sexta-feira, 31 de agosto de 2007

"DIVAGAÇÕES DE UMA MULHER INFELIZ"

“Estou a dar os meus habituais passeios. Quando preciso de me ausentar da minha “chatérrima” vida venho para este paradisíaco jardim. Aqui parece que me transcendo, é como se o meu espírito abandonasse o meu corpo. Neste lugar, onde os anjos não se vêem mas sentem-se, através dos silêncios, ora entrecortados pelo correr da água na cascata, ora pelo chilrear dos passarinhos, faço uma catarse, uma purificação emocional, uma terapêutica psicanalítica, visando o desaparecimento dos meus fantasmas recalcados, ainda que não fale com ninguém. Mas com quem poderia falar? Quem me entenderia, a não serem os meus querubins invisíveis, que me acompanham e só eu vejo e sinto à minha volta?
Estou neste fantástico país europeu há cerca de 10 anos. Adoro esta Nação. Sou ali do centro de Portugal. Se fosse feliz adoraria acabar aqui os meus dias. Mas assim, neste fado angustiante que me acompanha, não sei o que me irá acontecer. Porque serei tão insegura e carregada de solidão e tristeza? Quase me rio sem vontade…uma bela mulher de 40 anos a lamentar-se…
Tudo começou na minha infância, quando comecei a sentir que os meus pais gostavam mais da minha irmã mais velha. Eu era como o patinho feio, triste e abandonado. A minha companheira e confidente de noite e dia era a minha boneca de trapos, a Esmeralda. Era com ela que dormia, bem agarradinha, até mesmo já na puberdade. Tantas vezes me lembro de me acariciar e, nos meus sonhos eróticos de menina, a imaginar uma mulher e fazer amor com ela.
Comecei cedo a brincar aos casamentos. Com 15 anos perdi a virgindade com aquele que aos 18 viria a ser meu marido, o João. Era meu vizinho lá na aldeia. Aproximamo-nos talvez pelos nossos problemas comuns. Ele também era preterido em relação à irmã mais velha. Além disso começou a trabalhar muito cedo, mal acabou a escola primária, hoje chamada de básica. Todo o dinheiro que ganhava ia inteirinho para casa. A mãe e a irmã eram umas senhorinhas, não queriam fazer nada. O pai, para azar, teve uma doença e foi obrigado a aposentar-se muito cedo. O João sentia-se a besta de carga mal-amada daquela casa. Mas, nunca entendi porquê, nunca admitia que eu aflorasse o quanto estava a ser usado e maltratado pelos pais. Parecia que nada disso o afectava. Era como se tivesse ido buscar forças não sei onde. Cedo notei que ele não era uma pessoa carinhosa. No princípio, durante muito tempo, desculpei-o, por causa da infância que ele teve. Se não recebeu amor como poderia ele dá-lo a alguém?
Logo depois de casarmos, tinha então eu 18 anos, fiquei grávida do meu filho. Ele foi a luz que veio substituir a falta de carinho e afecto que eu sentia da parte do meu marido. Enquanto o meu filho foi pequeno, foi nele que projectei a minha carência de afecto, tão marcada na minha mente, já desde os meus tempos de cachopita. Aos poucos fui notando que a infância é marcante mas também não explica tudo. Todos nós vamos apreendendo, em constante aperfeiçoamento, até à puberdade. Além disso, na nossa experiência empírica, quando temos vontade de melhorar podemos modificar-nos para melhor. Acontece que o meu marido não mudava, porque era profundamente egoísta, um egocêntrico no seu pior. Nunca deu nada a ninguém e muito menos a mim. -Hoje que tenho 40 anos e estou casada há 22, nunca me ofereceu um presente no natal, nem nos anos. Nem uma simples flor. Não é capaz desses gestos. Quando lho lembrava, a resposta era sempre a mesma: “queres, compra”.
Em 1997, depois de uma tentativa frustrada de separação, deixámos o meu filho com os meus pais e viemos para este maravilhoso país no centro da Europa. Continuei a ser, como hoje, a mesma mulher carente, insegura, perfeccionista e insatisfeita. Nada me contenta. É como uma obsessão a correr atrás de uma satisfação que sei antecipadamente que jamais será satisfeita. Posso esfarrapar-me para conseguir uma coisa, mas depois de a conseguir desinteresso-me dela. No campo sexual sou igual: sou uma predadora. Posso interessar-me pela presa enquanto não a conquisto e domino. Logo que sinta que é meu escravo, desprezo-o profundamente. Detesto a rotina.
