quinta-feira, 17 de julho de 2014

LEIA O DESPERTAR...


LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Esta semana deixo o textos "REFLEXÃO: UM HOMEM CAÍDO NO CHÃO"; "UM VISCONDE PARA DUAS MULHERES"; "O ARTESANATO URBANO NAS RUAS LARGAS"; e "FERNANDITO REVELAÇÃO".



UM HOMEM CAÍDO NO CHÃO

Na tarde ensolarada e de canícula, o homem, de cerca de sessenta e poucos anos, estava deitado no lajeado da calçada do largo da Baixa da cidade. Amparava a cabeça num saco preto. O seu cabelo desgrenhado, abandonado, e mal cuidado cobriam um rosto lavrado de muitas rugas, como terreno mal-amanhado e fustigado pelo sequeiro de Agosto. Vestia com simplicidade, entre o indigente desprezado e o meio-asseado que não causa dúvida. Em frente ao sujeito caído uma mulher, descansadamente, tomava uma bebida na esplanada do café. Ao lado, na rua movimentada, não se sabe durante quanto tempo, várias pessoas teriam passado e visto o homem no chão e nenhuma delas deu demasiada importância ao facto. “Estaria com uma rosca, uma porca, uma bebedeira de caixão à cova” teriam pensado certamente.
E foi isto mesmo que eu pensei, já engatando o passo para passar ao largo. Então, por momentos, em pensamentos rápidos, reflecti que aquele homem caído junto aos estabelecimentos comerciais dava uma imagem de pobreza e desgraça. Pensei também na indiferença com que, em 2010, os passageiros do Metro de Roma deixaram morrer uma mulher caída no asfalto e agredida por um homem largos minutos antes. Pensei também numa notícia que li há uns tempos sobre um teste feito em Paris. Tratava-se de, num primeiro caso, colocar um homem caído na rua vestindo de forma andrajosa e, noutro, mostrar o mesmo indivíduo mas agora vestido de fato, gravata e pasta de executivo. A intenção nesta prova era verificar como reagiam os transeuntes perante alguém prostrado. Os resultados foram incrivelmente surpreendentes. No primeiro caso, do aparente mendigo caído, durante minutos compridos de mais, as pessoas passaram ao largo. Já no seguinte, do administrativo, o socorro foi imediato.
Foi com estes pensamentos em catadupa, misturando-se em sensação de que estaria embriagado e que não me deveria meter, que acabei a abanar o homem e a chamar uma ambulância. Embora sem certeza absoluta deste caído não estar bêbado –embora a sua voz saísse arrastada e aos tropeções –pareceu-me que, pela língua presa, teria sido acometido de um qualquer ataque ou desfalecimento. E lá foi levado para o hospital.
Pode até parecer que estou a escrever para mostrar que sou uma espécie de Santantoninho das aflições, ou madre Teresa de todas as madres. Nada disso! Escrevo esta pequena crónica para demonstrar que, por vezes e demasiadas, somos possuídos de um apriorismo comodista que nos impede de intervir para ajudar alguém. Ou seja, quando um dia destes acontecer o mesmo consigo, se estiver alguém caído malvestido, coloque a hipótese contrária ao seu primeiro pensamento e ajude. Temos todos que lutar contra a indiferença que nos toma e impede de agir. Vale a pena pensar nisto, não acha?


UM VISCONDE PARA DUAS MULHERES

Em finais da década de 1980 fez a sua aparição pública na Rua Visconde da Luz. Tinha uma aparência eclética, algo selecionada, aquele que seguia uma nova linha de pensamento social. Tal como o nome indicava, a sua indumentária reportava-o para a Monarquia. As suas quatro colunas neoclássicas pintadas de cor grená conferiam-lhe uma aura de catedral. Era o tempo que se abria para uma nova religião que haveria de destronar outras milenares e, como síndrome social, alastraria e abraçaria todos, pobres, remediados, ricos: o consumismo.
Escrevo sobre o Centro Comercial Visconde, situado numa das ruas da calçada, na Baixa de Coimbra.
Em analogia com esta modernidade que enterra tudo o que está para trás e apagando a sua história, parece incrível o que vou narrar. Nessa altura, creio que em 1989, chegou-me um boato –que se viria a verificar não ser- de que o café Vasco da Gama, situado no terceiro-andar -e que, tal como esta média área comercial, tinha aberto há pouco tempo-, tinha adquirido um forno especial que, em pouco mais de um minuto, aquecia qualquer produto que contivesse água na sua composição. E lá fui eu ver de que milagre se tratava. Era um micro-ondas, provavelmente dos primeiros chegados a Coimbra. Como tinha um estabelecimento de hotelaria vi imediatamente o quão útil poderia ser tal instrumento e comecei logo a procurar adquirir um igual. Os preços eram proibitivos. Sei que acabei por ir a Lisboa e comprei um modelo parecido por cerca de 150 contos, setecentos e cinquenta euros hoje –como se sabe, agora, o preço de um deste vulgar utensílio familiar ultrapassa pouco mais de 25 euros.
Apesar do primeiro Shopping-Center ter aberto em 1977, na Avenida Sá da Bandeira –curiosamente e a título de memória, andei lá a pintar os tetos de algumas lojas- e poucos anos depois ter aberto um outro na Rua da Sofia, a abertura deste novo centro de vendas, mesmo no coração da Baixa, foi um acontecimento de largo espectro comercial e, pelas suas cerca de 32 lojas distribuídas por quatro andares e que era possível adquirir em propriedade horizontal, foi motivo de grande procura. De alto-a-baixo, com entrada nas traseiras pela Rua Corpo de Deus e saída pela rua larga ou inverso, imediatamente todos os seus espaços comerciais foram ocupados entre o arrendamento e a venda.
O tempo foi passando, abriram na cidade outros, outros e outros, e todos sabemos no que deu. Hoje o Centro Comercial Visconde, nos quatro andares e nas cerca de 32 lojas, apenas duas mulheres resistem com arranjos de costura. Uma senhora no primeiro-andar, com aproximadamente 60 anos, e outra no terceiro, a dona Mariana Rodrigues, com quem vou trocar umas impressões. Venha comigo. Entremos pela Rua Visconde da Luz. Vamos transpor a entrada com duas lojas vazias, uma de cada lado, a receber-nos em silêncio e subindo até ao terceiro-andar num ambiente fantasmagórico e de solidão que se apanha a rodos. Chegados, deparamo-nos com o outrora café Vasco da Gama e depois Visconde, montado com máquinas, louças e copos, mesas e cadeiras, como se estivesse prontinho a abrir. É como se permanecesse em sentinela de soldado que desconhece que a guerra acabou e quisesse dizer que foi vencido pelo tempo mas não está convencido. Vamos bater na montra de vidro da loja da Dona Mariana, já que ela, como princesa enclausurada, se encontra no seu interior a costurar mas com a porta fechada à chave por dentro. Tem medo de estar aqui, Dona Mariana? Interrogo em provocação:


