segunda-feira, 30 de junho de 2008

A APRESENTAÇÃO DO ANASTÁCIO

Ontem conheci uma pessoa. A meu ver, na sua forma de estar, bem poderia ser um pouco de todos nós. Uma projecção, um heterónimo, estão a ver não estão? Não fiquem ansiosos! Calma! Não tem nada de especial. Aliás, é exactamente por ser tão insignificante, tão “lingrinhas”, não ter nada que o saliente que falo dele. Então pergunta você, se não tem nada para contar porque me incomoda com este texto se tenho tanta leitura boa para ler? Então e eu sei lá? Eu tenho de escrever qualquer coisa –é o meu vício a comandar-, se eu o conhecesse a si, pessoalmente, estou certo de que contava o seu dia-a-dia, os seus amores, os seus pensamentos mais recônditos. Acontece que não conheço. Então, comecei a cogitar comigo, acerca de quem vou eu escrever? Pensei, pensei, balancei entre as pessoas das minhas relações, e bolas! Só me vinham à ideia construtores de sonhos, estereótipos de bom português. E, porra!, mas eu queria um vulgaríssimo portuga, cheio de medos, do passado, do presente e do futuro, um puro hipocondríaco. Um “Chunga”. Um obsessivo, um enfezado cheio de fobias, um “rotinas” militante, sem auto-estima.
Então, nem de propósito, ontem, Domingo, dia do Senhor, como quem diz, desculpa para não mexer uma palha, estava eu sentado numa das esplanadas do Parque verde, ali coladinho ao Mondego, (vocês conhecem!). Embora seja um pelintra, nestas alturas, a gente sente-se gente, estão a ver a coisa? De óculos escuros, de roupa informal, a ler o Público e a apreciar a paisagem, com aquele longo lençol de água, como é que acham que eu me sentia? Além de mais, porque nestas coisas é sempre bom termos alguém escravo por perto, olhando aqueles desgraçados empregados dos bares a trabalhar que nem camelos, e eu resfolegado como um político a gozar a reforma, pensava, com os meus botões, que era pobrete mas alegrete. Eu quero lá saber das minhas dívidas! Que me interessa a mim que o Scolari fugisse aos impostos. Essa é boa! Que mania, esta de nos estarem a envolverem, como voyeurs, na vida dos outros, se nem da nossa damos conta. Fosca-se! Desculpem lá, que até me passo dos carretos!
Estava eu então lá na esplanada a gozar umas merecidas curtas férias de um dia, indo para fora (da minha casa) cá dentro (da cidade), quando na mesa ao lado se sentou um escanzelado magricelas, assim um tipo de curtir laricas, mas bem vestido, embora de cores escuras, de olhos encovados e amedrontados. Devia ter à volta de quarenta e poucos anos. O homem sentou-se. Começou por, com um olhar de agente especial, varrer tudo em redor, como se fosse o farol da Barra em Aveiro. Nem a boazona, mesmo em frente a nós, de sainha curta –seria uma saia ou uma tanga, nem sei!-, com um pernão de fazer ressuscitar um morto –e que eu, em luta interior permanente, entre o jornal e aquele metafísico prato delicioso, disfarçadamente ia pondo os olhos-, o fez estancar o olhar. Quando os raios x dos dois faróis chegaram a mim, pararam. Eu, que estava todinho concentrado na boneca de cuecas amarelas, comecei a estranhar, o raio do “pelingrinhas”, enquanto bebia o café, não tirava os olhos de mim. Mau, mau! Só me faltava este! Ele bebia uma golada, olhava para mim, levantava a chávena, parava a meio, entre a mesa e os lábios, e olhava para mim. Bolas! Que é isto?! Primeiro, fiz de conta que não me tinha apercebido, mas depois, começou a incomodar-me. Foi então, como um clarão de um relâmpago, que no meu cérebro se fez luz: o homem tinha medo de mim. Certamente estaria a confundir-me com alguém. Só podia ser isso. De certa maneira, até fiquei aliviado, palavra, antes isso que outra coisa. Vade Rectro, Satanás!. Longe, longe! Estão a ver a coisa não estão? Já conseguem ver o meu alívio.
Mas, se no princípio eu estranhava, com a continuação, o estranho entranhou-se, passando a redundância, e comecei a ficar curioso com a criatura. Vai daí, meti-me com ele: o senhor desculpe, mas pela sua forma de olhar, parece conhecer-me. Engraçado, é que eu também pareço conhecê-lo. Lá eu sabia quem era o raio do homem, nunca o tinha visto mais gordo –o que também era natural, se aquilo era uma procissão de ossos ambulantes.
“Eu conheço bem o senhor”, respondeu o enfezado, dividido entre a irritação e o alívio por eu lhe dar a possibilidade de falar comigo. “O senhor é do SIS, não é? Anda a perseguir-me, a perscrutar as minhas actividades. Eu vi logo! A mim ninguém me engana!, disse, enchendo o peito cheio de ar. Parecia o “Manel” Alegre.
O senhor está enganado, retruquei-lhe, abanando a cabeça, só estou mesmo a gozar o meu primeiro dia de férias. “Ai não, ai não?! E porque está sempre a olhar para mim?”
Bom, se calhar, por puro acaso, talvez porque o senhor também olhava para mim. Respondi ao cabeça de alfinete. A verdade é que ele pareceu ficar descansado. Até vi os seus ombros descerem de descontracção, a fazerem lembrar os “bocas de sapo” antigos, da Citroen, lembram-se? Pois é, não sei que mágica empreguei mas fiz ali um amigo, conheci o Anastácio. Profissionalmente, era funcionário público, disse-me ele, em forma de confissão, encostando a sua boca ao meu ouvido.
Começámos a conversar de coisas sem jeito, de repente, sem nada que o fizesse prever, atirava-me de rompante: “tem mesmo a certeza de que não trabalha para o SIS?”
Como vou encontrar mais vezes o Anastácio –Anastácio Beijaflor, apresentou-se-me com grande solenidade, estendendo-me uma mão que parecia uma pala de cartão-, sem ele saber vou contar-vos as nossas conversas. Mas, não diga nada a ninguém, fica entre nós, está bem? Posso confiar em si?

sábado, 28 de junho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (23): AS FÁBULAS DO MEU TIO MANEL

(O meu tio Manel ao centro -foto de Edgar Midões)

(Capela de Várzeas -imagem do blogue Adelo)




Todos nós, dos tempos da nossa infância, recordamos sempre alguém especial que pelos feitos nos marcou profundamente. Poderia ter sido familiar chegado ou nem por isso. Como se viajássemos no tempo,  é nestes momentos de nostalgia que, entre palavra que puxa palavra ou uma fotografia que nos projecta em sentido ascendente, de repente lá vem a imagem desse ente tão peculiar e já desaparecido que, durante a nossa meninice, povoou e encantou a nossa vida. Como o recurso à imagem fotográfica era escasso, a sua silhueta surge-nos envolta na bruma da memória.
Na parte que me toca, lembro-me de vários tios que foram a alavanca de partida para um futuro de trabalho que se avizinhava. Por agora, vou apenas falar de dois, muito especiais para o meu desenvolvimento, e que jamais esquecerei.
Viviam em Várzeas, uma pequena aldeia mesmo junto ao Luso e pegadinha como paredes-meias. Os meus tios, embora irmãos, eram antagónicos na forma de viver a vida. E do seu feitio, tão contrário no estar e passar, só posso entender como sendo atribuído aos genes. Um, hereditariamente, pela graça e humor imanente, teria saído ao pai: o meu avô Crispim. Outro, mais que certo, geneticamente, teria vindo a ser bafejado com o lado bondoso e puro da mãe: a minha avó Madalena.
Este, o que veio a adquirir por parentesco a bonomia maternal, era o meu tio Albertino. Com o seu ar simples, transpirando sobriedade, seriedade e serenidade, era a humildade em pessoa. Ao longo da vida, estou em crer que nunca teria enganado ninguém. Mesmo se alguma vez o quisesse, os seus traços vincados de genuíno homem recto, justo e bom, tê-lo-iam traído e não teria conseguido "passar a perna" a ninguém. O suposto seria ele, dentro da sua encantadora ingenuidade, ser facilmente tropeado na cantilena de um qualquer burlão barato. Nasceu despido de riqueza e, na sua aceitação de vida enquanto fado de predestinação, pobre morreu.
Lembro-me muito bem deste meu tio. Por volta dos anos de 1960, era fogueiro (colocava as aparas de madeira para queimar numa grande caldeira de combustão) numa serração que existia, por esta altura, junto aos Refrigerantes Buçaco e ao lado da estação ferroviária de Luso. Muitas vezes fui vê-lo trabalhar naquele ambiente de calor infra-humano, onde se facilmente se respiravam temperaturas tórridas. Como era juntinho à gare dos comboios, volta e meia, sempre que passava uma composição, ouvíamos um estridente grito que quase estoirava os tímpanos de quem por ali andasse por perto. Era a senhora Rosalina, que vivia nos Moinhos, um povoado ali próximo e agregado ao Luso, e vendia umas torneadas bilhas de água chamadas “pichorras”, por vinte e cinco tostões. Vamos tentar recordar o pregão da então encantadora vendedeira: “Águuaa dee Luusssooo!"
O outro familiar, que certamente herdou o carácter divertido do pai, era o meu tio “Manel”. Este tão meu conhecido, de esgar folgazão e colado no rosto, um fabulador de histórias mirabolantes, foi de todos, para mim, o “must”, o meu modelo maior recalcado de uma memória, o paradigma da saudade de uma época que me faz bem. É difícil de descrever este sentimento, mas, para mim, recordar aquele tempo, em quadros alegres, é como quando necessitamos de acalmia espiritual e imaginamos um vale coberto de erva verde e um riacho de águas límpidas a correr e um radioso Sol a beijar a natureza. Assim retenho na memória este meu tio sentado no adro da capela, com a sua inseparável boina na cabeça, e o seu riso fácil entre a matreirice e a conveniência. O seu sorriso era a espiritualidade em toda a sua glória, era a sua alma materializada no rosto. Era tão normal tê-lo impregnado na sua cara que se tornava impossível dissociá-lo. Era como se ao nascer, em vez de chorar, trouxesse estampado na face aquela luminosidade fantástica. Era um mitómano em potência. Mentia, ou teatralizava, com uma facilidade de fazer inveja ao melhor actor do nosso Teatro Nacional D. Maria II. Quem não o conhecesse bem jamais diria que ele imaginava. Porque o “Manel” ao pronunciar as narrações estava a vivê-las. Não sei se era a fantasia que, como máscara natural, se lhe colava se era ele, através de um delírio fascinante em sonho de menino, que vivia autênticas megalomanias.
Sendo muito pobre, era como se desta maneira, gozando com a situação, tentasse trocar as voltas ao destino. Indrominava tão naturalmente que, em qualquer condição, era como se estivesse lá e fosse mesmo o personagem principal, apesar de saber que tudo aquilo que descrevia com mestria e uma convicção inexcedível e ao pormenor era inventado.
Quando chegava ao pé dele, normalmente sentado no chafariz do Largo da Capela, eu fazia sempre a pergunta sacramental: então ó tio como é que estamos de vacas?Ó rapaz!, são muitas, cada vez tenho mais. Ainda agora adquiri três mil. Se calhar tenho de comprar outra quinta. Não sabes quem tenha uma para vender?”. Interrogava, fixando-me de ar gracioso e dividido na comédia, perante o meu semblante compenetrado e como se estivesse a representar para agradar ao mestre.
Então e pessoal para trabalhar, você arranja? Já deve ter um exército, imagino! Prosseguia eu a estender a conversa e tentando a minha melhor performance.
´´Oh, oh! São milhares! São tantos que, calcula que quando estão todos sentados para comer, numa extensíssima mesa de quilómetros, se for batatas com bacalhau, anda um funcionário de patins em cima dela com um grande regador de 10 litros a temperar a comida”.
Onde quer que estejam os meus tios, Albertino e “Manel”, que descansem em paz e que pela sua memória sejam honrados por todos os varzienzes. Uma grande salva de palmas!





O ABROLHOS E A NOITE BRANCA



 Ontem, dia 27, foi a "Noite Branca" na Baixa de Coimbra. Como todos sabemos, copiando o que se passa no estrangeiro, consiste em manter o comércio aberto toda a noite, ou durante umas horas para além do horário dito tradicional. É uma forma de tentar, nestes eventos, em que se inclui animação, chamar os consumidores.
Andava eu, descontraído, pelas 23 horas, a passear pelas encantadoras ruas da Baixa, com barulho de gaiteiros e pouca gente, quando, ao entrar na Rua do Corvo, dou de caras com o Abrolhos. Palavra, vocês podem não acreditar mas fiquei contentíssimo em vê-lo. Vocês estão a ver quem é o Almerindo Abrolhos, já vos falei dele aqui?! É o tipo mais bacano que conheço. Gosto dele, pronto! Que querem? É como se fosse o meu alter-ego. Digamos que ele é o homem que eu não sou. Encantador para as mulheres, um Casanova, com um charme que as faz derreter como chocolate exposto a altas temperaturas. É um troca-tintas delicioso. É um “coimbrinha” de gema, que a qualquer momento desdiz o anteriormente afirmado, mas com muita classe e minúcia. Só queria que vocês vissem! Sem contorcionismos bacocos, com uma argumentação sibilina, o meu amigo Almerindo consegue, sem grande esforço, vender gelo a um qualquer esquimó.
Então, quando o encontrei na Rua do Corvo, assim que me viu –só queria que vissem- num cumprimento esfusiante, fez um alarido do “camano”: “olha o meu amigo Luís”, verberou o Abrolhos, abrindo os braços e parecendo o Cristo-Rei a abraçar Lisboa, em altos gritos, tão alto que até o Tonecas, o gato da dona Ermelinda, que passava pelas brasas no patim de acesso ao 3º andar da sua dona, se assustou e mandou um estridente grito de aflição. Aquilo parecia um quebra-silêncio em cadeia nas ruelas da baixinha. A seguir ao gato, naquele miar ensurdecedor, parecia que estava a ser violado, foram as pombas, coitadinhas, que dormiam a sono solto, e nem o tan-tan dos gaiteiros as tinham acordado. Foi uma chatice, até o Hélder, o mal-amado, um sem-abrigo que pernoita por estas ruas, quando acordou estremunhado, por se sentir incomodado. Fogo! Estava a ver que ainda chamava a polícia. Vejam bem o que fez o Almerindo, mas ele é assim, assumidamente.
-Então, ó meu, que raio de ideia é esta de fazer uma “Noite Branca” no mesmo dia em que há festas no Largo da Sereia e, como se não chegasse, o Dolce Vita, o shopping do Amorim da cortiça, faz uma igual, de 24 horas, com o Jorge Palma, vocês estão “chonés”, ó quê? Atira-me o Abrolhos, de rompante, sem que eu tivesse possibilidades de defesa.
-Ó pá, certamente foi por acaso…, começo a tentar explicar. Nem pude concluir. O Almerindo, parecendo o Pacheco Pereira, meio abrupto, nem me deixou concluir, cortou logo a direito, como se as suas palavras fossem iluminadas pelo clarão da filosofia e do saber:
-Ó mano, não venhas com desculpas cá “p'ra moi”, que disto percebo eu! Se a ideia é funcionar como uma espécie de tiro de SOS, "very lite", que sendo disparado por quem está prestes a afogar-se, clamando por auxílio urgente, até aqui eu entendo. O que não consigo perceber é realizarem isto no mesmo dia. Não vêem que é uma luta inglória? É David contra Golias, meu! Eu acho que a APBC (Agência para a Promoção da Baixa de Coimbra) não tem assessores à altura. Isto é uma tristeza –o Abrolhos fez um esgar sombrio-, está tudo a fechar! O problema é que neste mar imenso de interesses quem é que se importa que uma ou várias lojas de comércio de rua naufrague? Salvá-las dá um bocado de trabalho. Além de mais, os meios disponíveis estão todos ao serviço do grande comércio centralizado. Aliás, não é só no comércio que se verifica este fenómeno, é em todos os ramos. Na agricultura, o pequeno produtor está exangue, em agonia. Nos serviços a mesma coisa, vejam o caso dos pequenos cinemas independentes. E, naturalmente, no comércio a mesmíssima coisa. Por mais braçadas que o náufrago dê, por mais festas e festinhas que se realizem, e perante este oceano de indiferença, pouco vale. Está moribundo e pronto! O Abrolhos, amainou, certamente para tomar fôlego, então eu retomei a minha argumentação.
-Pois, concordo contigo…-fui interrompido pela voz do Almerindo, como espada cortando o vento.
-Ó meu, desculpa lá, vai ali a passear o Armindo Gaspar, o presidente da APBC, vou ver se ele não precisará de um assessor como deve ser!
E deixou-me a falar sozinho. Já nem estranho, já estou habituado. Olhei para cima, para as janelas em volta, então não é que as poucas velhinhas, que moram por ali, estavam a escutar tudo? A Dona Ermelinda, a Dona Francelina e até a menina Efigénia, que apesar da longa idade nunca casou e é virgem, dizem! Olha para as cuscas! Ou estariam a topar o Almerindo e a imaginá-lo numa longa noite de sexo? Ai estas velhas…

sexta-feira, 27 de junho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (22): AS VÁRZEAS DO MEU AMOR


(VÁRZEAS ONTEM E HOJE -IMAGEM RETIRADA DO BLOGUE ADELO)


               

   Nesta longa série de memórias, até agora, ainda não referi, mas, embora Barrô seja a aldeia onde passei a minha infância e me criei, e praticamente dela retenha todas as recordações, em boa verdade, não posso passar sem falar do lugar extraordinário onde vi a luz pela primeira vez: Várzeas.
Nasci nesta pequena aldeia próximo de Luso. Para quem não imagina, esta vila fica situada no sopé da serra do Buçaco. Como todos sabemos, ou pelo menos quem conhece, é uma terra encantada pela profusão de nascentes de água límpidas e cristalinas, medicinais e de mesa, que brotando das profundezas da terra, mostram a generosidade com que a natureza presenteou este lugar idílico e de sonho.
  Várzeas, a povoação de que vou falar, e em que nasci, é atravessada pela linha da Beira Alta por uma longa ponte de ferro, que é um “ex libris”, símbolo representativo do lugar. Aquela enorme e bela estrutura arqueada, composta por peças de ferro, é uma alegoria ao génio humano, presumivelmente, da empresa do grande arquitecto Gustave Eiffel. É uma das poucas pontes construídas em Portugal e saídas da inspiração e do engenho criativo do grande construtor da Torre Eiffel, em Paris.
Este paradisíaco lugar, erguido num vale em “u” e que certamente há milénios, na era glaciar, teria sido o leito de um rio, é circundado, quer por um lado quer por outro, por altas cercanias. As suas terras, como enclave, protegidas dos ventos, férteis para “agriculturar”, foram durante séculos e sobretudo nas últimas décadas o sustento dos seus autóctones. Era do amanho da terra negra e fértil, acompanhadas por um pequeno rio em toda a sua extensão, que se alimentavam as cerca de, aproximadamente, seis dezenas de pessoas, no ano em que nasci, em 1956.
  Nesse tempo, para quem a visitasse, era uma aldeola como tantas outras, que, facilmente, poderia representar o postal ilustrado do Portugal esconso, atrasado e rústico, não fora algumas diferenças que a tornavam diferente, quer na afabilidade das suas gentes, quer num facto que, hoje, considero curioso: a povoação, apesar de diminuta e de pouco poder económico, tinha na sua rua principal duas mercearias e tabernas. Felizmente ainda hoje em funcionamento, a primeira era a do senhor Vieira, bom homem, mas um pouco reservado e austero. O segundo estabelecimento, hoje encerrado, era mesmo ao cabo da rua e junto ao Largo da Capela. Uma vez que ficava abaixo do nível da rua, desciam-se vários degraus para receber a bênção de um bom copo de tinto em cima do mármore ligeiramente rosado do balcão de madeira. Era a “catedral” do “ti Manel” sapateiro. Trato-o assim, de forma carinhosa, porque, para além de assim ser reconhecido na época, era também o seu “métier”, a sua profissão. Embora um pouco adiposo, era um pequeno homem na estatura, mas enorme na simpatia. Tanto era ele mestre de sorriso fácil e humilde como a esposa, a “ti” Maria do Céu, que normalmente estava à frente da “venda”, no negócio de copos e mercearia.
“Ti Manel” tinha a oficina de sapateiro, conjuntamente com a habitação, a meio da artéria principal da aldeia. Era nesta arte ancestral, de manufactura de calçado, que ocupava os seus dias. Em complemento com os lucros do pequeno estabelecimento de mercearia, amanhavam umas leiras e, com os proveitos da terra cultivada, tudo junto, perfaziam os seus parcos rendimentos, permitindo-lhes viver modestamente.
Falei neste afável casal porque, curiosamente, consigo recordar, como se fosse hoje, o ar cândido, de pessoa boa e coração aberto, da “ti” Maria do Céu. Esta simpática senhora, de gestos e voz assertiva, quando me via dava-me sempre um rebuçado. Como tinha de passar, inevitavelmente, à frente da oficina do marido, do “ti Manel”, recordo deste o seu largo sorriso, sempre que me via. Com a sua voz palheta, mais para o agudo, parecendo envolver-me em mil abraços com as suas frases revigorantes e cheias de sentido anímico.
  Quando eu fizera três anos, na procura de uma vida melhor, os meus pais abandonaram Várzeas e fomos viver mais para noroeste, a aldeia de Barrô, a cerca de mais ou menos meia-dúzia de quilómetros a separá-las. Então, como era tão acarinhado por toda a gente do pequeno lugar, era para mim um gosto indescritível de prazer sempre que lá voltava a visitar os meus avós e os meus tios. Teria eu cerca de quatro anos quando morreu a minha avó Madalena. Apesar da minha tenra idade, consigo, ainda hoje, visualizar a sua imagem e a sua cara ternurenta. De baixa estatura, anafada, de avental, sempre de avental, e o seu inesquecível rosto sofrido mas imensamente sereno.
  Engraçado como em relação ao meu avô, ainda que tivesse morrido já eu teria mais ou menos oito anos, curiosamente, não consigo relembrar os traços do seu rosto. No entanto, pasme-se, é pelo olfacto que chego à sua memória. Já depois de viúvo, ele vivia num anexo, de rés-do-chão, quase em frente à oficina do “ti Manel”, e tinha por costume espalhar serradura no chão. Hoje, seja onde for, numa serração ou noutro qualquer lugar onde haja farelo de serrim, pelo cheiro, inevitavelmente, lembro-me do meu avô Crispim.
Em próximos apontamentos voltarei a esta encantadora terra maravilhosa e gémea siamesa da vila de Luso.



UMA SALVA PARA O BASTONÁRIO



Confesso que, na forma, não gosto muito do estilo do Bastonário dos Advogados, Marinho Pinto. Admito que, nesta apreciação, possa estar a ser influenciado pelos seus antecessores. Até aqui, têm sido pessoas que raramente levantam o dedo ao poder político, ou, no limite, se o fizeram, é sempre sem fazerem “estrilho” e sem levantarem a voz. Como se, com o seu low profile, fizessem parte da mesma família e, assim sendo, família não lava roupa suja dos seus entes. É o chamado politicamente correcto, uma aberração de frase, em jeito de saco onde cabem todas as anormalidades e alarvidades, que, tendo-se consciência de o ser, se diz ao interlocutor o contrário daquilo que se pensa realmente. Tudo estaria bem se esta hipocrisia remediasse alguma coisa, porém, o que se têm visto, ao longo dos anos, é exactamente o cair em decadência social duma forma patológica. Claro que os seguidores de tal doutrina, do politicamente correcto, são os primeiros a chamarem a atenção para o estado do País e, normalmente para aqueles que os apontam à pedra para tal acomodação impostora, logo refutam que quem fala assim, só sabe criticar e nada faz. É a refutação chapa 5. Creio que já todos, ou alguns, já apanhámos por tabela.
Voltando a Marinho Pinto, dizia eu que não gostava do seu procedimento, algo trauliteiro, na forma, porém, devo confessar, concordo inteiramente com a substância. O Bastonário diz, sem papas na língua o que qualquer um de nós pensa em privado (e não diz em público). Então, como esta ambiguidade é um pouco difícil de manter, embora seja possível, no entanto, sacrifico a forma pela razão da substância e passo a dizer, claramente, que, embora não concorde cegamente com tudo o que diz, passo a gostar deste Bastonário.
Não é preciso ser presciente, como quem diz adivinhar, para ver que algo vai acontecer a Marinho Pinto. Ou vai ser deposto pelos seus pares, ou pelo poder político, ou pelos juízes, ou pelos sindicatos. Este homem, facilmente se vê, em vez de concentrar forças numa só testa de combate, está a enfrentar várias frentes, e as consequências evidentes serão a sua notória fragilidade. É muita batalha para um só general. E, logicamente e infelizmente para todos nós, vai perder a guerra. Está a mexer com muitos interesses e isso vai ser-lhe fatal. Se não lhe conseguirem administrar um vírus para uma qualquer constipação, que o manterá arredado do seu ministério, ainda vão dá-lo como louco.
Para o Marinho de Coimbra, transmontano de gema, um grande abraço pela sua coragem e uma grande salva de palmas.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

A POMBA MONETÁRIA CORREIO




Quando falamos no Carteiro, enquanto profissão, inevitavelmente, os mais velhos, numa viagem alucinante, fazem uma transposição para o belíssimo filme sobre a obra homónima de Pablo Neruda –escritor Chileno, jubilado com o prémio Nobel da literatura em 1971-, em que duma forma deliciosamente simples, ao ver o filme, nos colamos à personagem.
Este filme, para quem não se lembra, passa-se numa ilha em Itália, durante o exílio do escritor. Aí, por razões políticas, pelas suas crenças comunistas e defesa intrínseca do proletariado, é amado até à exaustão pelo povo. Pelo seu versejar fácil e profundo é idolatrado pelas mulheres daquela porção de terra rodeada pelo azul mar imenso. Nesta verdadeira pérola do cinema, em que o seu personagem principal, Mário –que, apesar de ter muitas dificuldades em ler e escrever, consegue ser contratado como carteiro-, pelos seus momentos hilariantes, nos faz rir até às lágrimas, outras vezes, pela sua simplicidade natural, pela franqueza absoluta de um meio pobre, mas mostrando o lado bom do homem simples, emocionam-nos de uma forma indescritível. É uma elegia à poesia e ao amor nas suas metáforas ilustrativas do grande poeta Neruda. Este filme, embora retrate laços de uma amizade profícua entre o escritor e o seu carteiro, trata sobretudo a história de amor entre o distribuidor de correspondência e a bela Beatrice.
A relação de amizade, estabelecida entre a pessoa que espera correio, encenada pela figura do poeta exilado e o carteiro, mostra um tempo que, aparentemente, não voltará jamais. Em que o respeito pelo estatuto de cada um, se funda na inalienável dignidade da pessoa, numa igual necessidade bipolar, mostrando uma empatia entre os dois, profissional e receptor de correio. Este sentimento de amizade, desinteressado e puro, hoje desapareceu completamente.
É certo, para o bem e para o mal, que os carteiros de hoje, tal como Mário, o nosso herói do filme, já não se deslocam de bicicleta. Hoje podem andar a pé em pequenas distâncias, dentro da cidade, mas, para os arrabaldes, já se deslocam de veículo motorizado. Aposto que a maioria não conhece o profissional que lhe coloca a sua correspondência na sua caixa de correio. Sabe se é homem ou mulher? Claro que não sabe. Como ninguém espera carta de amor, o que se pode pensar é em contas para pagar: a água, o telefone, a electricidade, etc. Então, nesse caso, faz todo sentido nem querer conhecer o correio de tão tristes notícias. Como no aforismo, se pudéssemos “matávamos” o mensageiro. Só nos traz dores de cabeça. Ou então, nessa impossibilidade, porque pode ser uma “belezura”, no mínimo, que se atrase o mais possível.
Sim, falei bem, uma beleza, porque pode ser uma bonita mulher, de vinte e poucos anos, de longos cabelos louros e um palmo de cara que promete o céu. “Mas essa pessoa nos Correios não existe!”. Isso pensa você! Mas, acredite, existe mesmo, e é a carteiro da minha rua. Palavra de honra que não tenho nada a ver com isso. Acreditem que não meti nenhuma cunha. A Elisabete é uma simpatia.
Todos os dias lhe pergunto se é hoje que me traz uma carta de amor. Com o seu sorriso traquina, vai-me respondendo que não. “Já ninguém escreve cartas de amor”, responde enfaticamente. “Eu, ou trago más notícias, quando são ordens de pagamento, ou então, por volta do dia 25 de cada mês, sou o “Pombo Monetário Correio”, uma espécie de Pai Natal dos pobres. Em vez de ser a 25 de Dezembro, para estas pessoas, eu distribuo o natal mensalmente. Só me falta o barrete! Por esta altura do mês, chegam a perseguir-me pelas ruas da cidade”.
Esta correio-mulher-menina esforça-se muito, levanta-se às seis horas da manhã, vinda de uma cidade satélite de Coimbra para poder fazer face às despesas da casa, juntamente com o marido, e poder criar o seu menino. Quando lhe pergunto se gosta do que faz, engelhando a fronte, responde-me a sorrir, entre um rir possível, dividido entre a impossibilidade de escolha e a conformação: “que hei-de fazer? Sou licenciada, e estudei para assistente social, mas não tenho emprego na minha área, apesar de tudo, dou graças por ter este trabalho!”
Parafraseando uma canção conhecida do Conjunto António Mafra: “Para uns são alegrias, para outros tristezas são, o carteiro não tem culpa, é a sua profissão”.

terça-feira, 24 de junho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (21): A TOUTINEGRA DO MOINHO



(O MOINHO DE ÁGUA DA MINHA ALDEIA, EM BARRÔ, HOJE JÁ COM PONTE EM CIMENTO)


 Sem precisar a data, por volta dos anos de 1930, o meu avô Francisco –que, pelo que o meu pai dizia, fora muito rico e perdeu tudo-, conjuntamente com o Joaquim Paulo, o Alexandre Duarte, o Joaquim Matos, a Angélica Fernandes, o José da Cruz, o Daniel Fernandes, a Rosa de Melo e a Teresa Fernandes, construíram um moinho de água, na minha aldeia de Barrô, junto à represa que, formando um pequeno lago no rio, para além de servir para regar os campos do Barreiro, era a piscina pública da miudagem.
Tantas vezes tomei banho naquelas águas cristalinas, envolvido pela sinfonia desafinada do coaxar das rãs, numa espécie de serenata ao deus-sol, tentando apanhar uns minúsculos peixes cabeça de tremoço, acompanhado pelo soprar do vento nos interstícios do canavial e um imenso chilrear da passarada!
Por volta do início dos anos de 1960, tendo eu então cerca de cinco anos, o meu pai, por óbito do meu avô, era herdeiro de 22 horas por ano de moagem no velho moinho. Quando calhava, ia à noite. Ele, carregando um pesado saco de milho, mesmo em pleno inverno, eu com uma lanterna de petróleo a balançar, como espada em riste a cortar o breu da escuridão, mirando uma tosca ponte de madeira, constituída por dois grossos rolos de eucalipto e forrados a travessas de aparas de pinho, que atravessava o rio de uma margem para a outra em direcção ao moinho.
Para quem não sabe, os moinhos estavam localizados junto dos cursos de água. Normalmente tinham um regueiro próprio que se iniciava, a montante, junto do rio e seguia em paralelo com este até incidir sobre uma grande roda de água, constituída em madeira por uns raios largos ou lemes. Esta roda, ao ser tocada pela força da água em jacto, gerava, através do movimento, uma força cinética que fazia mover uma mó em pedra granítica pesadíssima. Consoante a regulação mecânica pretendida, esta pedra esmagava completamente os cereais. Ainda me lembro do ruído desta pedra a rodar sobre outra. O ruído do atrito fazia lembrar os velhos comboios, pum, pum, pum, pum.
Era engraçado ver o meu pai, depois de apanhar a farinha para um saco, ficar completamente branco, chamuscado pela alvura, como se tivesse sido caiado por uma mão invisível. Depois de transportar a farinha para casa depositava-a numa arca de madeira. Era aí que a minha mãe a ia buscar e, num longo ritual, depois de amassada a massa, onde incluía umas rezas e um benzer, ia então acender o forno a lenha. Cozer a broa era sempre um dia de festa. Não porque tivesse alguma coisa de novo, penso, tão-somente que por ser um acontecimento que quebrava a modorra habitual, ou talvez o cheiro à pasta e ao odor do fumo do forno a lenha tão característico das aldeias. Ou, sei lá, talvez saber que nesse dia iria comer broa quente, tantas vezes com sardinhas lá dentro. Conseguem antever o sabor da broa quente, bem cozida e com todo aquele amor? Claro que conseguem! Basta imaginar.
Mesmo em criança nunca fui bom ornitólogo. Isto é, nunca percebi nada de pássaros. Não deixa de ser curioso, porque os pássaros sempre me encantaram. Em tempos de nidificação, dava tudo para encontrar um ninho. Quando achava um, era como me tivesse saído a lotaria. Ficava ali parado a olhar aqueles pequenos seres indefesos de bico aberto no ar. Depois, nos dias subsequentes, todos os dias ia visitar o “meu” ninho, acompanhando o crescimento dos pequenos passarinhos. Até que, inevitavelmente, um dia chegava lá e o encontraria vazio.
O único pássaro que conhecia era a toutinegra, hoje, infelizmente, quase em desaparecimento. Muitas vezes, durante o dia, ia sozinho para junto do moinho. Ou fosse pela farinha ou pela proximidade da água, quando lá ia estava sempre pousada no beiral uma toutinegra. Eu sentado na pedreira, ela em cima, vigiávamo-nos mutuamente. Eu apreciava o seu longo rabo, as suas elegantes pernas e a sua profusão de cores. Talvez invejasse a sua liberdade. Ela, provavelmente, olhando desconfiada, interrogava-se o porquê da minha curiosidade. Às vezes dava por mim a falar com ela e, tantas vezes, imaginava que ela falava comigo. Durante muitos anos a toutinegra do moinho foi a minha melhor amiga e confidente.

UM SISTEMA SISTÉMICO



O FACTO:
A história começa, há cerca de um ano atrás, com um jovem de vinte e poucos anos, bem apessoado, a entrar numa loja de velharias, na Baixa, e a vender seis livros pretensamente usados, em estado semi-novo por 20euros. Em presença do bom-estado dos livros, sendo títulos de escaparate e interrogando o vendedor acerca do motivo da venda, o dono da loja recebe de resposta do alienante que tais livros já tinham sido lidos, além disso, em casa tinha dezenas, senão centenas, e que no dia seguinte viria vender mais.
Depois de acertado o negócio, e do vendedor ter saído e se ter identificado em conformidade com a lei, o dono da loja, ao manusear os livros, verificou que eram completamente novos e mais: não tinham sido lidos e conservavam os códigos de barras identificadores das livrarias Almedina e Bertrand . Como o comerciante sabia que uma grande percentagem das lojas da Baixa são, actualmente, grandes vítimas de furtos simples, até porque, igualmente, ele também faz parte do rol, seguidamente pegou nos livros e foi pessoalmente às duas livrarias alertar as gerências desta anomalia e que, em face dos presumíveis desvios, tomassem providências.
Os encarregados destas livrarias, perante a iminência do montante de livros ser elevado, ao tomarem conhecimento do facto puseram as mãos à cabeça, mais ou menos com a seguinte exclamação de receio e espanto: “como é possível!”.
Perante os factos, e conforme a lei obriga, o comerciante alertou a PSP. Veio esta a constatar que o entretanto constituído arguido tinha furtado centenas de livros em várias grandes e pequenas livrarias da Baixa, entre elas, as já citadas Almedina e Bertrand. Constatou também que os livros novos tinham sido alienados, quase na totalidade, numa casa comercial em Coimbra.
Como o arguido está envolvido noutros furtos na cidade, com receptação, está preso em prisão preventiva há cerca de sete meses.

O JULGAMENTO:
Depois de ser notificado para o julgamento às 9 horas de hoje, o comerciante, à hora marcada lá estava. A chamada para o pleito foi realizada às 10horas.
Para sua surpresa verificou que era o único ofendido no montante de 20euros. Por outras palavras, as livrarias da Baixa, lesadas em milhares de euros, nenhuma apresentou queixa. É razão para questionar se estas casas comerciais, hoje, perante furtos tão avultados, preferindo esconder a cara, amanhã, quando voltarem a serem roubados com ainda maior volume terão alguma legitimidade para apresentarem participação.
Tendo em conta que a violência urbana, nomeadamente furtos e roubos, assenta essencialmente na prevenção, e aí deveria ser obrigação moral de todos os prejudicados apresentarem queixa, para que as polícias, através da ocorrência, possam sinalizar e registar os índices de criminalidade, estes agentes comerciais, na sua omissão, concorrem para futura delinquência e colocam em risco e insegurança os meios envolventes em que estão inseridos. Por outro lado, esta falta de participação cívica, leva ao falsear de dados estatísticos sobre criminalidade referentes às cidades.
Ainda mais: gente que age assim, pela sua displicência, fazendo troça de quem cuida dos seus interesses e da sua segurança, como é o caso do agente da PSP, que, estando destacado em Lisboa, obrigatoriamente esteve presente no julgamento como testemunha. Tal-qualmente, como o comerciante, inconsolável perante o trabalho que teve, e para nada: “veja lá que perdi horas e horas a catalogar os livros, por referência e por livrarias, fui a cada uma para ser feito o reconhecimento, e estes fulanos estiveram-se a marimbar para o meu esforço”, desabafa, indignado o cívico.

O PRESIDIÁRIO:
Entre as 10 e as 11e 30 horas o réu, perante as imensas pessoas presentes no tribunal, esteve sempre algemado. Está certo? Muitos leitores irão pensar que sim. Eu penso que não. Aquele quadro triste dever-nos-ia envergonhar a todos. Deveria envergonhar um Estado que, em pleno século XXI, na era digital, no tempo da pulseira electrónica, discrimina e procede com os seus presos (só alguns), do mesmo modo, como se estivesse em pleno século XIX.
É um desrespeito por quem prevaricou. Eu sei que, provavelmente será difícil de entender esta apreciação subjectiva. Afinal é um ladrão, dirá você. É verdade sim senhor! É um delinquente, mas, cada coisa em seu lugar, isso não implica que não se deva ter respeito pela pessoa humana…que é o preso ali presente. Se admitimos aquele anacrónico tratamento inumano, porque não admitirmos a pena de morte ou a sevícia para todos os criminosos?
É controversa esta minha apreciação? Admito que possa ser. Porque em qualquer momento posso criticar o excesso de Direitos Liberdades e Garantias com que os nossos actuais códigos de Processo e Penal encaram a criminalidade e a delinquência social. Mas tenho a certeza do que escrevo, uma coisa é a forma (como é apresentado o arguido no tribunal) e outra coisa é a substância na sua apreciação (matéria de facto e de direito).

CONCLUSÃO:
Não fará sentido estabelecer no Código Penal plafonds para furtos sem violência? Onde não exista um acessório dano material ou corporal? Fará sentido que um crime de 20euros (como no caso em apreço), sendo crime público, ocupe o tribunal em julgamento, faça deslocar um agente da PSP e leve um comerciante a perder uma manhã para nada?
Fará sentido levar e manter o arguido no tribunal algemado por furtos simples?
Ah, é verdade, estava a esquecer-me de dizer, o comerciante perdoou o vendedor de livros. Em resumo aquele acontecimento, na visão de José Gil, foi um acontecimento não-inscrito, como não teve consequências, foi como não tivesse acontecido.

sábado, 21 de junho de 2008

O REGRESSO DO ABROLHOS


(Quando se tirou esta foto, por acaso, o Almerindo não estava lá)



Claro que vocês não se lembram do meu amigo Almerindo Abrolhos. Falei aqui dele, no ano passado, e fiz a sua apresentação. Como já passou muito tempo, vou descrever-vos esta figura ímpar, que, normalmente no verão, regressa a Coimbra.
Posso dizer-vos que o seu quartel-general, durante o dia, é a esplanada do Café Santa Cruz, ali na Baixa, junto à Igreja com o mesmo nome. Vocês conhecem, certamente. Garanto-vos que, como homem, é encantador. De fino trato, nunca lhe ouvi levantar a voz. É assim uma espécie de “Zézè Camarinha”, mas muito mais elevado, de uma sensibilidade e cultura à flor da pele. É um "Coimbrinha" muito nosso, muito especial. Apesar dele ainda não me ter avistado, estou a vê-lo sentado na esplanada. Vou descrever-vos como é que está vestido. Sobre uma t-shirt azul céu, presumivelmente Lacoste, sobre os ombros, ressalta um pulôver de mangas caídas, amarradas em forma de nó, sobre o peito. As calças, impecavelmente vincadas, são brancas, a fazer namoro com uns sapatos “abicados”, de verniz, de alta qualidade, aposto que foram comprados na Sapataria Romeu. Junto dele, sobre a mesa, um telemóvel terceira geração.
O seu cabelo, impecavelmente penteado para trás, sustentado por grandes camadas de gel, deixam antever uma cãs já meia esbranquiçada de quase meio século, embora muito bem encobertas por uma tinta revitalizante, emolduram uma cara de menino traquina. Este homem, pelo brilho dos olhos, encobertos por uns revivalistas óculos de sol “Raiban”, dos anos 70, parece não ter crescido e conserva uma graça e infantilidade indescritíveis. Reparem nele. Parece que está inerte, mas é puro engano. Está a “morder” tudo à sua volta, como costuma dizer. Olhem bem, vejam o que vai acontecer com aquelas duas “cotas” boazonas que se aproximam, descendo a Visconde da Luz. Vêem, eu não disse? Olhem só para aquele olhar descarado, de engate, das maduras. Parecem cadelas com cio. Não tiram os olhos do Almerindo. Eu não disse? Este homem atrai as mulheres como abelhas pelo pólen. É uma coisa incrível. Eu não devia dizer, mas chego a ter inveja dele. Que coisa! Porque é que uns têm tudo e outros nada? Está certo? Na minha simplicidade, acho que não. E depois, o que me aborrece mais é não podermos reclamar para nenhuma entidade. Hoje pode-se reivindicar tudo, que diabo, só falta podermos exigir um necessário carisma quando nos falta. Bom, vou mas é cumprimentar o Abrolhos, que já tinha saudades dele. Vão ver a algazarra que ele vai fazer quando me vir. Até parece que adivinho. Já me viu. Já começou a levantar-se e abrir os braços, parece a Santa Maria Adelaide.
-Ó meu, quantas saudades, quase há um ano que não te via. Cumprimenta-me num grande grito. Toda a gente parou para ver. Até aquele senhor velhinho lá no canto, que lia o jornal na paz dos deuses, levantou os olhos e não descola do Almerindo e do seu brilho efusivo de alegria.
-Então por onde tens andado, Abrolhos? Pelos “Brasis”, já vi tudo, a perseguir aquelas morenas, foi, não foi? Interrogo, meio duvidoso.
-Claro, pá! Sabes bem que não me dou com o frio cá da província.
-Conta-me tudo, suplico eu, nunca mais soube nada de ti, podias ao menos enviar um e-mail. Instigo-o, em forma de reprovação.
-Ó meu, comigo está tudo "numa nice", contigo é que parece que não. Pareces-me um bocado desanimado. Estás como a Baixa, sem brilho, sem alento, como uma lagoa de água-choca!, atira-me de chofre o Almerindo a querer provocar-me.
-É pá, ninguém se importa com isto, como é queres que me sinta? Recalcitro sem grande convicção.
-Ó meu, então mas, ontem na ACIC, a deputada eleita pelo PS, pelo círculo de Coimbra, não afirmou que candidatar a Baixa a Património Mundial pode ser a solução? Além de mais o estudo apresentado pelo docente da Faculdade de economia, Henrique Albergaria, que compara a Baixa e a Solum –que já foi apresentado há mais de um ano na Câmara Municipal-, vem mostrar que o comércio tradicional tem potencialidades e não as está a aproveitar. E mais: o responsável pelo Gabinete para o centro Histórico de Coimbra, veio desancar nos comerciantes, como já é costume, afirmando que vocês têm tudo para serem felizes e são umas “avéculas” infelizes? Interroga o Almerindo, franzindo as sobrancelhas, fazendo uma cara de caso, como se estivesse a teatralizar.
-Ó pá, soluções todos têm, o problema é que não se passa disso. É assim uma espécie de barraca de tiro ao alvo, de feira, todos dão um tirinho, aparentemente, todos acertam na “mouche”, mas como usam pólvora seca e a finalidade é apenas mostrar que se sabe atirar, não se passa disso. Porque logo a seguir se lhes for pedido a sua contribuição para avançar já não estão disponíveis. Sinceramente ó Abrolhos, creio que verdadeiramente ninguém está interessado em fazer absolutamente nada. O que lhes interessa é apenas, de uma forma de “faz-de-conta”, mostrar que se faz. Uma tristeza, amigo…
-Ó meu, ó meu, que é isso, calma, eu estou aqui –interrompe-me o Almerindo, preocupado com o meu desânimo e dando-me um abraço. Tem calma que eu vou ajudar. De repente, levanta-se e “ó Carlos, ó pá, espera aí que preciso de falar contigo”. Em passo apressado foi ter com o presidente da Câmara, Carlos Encarnação, que passou à nossa frente, certamente ia para a Rua Fernandes Tomás. E como já estou habituado, o Almerindo, deixou-me a falar sozinho.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

A GRANDE ILUSÃO




Portugal foi eliminado do Europeu. Ora bolas! A partir de agora, sem circo, como é que se vão manter as hostes ocupadas? Descida dos infernos, lá vem a crise outra vez, como monstro mitológico, espavorida e a bufar lume pelas narinas.
Já estou a ver o engraxador Anacleto, em casa, a pisar o cachecol, dar um valente sopapo na Efigénia, a sua cara-metade, e os filhos, como ratos num navio prestes a afundar-se, a correrem rápidos, antes que a turbulência também se abata sobre os seus corpos escanzelados e endémicos. Em cima da cómoda, que, pelas rugas salientes na madeira meia carcomida, já conheceu melhores dias, num oratório, em castanho -que foi a única coisa que resistiu à fúria de tudo vender do pai bêbado do Anacleto-, uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, em barro, de criação popular, parece, pela cara sofrida, querer encolher-se, como a dizer: “a seguir sou eu”. De mãos erguidas ao céu, parece falar com Deus, e em prece sentida, pede-Lhe perdão, e protecção contra aquele brutamontes do Anacleto. De olhos postos no etéreo, em oração, parece falar com o Mestre e, em diálogo, parece dizer: “eu não tive culpa pai. Eu esforcei-me, palavra de honra! Embora tenha de confessar que não gostei nada, mesmo nada que o Scolari me levasse para a cama. Sim! É verdade, o raio do homem, abusivamente, até dormia comigo. Ora isso é violação, entendes Pai? Depois, tantos milhões a fazerem pedidos. Não há santa que aguente. E agora, que perdemos, como a Efigénia, lá vou sofrer a violência doméstica do cabrão do Anacleto. Ora fosca-se para isto! Não há santa que aguente a crendice destes portugueses! Demito-me, Pai! Tira-me daqui depressa!”
Ouviu-se um grande estardalhaço na rua em frente ao prédio do Anacleto. Por pouco que a Dona Mariquinhas, coitadinha, não era atingida. O estafermo do engraxador, do seu 3ºandar, mandou o oratório para a rua. Espatifou-se tudo. É o povo no seu melhor…quando está no seu pior.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (20): A LERPA


(O JOGO DA LERPA É CONSTITUIDO POR 3 CARTAS)


Quando acabei a escola primária, em 1966, na minha aldeia, em Barrô, entre a Mealhada e o Luso, escrevi uma carta a um meu tio que trabalhava em Coimbra, como cozinheiro, para que me arranjasse emprego. Passados poucos dias recebi uma missiva a dar-me conta de que tinha trabalho. Nesse dia, não cabia de contente. Finalmente ia ver-me livre daquela terra, daquele ambiente que julgava miserável e causador de tanto sofrimento que sentia. Claro que a aldeia não tinha culpa do meu pai me obrigar a trabalhar todos os dias, domingos e feriados, e até de noite. Durante a semana, mal finalizava as aulas, tinha de ir logo a correr para casa, para ir apanhar, através de ceifa, dois molhos de erva. Raramente tinha tempo para brincar com as outras crianças. Muitas vezes, de noite, o meu pai obrigava-me a ir com ele regar a leira do Barreiro. A água, provinda da represa –onde, muitas vezes no verão, servia de piscina comunitária aos mais novos e onde o cantar, em forma de serenata, dos ralos e o coaxar das rãs era música celestial para os meus ouvidos- era atribuída por sorteio, de modo que poderia perfeitamente calhar às três horas da manhã. E o meu pai, imbuído de um sentido de dever educacional, de que um filho só aprendia a trabalhar, trabalhando, e desde pequenino, não perdoava. Era do trabalho que tudo vinha, resmungava, amiúde, quando eu, recalcitrante, tentava pisgar-me. Perante a minha atracção pela cama, às vezes bufava como toiro enraivecido, lamentando trabalhar que nem um galego, que o seu pai não lhe deixara nada, e, entre apodos de calaceiro e malandro, retrucava sem parar: “dormes muito, nunca há-des ser nada na vida”. Ao longo da minha ainda curta existência, tantas vezes repetiu esta frase que, se por um lado me irritava solenemente, por outro, desencadeou em mim uma espécie de desafio. Para dentro de mim, pensava: um dia hei-de provar-lhe que se enganou. É curioso, com toda a honestidade, acho que, enquanto viveu, passei a vida toda a querer provar-lhe que estava enganado. Ainda hoje consigo sentir o efeito daquelas palavras como o silvar de um chicote. Está bem leitor, eu sei que, como sempre, fugi ao tema, mas já irei retomar sem mais demoras. Dizia eu, então, que tinha recebido a carta do meu tio a prometer-me emprego e fiquei esfusiante de alegria. Por coincidência, nesse dia, o meu pai recebeu a visita de um amigo, o senhor Martinho, homem de grande saber, que falava pelos cotovelos, de farta bigodaça, como vassoura de piassaba, um grande chefe de mesas, de Várzeas, e, é claro, corri a dar-lhe a novidade: vinha trabalhar para Coimbra. Perante aquela grande notícia, o nosso amigo não enjeitou a oportunidade de me dar uns conselhos morais em pacote: “nunca sejas refilão, faz sempre o que te mandarem sem reclamar; se acaso te perguntarem se tu sabes fazer bem uma determinada coisa, mesmo que saibas bem, nunca digas que sabes; nunca te metas em jogos, o jogo desgraça mais que as mulheres; no mínimo deves estar um ano por um qualquer emprego por onde passes, caso contrário, vão achar, por aqui, que és um estafermo de um mandrião”. Vim então para Coimbra, para a Praça da República. A minha principal preocupação era que no mínimo deveria estar um ano no primeiro emprego –curiosamente estive lá quase seis anos. Trabalhava de manha até à noite. Embora tivesse duas horas de intervalo e um dia de folga. Essas horas de lazer eram passadas nos bilhares do ACM, Associação Cristã da Mocidade, e nos bilhares do Fontes, do café Moçambique. Como passava lá o tempo, apesar de puto, tornei-me um bom jogador de Snooker, onde me confrontava com outros muito mais velhos do que eu a jogar a dinheiro, à “seguidinha”. Alguns deles, lembro-me, valendo-se do desproporcionado físico, em relação ao meu, perdiam e depois não pagavam. O jogo, nesse tempo, para além da Tabacaria Sereia que vendia livros usados de banda desenhada, era um dos poucos divertimentos que existiam na Praça da República. Um dia recebi um convite do meu amigo Daniel, que trabalhava no café Tropical, para irmos à noite, depois das 23 horas, jogar à “lerpa” –jogo de cartas de fortuna e azar-, a vinte e cinco tostões a “casadela”, com um grupo de rapazes mais velhos. Entre eles estava o Henrique, que era coxo, e tinha organizado o jogo. Este rapaz, como se não levasse em conta a sua deficiência, era muito alegre e divertido, e gozava de grande respeitabilidade no grupo. Há hora marcada reunimos cerca de oito rapazes e, como benjamim, lá fui atrás deles. Fomos então jogar para um edifício abandonado, mesmo em frente e a cerca de oitenta metros da PIDE. Como não havia energia eléctrica, jogávamos à luz de velas. Pode-se, facilmente, imaginar o “cagaçal” que fará quase uma dezena de pessoas num prédio abandonado, em volta de um caixote, a jogarem cartas, à meia-noite, e com vizinhos a morarem mesmo nos prédios contíguos. Passados um pares de horas de sermos “ocupas” do edifício, ouvimos grandes pancadas, batidas com muita força, na porta principal. Um dos do grupo foi espreitar à janela e, como mola automática descomprimida, grita: “é a polícia!”. Desata tudo a correr para o lado das traseiras, para o quintal, que dava para uma rua transversal. Alguém gritou: “encontramo-nos no Tropical!”. Fugimos todos pelas ruas anexas e fomos então ter ao café Tropical. Quando, cansados e arfantes, contamos os fugitivos, faltava um: o "Xico" coxo -o Henrique era também assim conhecido entre os amigos. Pensámos logo: “estamos “lixados! Foi apanhado pela “bófia” e vai denunciar todos os nossos nomes”. Passado cerca de uma hora depois, aparece então, descontraído, o "Xico". Como jornalistas em busca de título de caixa-alta, corremos todos para o “coxo”. “Então, então?”, interrogávamos em aflição. “Fui apanhado, pá!”. E deste os nossos nomes? Interrogámos em uníssono. “Claro, que querias que fizesse?”. Como andorinhas embrulhadas em desespero, fomos todos embora. Nessa noite não dormi, só me lembrava dos conselhos do Martinho. Ensimesmado, já me via a ser interrogado na esquadra da polícia e a ser apelidado na aldeia de bardino, um estoira-vergas. No dia seguinte, à tarde, o Henrique convocou uma reunião. Por entre risos de troça, o salafrário começou por explicar que por ser coxo não nos pode acompanhar no sprint para o quintal. Então deixou-se ficar dentro da casa e quando a polícia começou a correr, a rodear o edifício, calmamente, ele saíra pela porta principal. Tudo estava bem. Suspirei de alívio e pisguei-me sorrateiramente. Foi um grande susto.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (19): O SENHOR ANTUNES


(Imagem retirada da Web)




 Quando deixei a minha aldeia em 1966 e vim trabalhar para Coimbra, para um café que, sendo na altura um ex libris na cidade, era, sem margem para dúvidas, uma espécie de santuário espiritual para os estudantes. Era, sem exagero, talvez o café de maior referência da cidade. Por ali passaram figuras gradas da política partidária de hoje, muitos professores de Direito, uns vivos outros já desaparecidos, outros de Letras e muitos escritores de renome que fazem sucesso e estão por aí, uns perdidos, outros bem salientes, nos escaparates das livrarias. Nos dias que correm, como toda a gente sabe, aquele espaço mítico, está ocupado pelo americano McDonald’s. Felizmente que deixaram o magnífico painel de azulejos de Vasco Berardo, retratando uma cena esforçada de labuta na agricultura daquela época.
Se por um lado o Mandarim tinha no seu ambiente característico, muito sui generis, prolixo e multifacetado, algo de um ambiente de Istambul, onde era visível uma certa ordem num certo caos, por outro, o seu proprietário, o senhor Antunes, Homem, de cerca de sessenta anos, o proprietário do Mandarim, era uma pessoa respeitabilíssima por toda a gente. Pessoa boa, acessível e sempre pronto a trocar um cheque pré-datado ou mesmo a emprestar dinheiro a qualquer estudante menos endinheirado. Mas, e aqui é que reside o caso curioso, digno de ser estudado pela sociologia. Em pleno Estado Novo, com a defesa intrínseca dos valores morais e da família, o senhor Antunes, no seu pragmatismo, realizava o sonho de qualquer homem. Tinha um gosto especial, quase escandaloso para a época, não fora a sua importância estatutária na sociedade conimbricense e poderia ter sido o cabo dos trabalhos. O senhor Antunes era casado e com mulher…até aqui tudo bem e normal. O que vem a seguir é que já não é: este empresário de hotelaria tinha duas amantes, com cerca de vinte anos a menos, cada uma, em relação às suas seis décadas. Uma vivia na Rua das Flores e outra na Rua Corpo de Deus. O mais curioso, constava-se, é que as três –estou aqui a incluir a esposa-, individualmente, sabiam da existência das outras. Como faria ele para “assistir” três mulheres? Posso garantir que não havia Viagra, mas já se falava em “pau de Cabinda”, seria isso? Além de mais, poderemos até supor que o homem era uma estampa, assim do tipo, sei lá, Errol Flynn, mas, pasme-se, não era nada disso. Era uma pessoa normalíssima. Para além de ser boa pessoa, era assim para o baixote, afável, cordato e assertivo. Então que teria ele de especial para ser amado por três mulheres? Nunca se saberá, mas posso afirmar que, individualmente, as tratava com muito carinho. Eu assisti algumas vezes a essas efusões de amor, certamente, ou pelo menos, uma terna protecção.
O que ressalta é a permissão de lascívia, o tácito “mijar fora do penico”, ou melhor a omissão, por parte de agentes do Estado, uma vez que o café era , creio, frequentado por todos os agentes da PIDE. Seria por consideração? Admito que sim. Talvez pelos favores prestados. O senhor Antunes era uma boa alma. Estava sempre disponível. Creio que ajudava toda a gente, independentemente da cor da pele, da tez política ou do credo. Tanto fazia que fosse um qualquer doutor como o engraxador Raul, que tinha muitos filhos e, nessa altura, prestava serviço no Mandarim, polindo os sapatos de quem o solicitava.
É possível que fosse a consideração e o agradecimento a razão do mutismo conivente e complacente. Nessa época,os agentes e sobretudo os muitos informadores, os “bufos”, ganhavam muito mal e, pela carência financeira, recorriam a este serviço abjecto, muitos deles com plena consciência dos seus actos. Mas a família, tal como hoje, tinha de ter comer à mesa e, muitas vezes, para alimentarem os filhos tinham de recorrer aos empréstimos do senhor Antunes.

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (18): O SENHOR DOUTOR


(Este rapaz que está em cima do leão, presumivelmente "desaparafusado", continua ainda hoje a pedir uma moedinha senhor "dótor"-imagem da Web)


(O FAMOSO DANIEL "TATONAS", foto retirada da Web)


(Eis aqui o famoso "Taxeira". Se ele teve direito a figurar numa rua, tenha calma, porque você e eu, facilmente, também lá chegaremos.É só uma questão de tempo!)


 Quando mal acabei a escola primária, em 1966, vim trabalhar para Coimbra, para um café que exaustivamente referi: o saudoso Mandarim. 
Nessa altura, era costume na cidade, sobretudo na hotelaria, tratar toda a gente por doutor. Qualquer bicho-careta de brilhantina no cabelo, mesmo que estivesse sebento, uma gravata por cima de uma coçada camisa e estava feito um doutor. Talvez esse recalcado tratamento explique em parte esta mesma deferência, ainda hoje, usada e abusada na cidade. O que é curioso é que há sempre dois abusadores o que trata o outro por “doutor” e o presunçoso que, obrigatoriamente, se faz reconhecer com tal distinção.
Pode parecer confuso, mas vou explicar melhor. Por exemplo, hoje é muito natural ser abordado na Baixa, por pelo menos um demente, que, para chamar a sua atenção, empregará o vocativo “ó senhor “dótor”, dê-me uma moedinha”. E isto, não se pense, não é nada novo. Já nos anos 70, do século passado, havia na cidade dois cromos, onde a senilidade imperava, que usavam o mesmo método de introdução à moeda: o Daniel “tatonas” e o Raul dos Reis Carvalheira, mais conhecido como “Taxeira” - figura típica coimbrã que, não sei bem em que critérios assentou, mas é nome de rua na cidade dos estudantes. 
Penso que já é visível onde queria chegar. Ou seja, o “senhor doutor” é usado como alavanca para quem quer obter algo em troca sem grande esforço e através de um encómio que pouco custa soletrar. A quem o profere exige-se muito pouco (que é sempre compensatório) e quem o recebe, numa viagem supersónica, sobe ao pódio e desfaz-se em generosas subtilezas.
É um abuso perpetrado por aqueles que obrigam outros nesta deferência, porque, como é óbvio, sendo apenas licenciado –o que hoje em dia felizmente é a maioria- pretende alcançar um "status", um estatuto de importância que não tem. O que é curioso, quanto a mim, é este jogo de luzes difusas. Ambos sabem que se estão a enganar mutuamente, no entanto tudo rola lindamente nesta Coimbra de tradição, onde o que interessa é o que parece e não realmente aquilo que se é. Mas, se isto é cultura, ainda que discutível, está tudo dito. Tal como a religião e a política partidária, cultura, mesmo que seja abjecta, sendo uso e costume, não se discute e pronto!
Bom, mas com tudo isto, quase esqueci a minha pequena história, mas, sem mais delongas, vamos a ela que se faz tarde.
No pequeno balcão da pastelaria, o senhor Mendes era o chefe supremo daquele pequeno principado. Fazia tudo para me ensinar a cuidar dos pastéis, a expor as caixas de bombons, como só ele sabia fazer, e, sobretudo, o trato com os clientes, essa era a sua principal preocupação. “Não te esqueças, sempre que vejas um senhor de capa e batina ou vestido de fato e gravata, dirige-lhe-se, obrigatoriamente, sempre com trato especial: "faz favor de dizer, senhor doutor?”.
E assim fazia, até que um dia, um cliente bem posto e todo "apessoado", de fato e gravata, chega ao balcão, e eu, naturalmente: "faz favor de dizer, senhor doutor?" 
O fulano fez uma careta, acompanhado com esgar de contrariedade, e replicou: ”ó rapaz…estás a gozar comigo…ó quê? Eu sou o motorista do doutor Pais Ribeiro! Não me chames nomes…ouviste?" –reclamou irritado e aos berros o homem.

HISTÓRIA DA MINHA ALDEIA (17): OS MEUS SAPATOS DE LUVA


(Não é o senhor "Xico", mas pode perfeitamente representar a sua memória)

Ainda não contei, mas os meus primeiros sapatos, as primeiras calças de vinco “terylene”, a primeira camisa de colarinhos “tv”, assim chamada na época de 1960, e um pequeno pulôver, tive-os apenas, pela primeira vez, quando, com 10 anos, fui fazer o exame da quarta classe. Esta mesma roupa serviu depois para a comunhão, celebrada logo a seguir, assim como para entrar, um mês depois, então ainda com 10 anos, no mercado de trabalho.
Lembro-me de, uma semana antes do exame, a minha mãe ter ido ao Luso, à loja do senhor Adelino Carvalho, comprar estes “luxos”. Acreditem, não exagero ao classificá-los assim. Para quem nunca tivera uma “farda” daquele gabarito, quem sempre usara calças remendadas e umas “chancas” no inverno e umas sandálias de plástico no verão, aquilo era mesmo um luxo indescritível. Nos dias antecedentes do exame, mal os meus pais viravam costas, aí ia eu a correr vestir aquelas roupas à pressa, a deleitar-me e, certamente, naqueles momentos fugazes de felicidade extrema, a imaginar-me, por entre todos os mais pobres da aldeia, o menino mais rico e mais sortudo. A sorte que eu tinha! Parecia mesmo um senhor, todo aperaltado, daqueles do pequeno ecrã, que, até aí, só vira na televisão, na “venda” do senhor António Simões.
Veio o dia do exame, que fiz durante a manhã. Mal cheguei a Barrô, almocei à pressa e fui colocar-me, sentado, de perna traçada, no patim do Largo da Capela, para que toda a gente da aldeia visse como eu estava vestido. Estive lá sentado até ao anoitecer.
Uma semana depois, creio, celebrei a comunhão e logo a seguir, em 1966, vim trabalhar para Coimbra. Enquanto esta roupa durou chamei-lhe um figo. Depois, como não havia dinheiro, passei a usar roupa usada. Roupa nova, de marca, contentava-me em vê-la nos outros. Os sapatos que calçava até ficarem rotos eram dos mais baratos que havia, custavam cerca de 80$00.
Lembro-me que o meu maior sonho, na altura, era ter umas calças de ganga LOIS, uma camiseta LACOSTE, e uns sapatos de luva. Porém, havia um senão. Cada uma destas peças custava à volta de 250$00. Como eu ganhava exactamente essa quantia, que ia inteirinha para os meus pais, facilmente se notará que eu estava tão longe de ter um destes ícones da moda, como quase ir à lua. Então, um dia, eu mandara pôr meias solas nuns dos tais sapatos baratuchos no senhor “Xico”, sapateiro, à entrada da Rua Tenente Valadim. Acontece que, sem eu compreender o porquê, o senhor Francisco nunca mais mos entregava. Passados cerca de dois meses, fui então à sua oficina perguntar pelos sapatos. O sapateiro, meio atarantado, não se lembrava do meu calçado, então vira-se para mim e diz:” engraçado, não me lembro nada de mos teres colocado aqui para conserto. Vê aqui se os reconheces”. Em frente a mim estava uma longa prateleira com todos, todos, os sapatos já prontos. Conseguem adivinhar quais os sapatos que escolhi? Pois claro…uns de luva, é óbvio! Mas havia um pequeno senão, ao calçá-los, estavam apertadíssimos, mas não foi por isso que não andei orgulhosamente com eles.Durante meses, enquanto duraram, mesmo magoando-me os pés, eles foram o encanto dos meus dias e o meu sonho tornado realidade.
Quanto às tão ambicionadas calças de ganga Lois e camiseta Lacoste, só viria a tê-las pela primeira vez, creio, já com 16 anos, quando fui trabalhar para uma casa comercial de pronto-a-vestir.
Ainda hoje, curiosamente, as calças de ganga são as minhas eleitas e uso sempre sapatos de luva. Comprar uma Lacoste, para mim, é algo de místico, qualquer coisa que me transcende, é como fazer uma viagem a um recanto paradisíaco que é só meu. Estou preso ao passado? Dirá você, leitor. Se calhar, é o mais provável. Afinal, não será verdade que somos um resultado, nunca acabado, de um continuum que começou no berço?

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (16): O MANDARIM


(A Praça da República, por volta de 1960. Imagem retirada da Web)




 Embora tenha consciência de que estou a fugir um pouco ao tema, que me motivou e dá ênfase a esta série de crónicas, ou seja, falar da minha aldeia de Barrô, ali próximo de Luso, a verdade é que, ao penetrar nesta senda das recordações, sinto como se entrasse num labirinto desconhecido. Aos poucos, em soluços de memória, sem que nada o faça prever, como pequenos fantasmas, vão surgindo novos dados como se saltassem de repente e gritassem: “aqui estou”!
Então, seguindo essa apologia, vou contar. Depois de ter concluído o exame da 4ª classe, em Julho de 1966, e ter escrito uma carta a um meu tio, que era cozinheiro num emblemático café-restaurante, em Coimbra, a pedir-lhe emprego, eis-me então chegado à cidade do Mondego.
Depois de ter sido surpreendido pelo bulício da Praça 8 de Maio e ficar extasiado com este novo mundo, acompanhado do meu familiar, tomámos o eléctrico. Pagámos cinco tostões pela viagem e desembocámos na Praça da República. Ali, à nossa frente, imponente como Taja Mahal, estava o grande restaurante que, para além de ter marcado uma época, gravou a fogo a memória de milhares de estudantes que, em trânsito, enquanto cursaram nas diversas faculdades, passaram por Coimbra: o Café Mandarim.
Este café-restaurante, nessa altura, apesar de estar aberto ainda há poucos anos –creio que abriu portas em 1960-, depressa se transformou numa espécie de catedral da tolerância, imposta tacitamente, em que conviviam tanto o trostskista-anarco-convicto como o comunista que lia o jornal República, do Raul Rego. Assim como, o fascista, orgulhoso defensor do regime vigente, o estudante revolucionário, que, “à surrelfa”, espalhava comunicados anónimos a anunciar uma reunião política. A vigiar todos estes, como olho do "grande irmão", vários agentes da Pide, cuja sede se situava então, um pouco mais acima, na Rua Antero de Quental, faziam ali o seu trabalho e o seu segundo quartel-general.
Não se sabia exactamente quem vigiava quem. O que se vislumbrava, isso sim, é que todos conviviam serenamente, embora sob alerta, presumivelmente da mesma forma, como se estivessem num bar, em Istambul, no tempo da Guerra Fria e em que, mais que certo,  estariam agentes da MOSSAD, do MI-5, do KGB e ainda agentes secretos da STASSI.
O ambiente deste café era indescritível. Era um borbulhar constante de efervescência de pessoas a entrar e a sair. Era famoso o seu bitoque, o "Combinado número 5", e o “Bife à Mandarim”. Por lá passaram muitos dos actuais políticos, talvez a fina-flor da sociedade portuguesa da época, e que vinham estudar para a Universidade de Coimbra.
Curioso, também, o orgulho garboso assumido pelos empregados em trabalharem numa casa de tão alto gabarito e tão identitária da classe estudantil. Notava-se na sua forma de estar, na pose e no porte. Quem passou por lá lembra-se, certamente, no balcão de bar, o Hugo (já falecido), o Fernando, o Joaquim Pardal, com ar de “gentleman”, cabelo preto penteado para trás à Errol Flynn; dos empregados de mesa, o Abreu, o Manaia e o saudoso Talina (já falecido), este, que carinhosamente me tratava por “batatinha”. No balcão da pastelaria, mesmo à entrada, o Mendes, o Fernando, e o Tarrafa, este, que eu fora substituir.
Depois de um ano a trabalhar na cozinha, fui então para o balcão da pastelaria, para andar aos recados e levar os lanches –o galão e a torrada- a qualquer lugar onde fosse solicitado. Tanto poderia ser aos consultórios médicos, como a casas particulares, e até ao edifício da PIDE, na Rua Antero de Quental, cheguei a ir várias vezes.
A título de curiosidade, a mensalidade que fui auferir foram 250$00 -hoje 1,25 euro- de ordenado fixo, que ia inteirinho para o meu pai. Como estava em casa de uma tia não pagava alojamento.
Lembro-me de um acontecimento marcante e que me faz sorrir: a primeira vez que fui a uma casa-de-banho, com louças. Até aí, nunca entrara num destes ateliês do silêncio e onde o homem, largando a sua "cagança" acessória de imbecilidade, de joelhos, na forma e na substância, apresenta ser tão igual ao semelhante. Mostrando-me a casa e o pequeno quarto nas águas-furtadas onde iria dormir, passando à retrete, a minha tia, junto a mim, recomendou-me para eu fazer "xixi". Como eu nunca tinha visto nem um bidé nem uma sanita, olhei para os dois igualmente como um selvagem olhará para um telemóvel. Para não dar parte de fraco, a interrogar-me mentalmente, comecei a balançar entre se seria num ou noutro, até que, erradamente, evacuei no bidé.
Para além do pequeno ordenado tinha as gorjetas. Estas eram auferidas no transporte dos lanches e nos trocos remanescentes do tabaco –um Português Suave sem filtro custava 4$20, e normalmente o freguês dava 4$50- que iam direitinhos para a compra de roupa usada, que era lavada de noite para tornar a vestir no dia seguinte. Os sapatos, do mais barato que havia nesse tempo, custavam cerca de 80$00, da marca “Campeão Português” -em que a publicidade à marca, na televisão, era feita pelo Óscar Acúrcio a dar dois saltinhos-, e andavam nos pés até ficarem completamente com as solas rotas.

Tempos difíceis da qual os ossos filhos e netos nem lhes passa pela imaginação de que a maioria dos portugueses vivia assim. Para memória futura, fica este retalho de um tempo que, esperemos, não volte mais.

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (15): CHEGADA A COIMBRA


(Imagem retirada, com a devida vénia, a BCantante-Coimbra de outros tempos)


Corria o ano da graça de 1966 e tinha acabado de concluir o exame da quarta classe. Estava então com dez anos, prestes a comemorar os onze. Como tinha um tio que era cozinheiro num restaurante em Coimbra, escrevera-lhe a solicitar um emprego. Como os meus pais eram agricultores muito pobres, inevitavelmente, eu precisava de trabalhar, mas também porque tinha absoluta necessidade de me ver livre das lides do campo, que detestava. Já me bastava não ter nem domingos nem feriados de folga, assim como, diariamente, depois de vir da escola, ter de ir cortar dois molhos de erva para os gados, ovelhas, cabras e um boi de terça – já o contei aqui, em anterior apontamento, a terça era um contrato bilateral -nesta época normalmente implementado na agricultura- estabelecido verbalmente entre duas ou mais pessoas, em que o investidor colocava um animal de grande porte (boi ou Vaca) no segundo contraente. Este, usando o animal para trabalhos campestres, comprometia-se a engordar o animal e, mais tarde, aquando da venda, a diferença remanescente ( valor acrescentado), entre o valor inicial e o valor final, seria dividido em três partes iguais. Sendo duas partes para o investidor, dono do animal e uma para o segundo contraente que houvera contribuído, através da engorda, para esse lucro.
Como o meu tio respondera positivamente ao meu pedido, passado uma semana entrava, pela primeira vez, na grande cidade mítica, a Coimbra do imaginário indígena, a Coimbra dos doutores, cantada em fado, aquém e além-mar. Mas também, diga-se, à custa da sua Académica, com os seus grandes jogadores, como Rui Rodrigues, Curado, Rocha, Belo, Néné (que viria a morrer num acidente de automóvel) e tantos outros que, pelo seu elevado talento de equipa, treinados por Mário Wilson, faziam frente ao grande Benfica, do pantera negra, ainda mais notabilizado pelo campeonato europeu. Eram célebres os derbies entre estes dois grandes clubes nacionais.
De saco de pano na mão, lembro-me de ter chegado, na companhia do meu tio, à Praça 8 de Maio e ter ficado extasiado com todo aquele movimento de pessoas junto á Igreja de Santa Cruz, mesmo apesar de ser Agosto, mês de canícula e deslocação a banhos, dos mais endinheirados para Figueira. Os velhos eléctricos amarelos, atravessando o canal (Ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz), com o seu característico barulho ronceiro, provocado pelo atrito do ferro a arrastar no ferro, andavam permanentemente cheios. Na parte de trás, no gancho de engate, era comum ver vários putos pendurados, tentando não pagar bilhete, para desespero do “pica” (cobrador de bilhetes). Esta praça, mais parecendo um delta confluente de vários rios, como um entreposto comercial do oriente, o barulho era ensurdecedor. Era o cauteleiro, no seu pregão, tentando desencadear a ambição: “Sábado anda a roda…é a última…quem quer estes quinhentos contos?”. Mesmo ao lado, dois ardinas com as suas sacas de ganga azul cheia de jornais, um matulão gritava: “é o Primeiro de Janeiro…traz as últimas”. Junto a este um garoto, sensivelmente da minha idade, descalço e com as calças remendadas pelo meio das pernas, mostrava a resistência daquele vestuário ao seu crescimento. Era notório que enquanto ele foi crescendo, as calças foram minguando e, assim, foram transitando de um ano para os outros. O puto gritava a plenos pulmões, com a sua voz de cana rachada: “é o Calinas…compre o Calinas…é o Jornal dos doutores”. Ali à volta, ouvia-se uma mistura indescritível de vozes desafinadas e pregões bem estudados, era a peixeira, era a vendedeira de hortaliças, com a sua canastra à cabeça. Em frente da Igreja, uma fila de táxis esperavam pelos clientes e um taxista mais afoito, encostado ao seu carro verde e preto, escutava com atenção o “vendedor de banha da cobra” e ia vendo, com admiração, as dezenas de pessoas que se iam juntando em torno do vendedor de pomadas e elixires:”comprem a pomada milagrosa para o pai e o catraio, cura reumatismo, artroses e bicos de papagaio”.
No canto esquerdo, junto à farmácia Universal, uma cigana, na sua lengalenga, pegava na mão de uma mulher de meia-idade e dizia-lhe, com a voz em corrupio, uma mistura de português “arromenado”, de que a senhora sofria de amores aziagos, maus-olhados e mal de inveja. No lado contrário os irmãos Secos não tinham mãos a medir a venderem tabacos e café moído. No Café Santa Cruz, nessa altura, restaurante, um empregado, bem aprumado à paquete, de casaco branco vestido, ia espalhando as toalhas e os guardanapos de tecido branco imaculado, para servir os almoços que a hora do repasto aproximava-se a passos largos.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (14): A CHOCA-CHOCA




Até há muito pouco, pelo menos até começar a escrever estas pequenas histórias, estava convencido que a minha aldeia, onde passei grande parte da minha infância, é um lugarejo que sempre foi tristonho, onde, hoje, no rosto dos seus habitantes, mesmo os mais idosos, perpassa uma sombria solidão. Parece que, nos ombros, carregam uma pesada herança feita de escolhos e engulhos. É raro –embora exista- olhar um rosto e sentir naqueles olhos uma espiritualidade e uma alegria de criança traquina.
Antes de começar a perscrutar esta vivência de outros tempos imaginava que, pelo que conhecia, os habitantes de Barrô viviam apenas do trabalho e para o trabalho. Que não existia uma cultura, undergrond, subterrânea que emergisse daquele povo solitário e aparentemente pouco solidário. Aos poucos, a conversar com as pessoas mais idosas e plenos de uma sã e viva recordação, venho a descobrir uma série de verdades que, aprioristicamente, tinha erradamente teorizado, assim como uma imanente cultura própria de há cinquenta anos atrás. É curioso o gosto e a desenvoltura com que as pessoas falam de um passado que, sendo deles, foi partilhado com tantos outros que a morte levou e cujos nomes, só eles, retém na memória. Quando penso que estou a maça-los com perguntas inconvenientes, reparo no ar afogueado das maçãs dos seus rostos, no brilho da menina dos seus olhos, como se nesta conversa, iniciassem uma viagem ao passado e este desabafar lhes fizesse bem. Como se sentissem que querem partilhar comigo algo íntimo e pessoal. Sinceramente, leitor, gostava de conseguir levar até si, através destas simples palavras, a mesma emoção que sinto quando converso com pessoas da minha aldeia e muito mais velhas do que eu.
Infelizmente, o tempo, na sua voragem dinâmica, em que, através da sobreposição cultural, dos usos e costumes, vai apagando a lembrança, e sepulta essa memória de antanho sem direito a epitáfio. Gostaria que soubessem que, embora tente ser o mais fiel possível daquilo que me é contado, não sou suficientemente investigador, indo ao mais fundo possível da verdade, como se escrevesse uma monografia. Não é isso que pretendo. São histórias simples de um povo humilde e trabalhador, retratados num lugar contextualizado do Portugal profundo, marcando uma época pobre e triste.
Com estas considerações abstractas, quase que perdi o assunto que me levou a escrever este texto. Mas calma, eu não me esqueço da sua curiosidade, leitor.
Há dias, em conversa com o meu amigo Agostinho Fernandes, a minha enciclopédia cultural, se posso falar assim, conversando acerca das minhas histórias, atira-me ele: “você não sabe, mas em Barrô, por volta dos anos de 1950, havia a moda do “choca-choca!”. Como, “choca-choca”, que é isso?! Interroguei, meio apalermado.
Explica o Agostinho: A “choca-choca” era uma dança popular, que não sabendo a origem, era, aos domingos à tarde, o entretenimento dos mais velhos. Juntavam-se vários homens e mulheres, no alpendre de um, e aleatoriamente ia passando no fim-de-semana seguinte para outro. Começavam com conversa fiada, bem regada com um tinto de estalar língua, transportado num pipo ou um garrafão, acompanhado com tremoços ou amendoins. Seguidamente, contavam-se umas anedotas e quando os efeitos etílicos do filho de Baco começavam a sentir-se, dançavam uns com os outros. E nem era necessário serem casados. Não havia nenhum instrumento musical. O compasso da música era marcado pelo som “choca-choca” saído da boca de um dos pares dançantes. Eram vários os dançarinos, Agostinho Fernandes relembra, entre eles, o pai, o saudoso “ti” João da Eira, o meu tio Ernesto e a minha tia Aida, o meu pai e a minha mãe, o Manuel Melo e a “ti” Saudade, -que foram os primeiros, na aldeia, a terem um estabelecimento de mercearia e taberna com petiscos- o Manuel Bento e Florinda Pires.
Para os mais novos, e também aos domingos, junto à casa do senhor Lino, actuava o acordeonista David de Horta, que vinha de bicicleta, da sua terra, de Horta até Barrô. Normalmente, sempre convidado pelo folguedo dinamizador do Manuel “fanangueiro”. No largo sobranceiro à casa daquele grande lavrador era colocada uma cadeira e aí estava o arraial pronto a começar. Quando chovia transferia-se para a eira do senhor Francisco Quintal. Contrariamente ao que eu pensava, a festa andava no ar e o bailarico estava sempre presente nos pés de cada um.

sábado, 14 de junho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA (13): O BARBEIRO




Vou falar de uma profissão que, nos anos de 1950, era na minha aldeia de Barrô, ali, entre a Mealhada e o Luso, muito mais do que simplesmente um “metier”. Aquele cubículo do meu amigo “Zé barbeiro”, ainda hoje existente, como museu vivo, lutando contra o tempo, em forma de “consultório” podia, sem favor, ser tudo. Tão depressa era um santuário, onde se expressavam preces, se faziam confissões e se planeavam casamentos, como, por milagre, virava uma “casa do soalheiro”, onde se dizia mal de tudo o que mexia e de todos. Era ali que se sabiam as novidades. O “Zé” Maria, o “técnico-barbeiro”, era (e é) um bom homem. Mesmo sem conhecer uma única letra, a vida dura ensinou-o a ser assertivo e diplomata. Como Deus, leal e omnipresente, que apenas tem ouvidos, habituou-se a escutar, e, sem se comprometer, ao longo de décadas de profissão –que nestas coisas de feitios de homens, mudam-se os tempos, mas as vontades continuam firmes no “cortar a casaca” de alguém-, sempre foi acompanhando as conversas de modo a que o cliente sentisse que participava na história. Ele sempre soube colocar-se no seu lugar de ocasião, que um bom barbeiro para além de ser exímio na sua arte, deve ser conselheiro, padre, psicólogo, pai, de qualquer filho de mãe, e tantas vezes filho, se o freguês, sendo pai, mesmo que seja incógnito, é muito mais velho do que ele.
Começou por aprender a arte de escanhoar com o José Rodrigues. Não se lembram dele, pois não? É natural, já passou muito tempo! Este grande mestre, vinha de Várzeas, uma aldeia amorosa, mesmo encostada ao Luso, que dista cerca de oito quilómetros de Barrô, se fosse a direito, em direcção ao sítio da Lapa do Sino, por entre veredas e carreiros minúsculos de cabras, emoldurados por silvas e tojos, que só os sendeiros conheciam. O mestre vinha a pé, com a sua pequena maleta de cartão prensado e lá dentro com todos os apetrechos necessários a uma boa tosquiadela aos pelos de qualquer um. Ia a casa das pessoas desempenhar o seu ofício. Bastava uma cadeira e tanto podia ser na sala, na cozinha, como na adega. Normalmente, aos mais ricos, era aqui, rodeado de pipas, com cheiro a vinho-mosto, molhado de uma boa pinga e acompanhado de umas fatias de presunto, que se tentava o impossível, ou seja, alindar um feio rosto de nascença.
O Zé Maria, tinha então vinte anos, por volta de 1950, quando fundou a sua barbearia. Uma novidade na época. Onde não faltava o espelho e a cadeira de trono, esse luxo, para o freguês, que quando não palrava, passava pelas brasas: o assento de ferro fundido, estufada a napa, de António Pessoa. Um orgulho que na época lhe custou os olhos da cara.
Ainda hoje, passados mais de cinquenta anos, consegue sentir o prazer de amarrar, no pescoço do freguês, aquele grande avental branco, que cheirava a lavadinho, torcido e espremido nas águas correntes do rio, e corada na encosta granítica sobranceira ao moinho de água, que lá nessas coisas a Augusta, a sua mais-que-tudo, o amor da sua vida, nunca permitiu uma toalha suja no pescoço de ninguém. Nesse tempo, pagavam muito mal –os que pagavam, porque, mesmo assim, alguns ferravam-lhe o calote-, vejam bem que a anualidade era um alqueire de milho –não se lembra que medida era esta? O Zé Maria explica que era uma unidade de medida de capacidade para secos e líquidos que variava entre 13 e 22 litros. Com este pagamento o freguês tinha direito a cortar o cabelo quando necessitasse e a escanhoar a barba uma vez por semana.
Como a coisa começou a não render, não dava a gota para a perdigota, por volta dos anos 70, o meu amigo barbeiro alterou o contrato bilateral verbal que tinha com os seus fregueses. Em vez de receber em géneros, passou a ser pago a dinheiro. Então, segundo a tabela afixada, uma barba custava dez tostões e, em conjunto, de cabelo e barba, passou a custar vinte e cinco tostões. Então aconteceu uma coisa engraçada, sem graça para o meu amigo Zé, quando era pago com milho os fregueses andavam sempre lá a aparar a lã, como começou a ser pago com dinheiro só lá iam já com o cabelo enorme. Quando ele lhes perguntava a razão de tamanha ausência a resposta era igual: “sabes que agora usa-se o cabelo grande, como os Beatles, é moda, e nestas coisas, temos de seguir as tendências vindas do estrangeiro, percebes?!” Claro que o Zé Maria percebia, e de que maneira.