Adoro sexo. Ás vezes penso se não serei uma ninfomaníaca. Tenho a certeza de que tudo vem da infância, a falta de amor que não recebi. Projecto essa carência no sexo. Masturbo-me todos os dias. O meu sonho é participar em orgias. Adorava estar com vários homens ao mesmo tempo. -Uma vez um amigo meu, ligado aquelas coisas do espiritismo, disse-me que eu seria uma reencarnação de uma cortesã.
Logo que viemos para este país, o João, meu marido, começou a ficar até altas horas na Internet, com as amigas, noite dentro; até 4 e 5 horas da manhã. Eu ia dormir. Até que me comecei a chatear.
Para me iludir, começou a falar-me em swing. Em princípio alinhei. Só mais tarde entendi que não era bem assim. Ele queria ludibriar-me. O que ele queria mesmo era estar com as amigas da net. Eu por arrasto, fui entrando neste mundo, tendo-me sentido cada vez mais só. Os diálogos virtuais eram a minha companhia diária, até que me fartei disto. Entediei-me de ter sempre o mesmo tipo de conversas: aqui 99% dos homens só sabem falar de sexo ou futebol. Agora, habitualmente estou off line. Gosto de falar de tudo, mas, fogo, falar sempre da mesma coisa, até para mim que adoro sexo, chateia. Estes homens só têm areia no cabeçote.
O meu marido é a mesma merda. No princípio, alinhei com ele, começámos a fazer sexo em frente à webcam. Até gostava, era para mim uma coisa nova. Ver do outro lado aqueles pobrezinhos mentais a babarem-se todos, como cadelas com cio, a masturbarem-se à minha frente. Era excitante. Com o tempo, comecei a sentir que ele só pensava no prazer dele. Exibia-me como um troféu de caça, como se fosse o meu dono. Para mostrar que eu era sua propriedade. Que era ele que me comia e eles, de língua de fora, só me podiam ver. Fazia gestos obscenos, mostrando as minhas mamas e proclamava: “querias? Contenta-te em ver”.
Ele só pensa no prazer dele. Dá-me nojo. Ele só pensa em mim como objecto de prazer e como propriedade sua. Ele não pensa em mim como pessoa. Estou farta dele e das suas atitudes. Acho que o odeio.
Agora passa a vida a masturbar-se na net. Embora não mostre a cara, há tempos uma gaja que o conhecia fodeu-o: gravou-o, fez a montagem do rosto e do corpo e mostrou-o na web. Ficou fora de si. Em vez de se culpar pelo descuido, ainda veio culpar-me a mim…fode-me o juízo. Depois proibiu-me de ligar a câmera que me poderiam fazer o mesmo. Mas se eu lhe desse “abébias” fazia sexo comigo em frente ao computador a toda a hora. O cabrão…
Há tempos fez-me uma proposta: que passássemos um fim de semana especial: ele iria com uma amiga, eu iria com quem quisesse. Assim fizemos: ele foi e eu fui com um meu amigo muito mais velho do que eu –porque eu gosto de homens maduros e muito mais velhos- que andava a namorar, aqui na net, já há uns tempos. Claro que a proposta que ele me fez veio mesmo a calhar, eu já matutava nisso há muito tempo. Simplesmente ele pensava que eu ia uma vez e que não queria mais. Acontece que quero mais. Caiu o Carmo e a Trindade. Como ele não quer repetir e eu ameaço sair de casa, usa esse episódio como meio de chantagem; se eu sair ele ameaça contar a toda a gente e até ao meu filho dirá que eu andei com um homem casado. Ele usa a coacção, magoa-me mais do que mil bofetadas. Agora chama-me puta constantemente. Há dias baptizou-me de puta-mor da net. Sinto-me uma prisioneira, enclausurada no seu castelo.
Quando estive com o Francisco –este meu amigo de fornicação de fim de semana- senti-me muito bem: feliz e realizada. Tenho a certeza que o sexo não é a coisa mais importante da minha vida, mas, uma coisa sei: faz-me sentir muito bem, faz-me sentir gente.
Se ficasse só, viveria com os meus gatos e o cão…mais ninguém. Talvez arranjasse alguém, mas com a liberdade de cada um ir com quem lhe apetecesse. Gostava que nos encontrássemos; termos umas conversas…mas jamais viver comigo.
Mas eu não sei se consigo largar este inferno algum dia. Teria de deixar muita coisa para trás: o meu filho, os meus dois gatos e o meu cão. Estes, são já velhotes e tenho pena de os deixar. Se não fossem eles, eu já teria ido há muito. Gosto tanto deles como do meu filho. Se eu partisse, o meu marido era capaz de os matar para me magoar.
Cada vez me sinto mais só. Um oceano de vazio e um mar de angústia.
Estou tão cansada que só me apetece desistir da vida…simplesmente desistir.
A minha decisão já está tomada.
É só dar tempo ao tempo. Ele se encarregará de decidir.
Estou farta de lutar contra tudo e contra todos. Ninguém me compreende.”

(HISTÓRIA VERÍDICA -ESCRITA COM BASE EM DEPOIMENTO DA PROTAGONISTA)

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

BOM PARTIDO, PROCURA

Quero uma mulher de quarenta,
boa, se expresse bem e saiba o que diz,
não quero uma “cota” de setenta,
só se for muito rica e me faça feliz;
Se for nova, posso ajudar,
transmitir o meu conhecimento,
se for velha e rica, posso amparar,
viajar pelo mundo, dividir o sofrimento;
Tenho um largo ombro e sei ouvir,
qualquer historia muito recuada,
se for nova, no pulso, posso sentir,
posso jurar que vai ser muito amada;
Se for rica pode ser separada ou viúva,
ter oitenta anos, uma verruga, e andar de bengala,
se for nova, assenta-me com o uma luva,
afirmo, porto-me como um magala;
Se for minha mãe, pode até ter marreca,
desde que tenha cartão dourado sem limite,
se for virgem e nova pode até ser uma alforreca,
desde que os seus olhos brilhem como uma pirite;
Quero apenas o que tenho direito,
e nem estou a pedir demasiado,
se fosse ambicioso pedia as duas a eito,
como sou despretensioso, caio para qualquer lado;
Qualquer uma me serve, nem sequer escolho,
não digam que exijo e tenho mania de bonzão,
se for velha e rica até pode ter só um olho,
se for nova e virgem, também pode ter um bom carrão.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

"DIVAGAÇÕES DE UMA MULHER"

“É 1 hora da manhã. Sinto-me abraçada pelo silêncio. Só ele me entende, só ele me conforta. Estou deitada, bem desperta. Nua de roupas e de preconceitos. Ou se calhar demasiadamente vestida, em pensamentos, com um julgamento desfavorável formado com alguma razão objectiva. Lá fora, de vez em quando, um gato mia ou ouve-se um rolar barulhento de um recipiente do lixo, talvez pontapeado por algum ébrio abandonado de amores e entregue displicentemente nos longos e tolerantes braços do prazer etílico.
No meu quarto, o silêncio é quase total, o que me permite uma profunda reflexão. A meu lado o meu companheiro dorme profundamente. A minha paz dos anjos só é interrompida, ora por um respirar mais profundo, em forma de silvo, do meu companheiro, ora por um estalido da madeira, vindo talvez da cómoda, imperceptível durante o dia, mas que a esta hora, em que tudo parece descansar dos afazeres da luz, se torna para mim tão notado e tão ribombático no ecoar das profundezas da noite.
Não tenho sono. Há pouco mais de uma hora o meu companheiro fez amor comigo. Foi comigo que ele fez amor? Ou seria com ele próprio? Porque será que os homens não conhecem as mulheres? Só olham para o nosso físico, sem nunca entrarem na alma? Dizia-me há dias uma amiga que tudo começa no nascimento. Logo aí, se é menino, o discurso é muito mais musculado. Mesmo depois, em bebé, se andar vestido de rosa, o paparicar da criança é totalmente diferente. Depois, na educação, sempre os conselhos castradores: “os meninos podem mexer nos órgãos sexuais, as meninas não. As meninas não devem fazer isto, é feio. Os rapazes devem ir às “meninas” quando chegarem à puberdade, as raparigas não devem deixar que lhes toquem na mão”. –pelo menos no meu tempo era assim, tenho 45 anos e estes conceitos estão bem marcados a fogo na minha mente, embora hoje se note uma ligeira diferença, a sexualidade continua a ser reprimida e muito diferenciada no género. As alterações são aparentes e apenas ligeiras.
Os homens, hoje, continuam a tratar uma mulher como há trinta anos atrás. Imaginam que nós somos enroladas pelos seus cordelinhos grossos de macho em vias de extinção. Pensam que sabem tudo e que têm sempre o comando das operações, quando, na verdade, nós fazemos apenas o que queremos, estritamente o que pensamos. Pobres almas sem tino! Continuam a não nos conhecerem. Olho para o lado e vejo o meu marido a dormir. São tão diferentes quando dormem. Parece tão estranhamente calmo e descontraído. Parece uma coisa inerte e sem vida. Como se tivesse perdido o seu encanto. São tão teimosos, os homens! É sempre preciso ir para cama com eles, como se a passagem por este lugar de grandes batalhas, em que se perdem e ganham guerras, tudo resolvesse. Estes pedantes, infelizmente tão necessários à nossa rotineira vida, chegam a ser aborrecidos. Assim que mirarem as nossas mamas e nos tocarem numa mão julgam-se obrigados a mostrar a sua virilidade, como se nós fôssemos bonecas de brincar ao sabor do seu desejo. Como se quisessem pôr o selo ou a bandeira na terra conquistada. Mas se ao menos a revitalizassem. O problema é que após a conquista fica para ali abandonada como eu.
O meu companheiro, após saciar a sua fome, quase que ia adormecendo em cima de mim, virou-se para o outro lado e adormeceu imediatamente. São tão insensíveis estes mastronços. Nem uma conversa após o acto. E mesmo durante o pouco tempo que durou, pouco se preocupou comigo. É certo que eu deveria ter a mente mais aberta, mas a verdade é que, apesar de eu ser extraordinariamente culta, eu falo sempre de sexo com preconceito. Tantas vezes dou por mim a pensar que se deveria tratar o tema, relativo ao sexo, como se falasse de política ou religião, mas a verdade é que depois, até com o meu companheiro, eu não consigo. Eu crio as minhas próprias barreiras de arame farpado. Sinto que se eu lhe confessar que gostava que ele explorasse o meu corpo do mesmo modo que se explora uma gruta virgem e inacessível, ele vai achar-me uma devassa e uma vulgar maluca. Parece que o meu desejo roda obsessivamente em círculo. Quero que ele explore o meu corpo. Às vezes chego a desejar que ele, como violador, me tome pela força. Mas, outras vezes, raramente, quando ele me incentiva a deixar-me tomar, dizendo que eu, ao não deixar, é que perco, é verdade, eu sei que deveria mudar, mas não consigo. Eu sei que é um conflito para mim. Mas que diabo, ele, se me conhecesse, deveria saber que nunca se deve acreditar naquilo que uma mulher parece defender aguerridamente: daquilo que parecemos querer e dizer não pensamos; só parecemos pensar naquilo que queremos sem o dar a notar, mas isso eles não entendem. É demasiada areia para uma caixa fechada tão minúscula.
Gosto de ser observada por um homem. Isso gosto. Qualquer mulher sabe do que falo. Qualquer uma conhece essa sensação confortante de ser despida pelos olhos, a chispar fogo, de um homem. E já são tão poucos aqueles que olham despretensiosamente. Tudo caminha para que até um simples piropo a uma mulher seja banido.
Bem…são 3 horas da manhã…vou mas é dormir…”

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

EM BUSCA DO PARAÍSO

Maria casou cedo,
ali para os lados do norte,
o marido partiu logo,
em busca da melhor sorte;
Foi parar ao Luxemburgo,
um país muito interessante,
aos poucos foi-se esquecendo,
da sua terra distante;
Nos primeiros anos veio,
em cada ano um pimpolho,
Maria olhava o futuro,
como um cego vê de um olho;
Um dia disse para si,
aqui não vou ficar mais,
vou partir ao encontro dele,
mesmo que o não encontre jamais;
Ninguém engana uma mulher,
sobretudo na intuição,
ela é dotada de instinto,
natural e de adivinhação;
Largou tudo, levou os rebentos,
apenas de mala na mão,
galgou quilómetros aos centos,
foi encontrá-lo então;
Nos braços de outra mulher,
entre mil prantos de solidão,
sabe que resiste se souber,
encontrar outra paixão;
O trabalho nunca foi problema,
muito menos a tristeza,
afinal o que vale um homem,
sem uma mulher à mesa?

GENTE FELIZ ATÉ NA INFELICIDADE

Maria casou cedo, ali para os lados do norte. Mal o padre acabou de soletrar a programática interrogação: “aceita Maria…” e já o recém-empossado marido estava a agarrar na mala e a correr para o comboio à procura de melhor sorte. Corria o ano de 1982. Por aqui as coisas estavam dificilíssimas. Os juros bancários chegavam aos 38 por cento. E, por muito que se admirem hoje, o montante correspondente a um ano ficava lá imediatamente. Quem pedisse emprestado um milhar de contos –se tivesse a felicidade de lhe ser concedido o empréstimo, que na altura era coisa rara- levaria para casa cerca de 620 contos. Hoje, este procedimento, parece anedótico, mas era assim. João, o marido de Maria, lembra-se, uma vez, pouco antes de casar, de ir a um banco pedir crédito e o funcionário bancário, do alto do seu pedestal imaginário, medir João, de alto a baixo, várias vezes, até o olhar se imobilizar nos coçados sapatos e entre várias perguntas, quase com gozo sádico, interrogar João: “o senhor tem alguma coisita de seu?”. Claro que João não tinha nada, a não ser uma indominável vontade de vencer. É evidente que João saiu vencido mas não convencido. Mentalmente, pelo caminho, com raiva pensava: “um dia hão-de querer emprestar-me dinheiro e eu não vou querer”. Por isso, logo a seguir à cerimónia nupcial, partiu, levando uma mala cheia de sonhos, sem saber exactamente onde pararia o comboio. Parou no Luxemburgo e foi lá que João desceu. O Luxemburgo é um Grão-Ducado, com uma monarquia constitucional parlamentarista desde 1868. Fica ali ao pé, entre a Alemanha, França e Países-Baixos, como quem diz a Holanda.
Entretanto Maria ficava por cá, perdida entre mantas de lágrimas de solidão e saudades de João. Ia trabalhando no que podia lá na terra, sempre esperando boas-novas do João.
Quando vinha o carteiro, era a pergunta repetida até à exaustão: “traz carta para mim, senhor Ambrósio?”. De vez em quando vinha uma. Poucas vezes porque João não era muito dado às letras.
Nos primeiros anos, João vinha visitar Maria uma vez por ano. Quando partia deixava-a sempre prenhe duas vezes: de uma nova vida dentro de si e grávida de esperança de um dia se poder juntar ao marido. A vida foi correndo. João sempre cumpriu com o envio do vale de correio mensal. Maria era muito poupada, nunca estragou um tostão no mal gasto. Ia trabalhando na terra e toda a mensalidade do marido ia para a conta-poupança-emigrante. Com os filhos espigadotes, Maria comprou o trespasse do pequeno café da terra. Trabalhava que nem uma galega. Chegava a laborar 18 horas por dia. Com o seu jeito para o negócio e esforço transpirado até quase ficar exangue, Maria abre um segundo, agora com pastelaria. Este estabelecimento era a menina dos seus olhos. Era um sucesso na terra. Mas Maria não era feliz. As cartas de João começaram a rarear e as suas visitas também, se bem que sempre enviasse o vale atempadamente. Uma noite de poucas horas deitada, fazendo que dormia, Maria toma uma decisão: Vou ter com o meu João. Vou vender tudo. Se melhor o pensou, melhor o fez.
Deixa os filhos aos cuidados dos seus pais e em 1999 parte para o Luxemburgo ao encontro de João. Mas João, malandrão, não resistira aos encantos de uma Grã-Duquesa e já não se inclinava para Maria. De certa forma não fora surpresa para ela. No seu íntimo já o suspeitava. Mas Maria era uma mulher tesa. Não seria um sonho de amor desfeito que a iria mandar ao tapete. Olhou sempre para a frente. Fez mil trabalhos ocasionais, sempre honestos, como gosta de sublinhar. Foi cozinheira, balconista, e até empregada de limpezas, que aliás hoje mantém como profissão. Mais tarde chamou os filhos. Hoje, com 45 anos, uma bela e apetitosa “cota”, está muito bem financeiramente. Continua a trabalhar muito. Às vezes chega às 12 horas diárias. Quando lhe pergunto se vai voltar um dia a Portugal, a resposta vem directa, em forma de interrogação e constatação: “acha?...Jamais!”.
Porquê? Insisto. "Olhe, porque é o melhor país do mundo para se viver. Aqui até a chorar, na desgraça, as pessoas são felizes". Ainda dizem que o dinheiro não traz felicidade, digo eu, de modo a instigá-la a falar. Claro, pode não ser tudo mas é o seu maior braço de alegria. Já viu? –Responde-...aqui o salário mínimo é de 1450 euros. Um professor ganha cerca de 4000 euros mensais. Se tiver mais de dois filhos não paga impostos (aqui a média de natalidade é de quatro crianças por casal). As despesas com saúde são 80% reembolsáveis. A Alimentação é mais barata que aí em Portugal. Só as rendas de casa é que são muito caras. Uma casita pequena pode levar cerca de 800 euros do ordenado mensal auferido. Este pequeno país tem o maior PNB (produto nacional bruto), per capita, do mundo, além de baixa inflação e baixo desemprego. Por exemplo aí em Portugal, quando toda a gente abandonou a agricultura de subsistência, aqui continua a predominar a pequena courela, baseada em fazendas de pequenas famílias. Mantém uma taxa de crescimento estável. Acha que vou para aí, para Portugal fazer o quê? Mendigar? Conviver com a tristeza palpável nos rostos dessa gente? Tenha dó. Quer um conselho? Fuja daí".

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

A MINHA AMIGA VIRTUAL

A primeira vez que falei com ela, na net, a sua conversa era de fazer chorar as pedras. Os seus vocábulos eram repetidos à exaustão: tristeza, solidão, desilusão, saudade, mágoa, infelicidade, desdita, nuvens grossas, ofuscadas e escuras, cinzentas, choro, lágrimas, tempestades, aborrecida, abandono, esquecida, estática, dramatismo, melancolia, vazia, tormenta, desigual, desânimo, amordaçada, envelhecimento.
São demasiados adjectivos para uma pessoa só. Mas é a verdade. Não há dúvida de que a minha amiga carrega consigo uma carga negativa insuportável. Sem dúvida que está profundamente depressiva. Mas com as sucessivas conversas comecei a aperceber-me que as suas palavras negras e melancólicas são, por um lado, uma permanente chamada de atenção, como se com elas usasse uma bandeira, sistematicamente em riste e quisesse dizer em mensagem cripto-verborreica: “estou aqui, por favor ajudem-me, estou só, não me abandonem”. Por outro, é um discurso hábil que pretende persuadir, seduzindo numa lábia entrosada na própria pessoa. Ela não se apercebe que se viciou na sua própria tristeza. É possível que numa primeira fase ela manipulasse a tristeza a seu bel prazer, porém, na continuação, sem que ela se dê conta é o manto diáfano da solidão que, como um vírus, se instala, se aloja e toma conta dela.
A depressão é uma pescadinha-de-rabo-na-boca. Anda-se em círculo, vai-se alimentando e esta vai crescendo até submergir a pessoa. Um dos exemplos mais comuns: uma pessoa está depressiva, apetece-lhe comer –sintoma mais comum da depressão que paradigmatiza a carência de afecto-, então come, come, vai engordar mais e, com essa obesidade, com excesso de tecido adiposo, vai sentir-se mais deprimido ainda e só pára quando não couber nas portas. A depressão toca a todos, não haverá ninguém que numa determinada fase da vida não a tivesse conhecido. Simplesmente não nos devemos deixar vencer por ela. Todos sabemos que a depressão é, psicologicamente, um estado mental caracterizado pela persistência de vários sintomas, entre eles a apatia, o desânimo, a melancolia, o cansaço crónico e a ansiedade.
Há quem a considere a doença do nosso século. Porém uma coisa é certa, seja doença ou não, a verdade é que é com disciplina mental que se consegue ultrapassar esse enfraquecimento intelectual. Com regras que possam reger o nosso comportamento, elevando a autoestima, com ocupação contínua da mente, escrever, pintar, ler, andar, conversar, ir ao cinema, são terapias ocupacionais das mais indicadas. Por exemplo deve recorrer-se a exercícios mentais permanentes onde se oblitere frases que nos conduzam à melancolia –como as que enumero no primeiro parágrafo do texto. Curiosamente, creio, que a Internet não ajudará ninguém, antes pelo contrário, a ultrapassar esta letargia. Os chats são, penso, ansiolíticos, que colmatam a ansiedade provocada pela solidão. Serão uma sensação de um acompanhamento virtual para quem está vazio de amor e sozinho de ninguém. O “consumo” exagerado deste virtuosismo leva inevitavelmente a uma maior solidão. Todos devemos ter atenção. Quem anda por aqui sabe do que falo. E quem viaja nestas ondas, por mais que diga que não, está só e procura algo ou alguém. A consciência para uma melhor racionalidade começa por nos apercebermos dos nossos exageros.
Dirão vocês, e muito bem; bem prega frei Tomás…