Tenho e não tenho!” –responde. “Tenho por que neste corpo cansado que o senhor vê já conta 67 primaveras e a genica já não é a mesma. Por outro lado, não tenho porque sou uma mulher de luta e não me escondo atrás do silvado para fugir aos problemas. Às vezes sinto-me um pouco esmorecida. Quem viu isto cheio de vida, este centro comercial, e vê hoje, dá vontade de chorar. Apesar disso, não me sinto triste por estar praticamente só. A loja é minha, sabe? Adquiria-a com muito suor e lágrimas. Só por isso me mantenho no meu posto. Claro que nunca perco a esperança de um dia ver este shopping renascer das cinzas. Parece que uma das lojas do rés-do-chão já está arrendada. Pode ser que isto arranque! Deveriam baixar as rendas e colocar aqui jovens com projetos virados para a prestação de serviços. Se não fizerem nada, isto é, cada proprietário se mantiver alheio e em conluio com este abandono, vamos perder tudo. O senhor não acha?”


O ARTESANATO NAS RUAS LARGAS

Sobre o calor tórrido, com os termómetros a subir acima de 30 graus Celsius, no último sábado decorreu ao longo das Ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz a Feira de Artesanato Urbano. Pelo que me apercebi, muitos vendedores e com lindas peças manufaturadas e originais apresentavam os seus trabalhos publicamente e tentavam fazer negócio.
Em frente ao Arco da Traição e junto ao estabelecimento Nata Lisboa a pequena Letícia dando música em dois sopros, retirados de um pequeno acordeão de brincar, meio desconjuntado e em muito mau estado, em busca de uma moeda, lá ia tocando, tocando, como se com duas notas apenas se chegasse ao coração e à sensibilidade de quem passava.
Seguindo a arte embrenhada no sangue que lhe corre nas veias e lhe advém de uma família de artistas, Filomena Cabral Antunes, familiar do mestre criador, segue a tradição de imaginar nova roupagem para a imagem da Rainha Santa Isabel em pano e barro. Afinal, nesta dinâmica vivencial, entre fé dogmática e profanação mercantil, nada está concluído e até os santos se renovam. Tal como o cartaz do banco anunciava atrás de si, o talento e o engenho estão “sempre presentes para apoiar os seus projetos”.


FERNANDITO REVELAÇÃO

A manhã, com o astro-rei a chicotear quem se colocava a jeito, prometia ao dia uma caloraça. Na fonteira que divide as duas ruas da calçada, em frente às Escadas de São Tiago, o homem acompanhado do miúdo, com os instrumentos em posição de afinação, acariciava o puto com palavras de prevenção: “não estejas ao Sol, Fernandito, que está muito quente. Resguarda a cabeça, rapaz!”
O caso não era para menos, Fernando Meireles, um reputado músico de Coimbra e um pai babado, perante aquele génio precoce, o seu filho, não poderia agir de outra maneira. Conheço o Fernando há muitos anos e sei que é um pai extremoso que só tem olhos para o seu rebento. Mas agora ainda mais, o Fernandito, o catraio de sete anos, ganhou o 1.º lugar, da sua classe de nível 1 e ainda o Prémio de Revelação, no 15.º Concurso Internacional Cidade do Fundão, realizado há duas semanas. Foi um justo tributo ao trabalho paternal do Meireles. Até porque nestes últimos tempos foi um corrupio de preocupações. Uma semana antes do concurso furtaram o violino ao Fernandito –que, como se calcula, tem dimensões especiais e feito propositadamente. Caiu o Carmo e a Trindade! Mas, fosse lá porque “ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo” ou não, a verdade é que o instrumento foi devolvido e tudo acabou bem. Muitos parabéns aos dois Fernandos! Ao primeiro, ao pai, por ser um educador especial, e ao segundo, ao filho, por nos dar tanto talento!


Sem comentários: