô. Isso quer dizer que esses “dotores” querem fazer renascer esse costume? Mas por outro lado, quando ligo a “trevisão” só ouço dizer que se deve acabar com ela. Em que ficamos…ó Albino?
-Não! Nada disso. Com dificuldade, pondo-se de pé, tentava explicar o intelectual ao pessoal da cartada.
Sorrateiramente, abandonei o meu posto de observação. Aquilo estava a tornar-se uma conversa de doidos. Ninguém deu pela minha falta. Vou “cuscar” para outra freguesia.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

COIMBRA: CIDADE DO NÃO (RE)CONHECIMENTO





Coimbra não tem condições para fixar os jovens nem é capaz de manifestar apreço por quem leva mais longe o nome da cidade. (…) o que lamento é a falta de reconhecimento. O Presidente da República mandou-me um cartão a dar-me os parabéns e a incentivar. Coimbra não. (…) Esta cidade está todos os dias a perder os valores da terra, o orgulho, a auto-estima. Dizem que esta é a cidade do conhecimento mas acho que devia ser também a cidade do reconhecimento, ganhávamos todos muito mais”. André Sardet, cantor e compositor, em declarações proferidas, na última semana, à Rádio Regional do Centro, no programa “Dois Dedos de Conversa”.
Há alguém de acordo? Se há que ponha o dedo no ar. Engraçado, do ponto onde me encontro, em Coimbra, olho, olho e não vejo ninguém com o dedo em riste. Porque será? Atentamente, de rosto em rosto, vou tentando analisar o que pensam os habitantes da Lusa Atenas. Debruçando-me nos seus semblantes fechados, se pudesse ler telepatia, aposto que os seus pensamentos são comuns e expressariam mais ou menos isto: “olha p’ra ele, cheio de manias, lá porque teve êxito no Álbum “Foi Feitiço” já se está a pôr em bicos de pés. Eu nem gosto nada daquela música. É autêntico pimba. É outro Emanuel ou Tony Carreira. Daqui de Coimbra não se espera outra coisa”.
Bom, como ninguém se disponibilizou a ajudar-me na continuação deste texto, vou colocar o dedo no ar e dizer que estou de acordo com tudo o que ele disse. Já agora, aproveitando este tempo de antena que eu, aliás merecidamente, concedi a mim próprio, vou até acrescentar mais umas coisas.
Coimbra é uma espécie de “Portugal dos pequenitos”. É uma espécie de incubadora. antecipadamente, o que se passar aqui a nível político ou social é o que se virá a passar "a posteriori" no rectângulo. Como o país, Coimbra, é uma cidade triste –já o escrevi várias vezes. Colectivamente precisa de fazer psicanálise. Não consegue rir de si própria. Sabe-se que a tristeza e a solidão, se não forem tratadas a seu tempo, desenvolvem várias “patologias”, entre elas a ansiedade e a depressão e, associadas a esta, o egoísmo, o narcisismo elevado, a inveja, a soberba e o mais grave: a apatia e o azedume para tudo e para todos.
Em termos de importância, Coimbra está para Portugal como o nosso país está para a Europa. Ou seja, uma relação directa, em tamanho, entre a pulga e o elefante.
Internamente, Coimbra está refém da sua Universidade. Os braços “desta mulher” escravizam e amarram a cidade, sobretudo, quando num assédio continuado, hipócrita, tentando elevar-lhe o amor-próprio, lhe canta baixinho ao ouvido: “Coimbra do Choupal, ainda és Capital…”
Coimbra, como velha mulher que já teve melhores dias, com mais rugas do que cabelos, rende-se toda aos encantos, “aos bilhetes de amor” e às serenatas do seu “amante”, a torre erecta da sapiência, que, com o passar dos séculos, desenvolveu com ela um amor platónico.
Coimbra vive da recordação do passado. É como os portugueses que, no seu comportamento bipolar, quando estão em "baixo”, evocam os Cantos dos Lusíadas e espalham à boca cheia que este nobre povo lusitano já foi –já foi, era bom não esquecermos!- dono dos mares, do Atlântico até ao Indico.
Os sucessivos executivos municipais –provavelmente a partir de 1928, ano em que Salazar, enquanto professor da Universidade de Coimbra, ascendeu a ministro das Finanças- sempre se derreteram diante de qualquer professor universitário. Por isso a luta, tanto no Executivo como na Assembleia Municipal, é sempre entre estes sapientes, quer sejam de direita ou de esquerda. As suas opiniões, mesmo risíveis e sem contexto, são veneradas por todos os edis.
Igualmente, os burgueses citadinos, sempre que surge um “Dr.” é como se vissem um Deus. É um dobrar da espinha constante num servilismo endémico. Olhá-lo nos olhos é quase blasfémia. Ele, o “Dr.”, por seu turno, do alto do seu pedestal imaginário, mesmo tendo a perfeita percepção da mentira, goza a situação e abusa do futrica, o seu servidor histórico. Acaba por desprezá-lo porque sabe que, embora se trate de uma encenação, é um servilismo bacoco e pacóvio, próprio de uma “civitas” subdesenvolvida onde, num subsistema, labuta um cidadão pouco trabalhador, pouco interessado na cidadania, apenas concentrado no seu umbigo. É um cidadão com medo da sua própria sombra, que, ao mínimo gesto do “doutor” –pode ser um discurso repetitivo e chato ou apresentação de um livro- está sempre pronto a bater-lhe palmas e a dedicar-lhe loas, a troco, na maioria das vezes, de lentilhas ou até de umas simples palavras de aprovação.
Coimbra, como o país, vive eternamente na esperança de que venha o seu Dom Sebastião que a há-de retirar desta modorra de insignificância e, em importância, a coloque ao nível de Lisboa e Porto. De tempos a tempos, saído da bruma dogmática, lá surge um, que mais tarde, depois de encher a pança e, esse facto ser notado até por uma criança que apontando exclama: “olha o Rei está muito mais gordo do que quando foi entronizado”. Só então verificam, tarde de mais, que era (mais um) falso salvador da cidade.
Exceptuando um grupo de cultura, o habitante de Coimbra –o "coimbrinha"- passa a vida a dizer mal da cidade, mas nunca toma uma posição pública contrária aos interesses estabelecidos do pretor urbano, seja ele de esquerda ou de direita. Adapta-se à cor partidária daquele como um camaleão se adapta ao meio ambiente.
Na cultura, Coimbra é sublime. Como raio de luz que ilumina a terra, os defensores da cultura, um grupo constituído essencialmente por professores universitários, efervescentes num caldo de esquerda radical, onde o marxismo-leninismo está anos luz da sua doutrina profetizada, como cruzados a espalhar a fé na Terra Santa, fundamentalistas, julgando-se iluminados por Deus, recorrem a toda a dialéctica, mesmo até ao insulto directo ao vereador encarregue de gerir os (poucos) dinheiros disponíveis.
É uma cultura subsídio-dependente, que, não gerando riqueza, vive ou sobrevive à custa do sistema. Embora seja literalmente uma pequena vaga minoritária, tem muita força. Fazendo muito barulho, acaba sempre por levar a sua avante. O poder instituído municipal teme esta vaga de fundo intelectual e, mais tarde ou mais cedo, acaba sempre por ceder às suas reivindicações. Esta onda de cultura tem poucos rasgos de criatividade. Praticamente não arrisca em ser marginal e pouco mais aposta para além do teatro.
Coimbra não tem boémia. A que existe resume-se a um "modus vivendi" dos estudantes que vivem apartados do resto da urbe, numa “ilha” isolada do resto da cidade –a Alta- e apenas desce à Baixa em alturas de festas profanas, como a Queima das Fitas ou a Latada.
A cidade tem poucos bares com animação abertos até altas horas da noite. As pessoas com mais de 40 anos, no seu trajecto diário, é casa-emprego, emprego-casa. Apesar dos muitos recentes “multiplex”, com filmes a estrear, raramente vão ao cinema, um dos poucos entretenimentos que prolifera em Coimbra. São alheios ao teatro. Sejam boas peças ou más. Aqui, creio, que por culpa das companhias, que nas obras cénicas que produzem são longas e intragáveis.
O jornalismo em Coimbra é paupérrimo. Basta abrir qualquer um dos diários ou semanários da cidade e avaliar os articulistas-colaboradores: só excepcionalmente não são políticos-partidários ou professores universitários. Chega a ser ridículo o que estas pessoas escrevem semanalmente. Mesmo sabendo que prestam um mau serviço à cidade, os jornais da urbe, num calculismo concertado, “pegam nestas pessoas ao colo”, que de novo nada dizem. Ou falam de si ou do partido a que pertencem.
Não existe jornalismo de investigação. O que se pratica na cidade é tipo chapa fotográfica. Apenas é mostrado o que o flash captou. Não há outro mundo para além deste que se mostra “à la minute”. Há dois diários e três semanários. O que se lê num é transversal a todos. É normal a concentração editorial, vindo os títulos da concorrência a serem absorvidos para serem posteriormente, em alguns casos, encerrados.
Há várias rádios. Como o mercado publicitário é pobríssimo vivem dos discos-pedidos e da música contínua em bloco. Aqui há excepções, diga-se a propósito. Há uma que mesmo mareando neste mar turbulento, de marinheiros escanzelados, com falta de víveres, vai inovando e apresenta programas de discussão semanal.
Não existe televisão. Ou melhor, existe, mas é uma espécie de alma penada, só aparece nos maus momentos –mas têm mesmo de ser muito maus. Por exemplo se ruirem dois edifícios de uma assentada, aí estão eles, os canais de TV, quase todos com serviço concessionado a empresas particulares de vídeo, a mostrar ao mundo, todos os dias, durante uma semana, a tragédia da cidade velha.
Se não ruírem dois prédios, nem um homem que morda um cão, Coimbra não será notícia para o país. A cidade é esquecida, ou melhor, é ostracizada por Lisboa e Porto.
Por parte do Governo a mesma coisa. Coimbra vai sendo esvaziada, paulatinamente, até não restar nenhum serviço público de referência. Claro que sempre acompanhado de um longo discurso já gasto pelo tempo: “adoro Coimbra, aqui estudei, aqui me licenciei, aqui amei, aqui casei. Gosto tanto desta cidade…”.
Porra! Só escrever isto fico irritado. Deixem-me expurgar a minha revolta com um grande manguito.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

A BIZARRIA DO BASTONÁRIO

No último “Expresso” de 02 de Fevereiro, Fernando Madrinha, em apontamento sobre o Bastonário dos Advogados, com o título “Marinho, o Provocador”, a determinado ponto diz o seguinte: “Isto de os advogados, enquanto classe profissional, aparecerem a pretender liderar o discurso contra a corrupção é um tanto bizarro. E só se explica porque quem ganhou as eleições para bastonário não foi exactamente o causídico Marinho Pinto, mas António Marinho, o comentador de Justiça na TV (…)”.
Partindo desta análise, e do adjectivo “bizarria”, podemos especular um pouco, indo mesmo em sentido contrário, acerca do pensamento do colunista do semanário “Expresso”. Comecemos por dissecar, no dicionário, “bizarria”: “acção de quem é bizarro –excêntrico, gentil, generoso, nobre, valente, arrogante, fanfarrão- fanfarronice, bazófia, bravata, ostentação, vaidade, bravura, valentia”. Ora, começando por aqui, verificamos que ao bastonário, por aquilo que conhecemos dele, qualquer um destes sinónimos se lhe pode colar, e tão bem lhe assenta, como um chapéu ficaria bem, em qualquer “toilette”, a uma dama na “belle Époque”.
Mas, mesmo assim, não é esta “bizarria” que pretendo dar enfoque. O que aspiro é conjecturar até que ponto pode um advogado, enquanto chefe de classe, denunciar ou bater-se pela erradicação da corrupção ou outra disfunção da vida em sociedade. Apenas e só, repito, como comandante de classe, porque, isoladamente, isso tenho a certeza, deve ser um defensor dos oprimidos e dos abusados pelo poder fáctico. Pode parecer algo contraditório, admito, mas vou tentar explicar o meu ponto de vista.
Sem entrar em princípios constitucionais, para já, não será verdade que por detrás de um grande corrupto, inevitavelmente -também por princípios doutrinários do direito à defesa- estará sempre um ou mais advogados?
Ora, continuando nesta linha de pensamento, no programa eleitoral do bastonário, este, defendia a limitação de dezenas de cursos de Direito em todo o país para uma escassa meia dúzia. Argumentava que os milhares de (novos) advogados, entrados no mercado de trabalho, vivem perto da indigência, “pour cause” de uma concorrência feroz na classe. Sobretudo porque as grandes causas eram sempre defendidas pelos mesmos escritórios de grandes advogados. Ou seja, por um lado, considerava que o rácio per capita de advogados versos cidadão estava muito acima da média europeia, por outro, em silogismo, podemos considerar que era sua convicção haver pouco trabalho para tantos patronos. Que a ser assim nem para ser advogado do diabo interessa. Os diabos são poucos para tantos patrocinadores de defesa.
Continuando a especular, assim sendo, o bastonário “passou-se”? Tanto clamou contra a desjudicialização –conjunto de actos, encetados pelo Estado, dentro da filosofia “simplex”, que visam esvaziar os tribunais de pequenos conflitos. A seu ver, embora não o referisse assim, esta não intervenção de advogados prejudicava a defesa e o bom patrocínio. Prometeu também à classe que advogaria um futuro mundo melhor, como quem diz, com litigância que chegasse e fosse distribuída harmoniosamente por todos. Agora, depois de eleito como bastonário, de megafone em punho, apela ao governo que ponha cobro à corrupção. Mas, desculpe perguntar só para ver se entendi, o bastonário quer um mundo melhor para todos, sem conflitos corruptivos, e como Mahatma Gandi –que também era advogado- bate-se por uma sociedade menos violenta, mais justa, onde os pleitos serão cada vez menores, ou quer ser o salvador da classe? É que, ainda que não pareça, são pretensões antagónicas. E das duas uma: ou se vira para a sua classe causídica ou para o “nosso” mundo violento, corrupto e litigante. Assim, a continuar, se não se definir, corre o risco de não ser tomado a sério pela sociedade portuguesa, que, atentando que os seus óculos não são de forma arredondada igual ao grande pensador pacifista, verá nele apenas um pregador, um vendilhão do templo, nem pelos seus congéneres, que vendo que o homem que elegeram bate-se contra os seus interesses de classe. E, sem “habeas corpus” que lhe valha, sem julgamento justo, porque não será defendido por nenhum colega, será imolado no fogo sagrado da excentricidade.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

ANADIA É UMA LIÇÃO

“Os revolucionários –os de esquerda e os de direita- distinguem-se dos reformistas por pensarem que têm uma missão de transformar o mundo mesmo contra a vontade dos homens e por saberem invariavelmente destruir as suas referências. Já os reformistas, os que acreditam que é possível melhorar as condições de vida da humanidade e dos homens, que devem partir do mundo que existe e respeitar as suas referências, mesmo quando desejam que elas evoluam” –extracto de um Editorial de José Manuel Fernandes, in Público, de 13 de Novembro de 2007.
Pegando nesta dicotomia, na divisão entre revolucionários e reformistas, e trazendo à colação o fecho das urgências no todo nacional, mais propriamente as do hospital de Anadia, que, concretamente, aqui me debruçarei, analisando a ortodoxia doutrinária destes dois grupos, estaremos perante uma medida do governo revolucionária ou reformista? Segundo as intensas declarações de Sócrates e o ex-ministro Correia de Campos, tratou-se de uma medida reformista para o bem do povo. Acontece que este mesmo povo não entende assim. Entende estas medidas como revolucionárias, isto é, contra a sua vontade, como um destruir as suas referências –no caso um Serviço Nacional de Saúde, que mesmo, tendo sofrido uma degradação, ao longo das últimas décadas, estando muito aquém do bom, continua a assegurar democraticamente a pobres e remediados um necessário cuidado de saúde em caso de doença súbita. O povo, esta entidade abstracta que, vivendo longe das grandes urbes, cada vez mais, na sua essência, se considera agredido nas suas milenares tradições, abandonado e desprotegido, como uma casta inferior que, nos direitos, está cada vez mais separado do citadino. Logicamente, o que vê neste obsessivo comportamento do poder público é sobretudo um alcance economicista e um autismo despropositado. Um abuso de poder, um autoritarismo, uma intolerância impertinente, paradigma da cegueira dos movimentos revolucionários.
Sabendo todos que a unicidade em torno de manifestações está em crise há muitos anos. Sabe-se que o desenvolvimento e o bem-estar é inimigo da reivindicação colectiva. À medida que a sociedade aumenta o bom viver para melhor, proporcionalmente, apresenta-se o inverso na exigência, no movimento sindical, na manifestação de rua. Não é por acaso que na Alemanha existem firmas especializadas em contratar manifestantes, sendo remunerados como uma prestação de serviço. E é aqui, neste ponto, que Anadia, na pessoa do seu presidente da Câmara, Litério Marques, e também José Paixão, líder do movimento Unidos pela Saúde, mostra ser uma lição não só para a região da Bairrada, mas também para Portugal inteiro. Conseguir retirar as pessoas do sofá, uni-las em torno do interesse colectivo nas diversas manifestações públicas e mais: motivar cinco centenas de pessoas para ir reclamar os seus legítimos direitos a Lisboa e, ainda para mais, à semana não é fácil.
Para o bem de todos e essencialmente para todo o povo bairradino, no caso das urgências, meia vitória foi conseguida. Com a mesma tenacidade conseguirão o pleno.
Curiosamente, também, depois de Litério Marques chamar a atenção para o radicalismo de algumas directivas emanadas de Bruxelas, e executadas pela ASAE, nomeadamente em relação às pequenas suiniculturas existentes nos concelhos da Mealhada e Anadia, que punham em perigo o Leitão, prato gastronómico de excelência, eis que é anunciado que o PS cria um grupo de trabalho para salvaguardar os produtos típicos, proposto por deputados do seu grupo parlamentar que integram a Comissão de Assuntos Económicos da Assembleia da República.
Pode ser que este “reformismo-revolucionário-jacobino” do governo acalme e, paulatinamente, seja o motor do desenvolvimento, mas sem esquecer que uma nação é constituída por um todo, pelo interior e litoral, por grandes e pequenos empresários, por ricos e pobres.
Estou certo que este exemplo de Anadia pode chamar a atenção para as políticas neoliberais em que o Estado se desonera da sua função reguladora e se entrega cada vez mais a um economicismo endémico e abandona os sectores económicos à lei da selva.