terça-feira, 21 de agosto de 2007

O ABROLHOS E OS TÍTULOS DE "CAIXA ALTA"




 Hoje sinto falta de qualquer coisa ou de alguém. Olho à volta e vejo rostos vazios, como se carregassem o mundo às costas, como se tivessem perdido o jeito de rir. Bolas, não gosto disto! É que para eu ver toda esta solidão é porque estou igual. Vou passando nestas ruas estreitas, carregadas de história, onde o edificado têm o mesmo brilho dos semblantes. Ou seja, não têm nenhum. Realmente, penso para mim, se as ruas perderam toda a sua graça imanente, como podem as pessoas estarem alegres? Hoje é um bucolismo demasiado implantado, não é que a vida simples, inocente, quase paradisíaca não agrade, nada disso, mas as cidades não são campos perdidos na imensidão, apenas calcorreados por pastores, dos poucos que restam, se é que ainda os há. As cidades são vulcões em erupção, fervilhando de gente, com barulhos quebrando os silêncios incomodativos. É a pequena discussão de rua, é a lenga-lenga do cego na esquina: “uma esmolinha, por favor, senhor…que Deus lhe pague senhor”. É a abordagem das figuras típicas a solicitar-nos uma moedinha. É o romeno a vender o “Borda de água”. É o seropositivo no “cravanço” de uma “flor” -dois bocaditos de fitas coloradas, com um pequeno alfinete- e apelando, num discurso remelado e viscoso, para uma qualquer instituição fictícia de luta contra a sida. É o cigano, com um cesto, a vender t-shirts, com o grito estridente: “comprem meninas…é só 5 euros”. Sempre com o olho no transeunte e outro a ver se vem o polícia municipal. Mas mesmo este ruídos estão a desaparecer. Qualquer dia as urbes serão cemitérios de silêncios, percorridos por vivos-mortos que nem força anímica terão para reclamar de um encontrão levado por alguém mais afoito.
Olho para os comerciantes de rua: apáticos, tristes, como sentinelas em posição de sentido, de guarda às portas, dos seus estabelecimentos. Como se o vazio de clientes passasse a ser a companhia diária de fantasmas invisíveis. E até o Santo Onofre, num cantinho escondido, meio adormecido pelo torpor à sua volta, parece ter deixado de lutar, contra as políticas desvitalizantes e desertificadas de quem nos governa, que, apregoando o bem do todo, leva sistematicamente à destruição do individual. E o mercador de rua, paradigma dessa política de purga neoliberal, assiste à queda diária de mais uma loja que se finou. E, no seu pensar constante, fazendo contas à vida, interroga-se acerca do que quererão estes burocratas de gabinete que não conhecem o pulsar das gentes que populam as cidades.
Fogo, desculpem lá isto, mas como ia a caminhar da Praça do Comércio até à Praça 8 de Maio não pude deixar de pensar nesta coisa. Desculpem mesmo. Que raio de pensamento este, completamente pessimista. Ainda bem que vou beber um café com o meu amigo Almerindo Abrolhos. Ele é para mim uma espécie de carregador energético, quando estou assim, é a ele que recorro, à sua boa disposição recorrente. 
Lá está ele na esplanada do Café Santa Cruz. Parece estar absorto a ler o jornal, mas eu sei que está completamente vigilante, sobretudo “à coca” duma morenaça brasileira, ou duma pálida e esquálida loiraça nórdica. O Almerindo lá nisso não discrimina ninguém. Aprecio este seu altruísmo. Estou a aproximar-me. Apercebo-me do carisma imanente deste homem. Não admira que todas as mulheres gostem dele. Pudera. Se eu fosse mulher queria-o para mim.
-Bom dia Abrolhos…as saudades que tinha de ti, homem. –cumprimento efusivamente com calor, envolvendo as suas mãos nas minhas.
-Xô…”ó meu”, estás-te a passar ó quê? Desconfio que estás “a virar”. Mau, mau, chega-te p’ra aí…descola...descola! –e remata com uma sonora gargalhada, parecia que lhe tinha saído o Euromilhões. Todos os clientes da esplanada levantaram os olhos e até uma “cota” toda bem artilhada fisicamente, que estava a tomar chá, ficou com a com a chávena parada entre o pires e a boca. Parecia hipnotizada.
-Ó pá, vamos mudar de assunto –rematei quase secamente, um pouco incomodado por ter todos os olhos centrados em nós, coisa que para o Almerindo pouco incomoda- vamos mas é às novidades. Conta-me tudo.
-Ó “meu”, por aqui “no lo passa nada”. Isto é uma pasmaceira. Basta veres as notícias nos jornais, a falta de “caixa alta” é “bué” de deprimente. Olha aqui –e aponta no “Diário de Coimbra”- vê bem: “tomateiro com mais de 3 metros de altura”. Como se isto fosse notícia. Parece que estamos no Entroncamento, “meu”. Há dias foi no “Diário As Beiras”: duas páginas para noticiar uma licenciada numa aldeia próximo de Coimbra. Ó “meu” notícia seria alguém que não se licenciou, “tás” a ver coisa? Por este andar, um dia destes até eu viro notícia. "Ó meu", agora já nem o cão que morde o dono é notícia, estes jornalistas não têm faro para a coisa. –conclui o Almerindo com ar solene e profético.
-Ó pá entendo tudo isso –falo um pouco mais grosso, como que a admoestá-lo- mas eu quero saber verdadeiras novidades. Ainda não disseste nada. Estás a perder qualidades, ou é impressão minha?
-Ó “meu”, não me fales assim que até os meus cabelos do peito se eriçam. A única novidade, presentemente, é o duelo entre o Pina Prata e o Encarnação…
-Espera aí –interrompo o Abrolhos de supetão- o duelo? Entre o Pina…quê?
-Ó “meu”, estás lerdo ó quê? Então o Pina Prata não é aquele vereador do PSD que foi em tempos presidente da ACIC e depois vice-presidente da Câmara? E que primeiro era compadre do presidente da Câmara, depois zangaram-se e agora parecem comadres a trocarem galhardetes? –esclarece o Almerindo como se fosse professor. Isto é o que ele mais gosta de fazer.
-É pá, estou a ver…tens de me contar isso tin-tin-por-tin-tin. -solicito com olhos apelativos.
-Desculpa “meu” mas fui nomeado padrinho do duelo que vai ser aqui na Praça 8 de Maio, em frente ao fundador da nacionalidade, para a coisa ter mais solenidade. De modo que tenho ainda que pensar nas armas com que vão lutar. Não sei se aconselhe a espada, a pistola ou se será ao murro. Ainda estou a pensar.
De maneira que, “meu”, desculpa não tenho tempo agora. –começa a levantar-se da cadeira, como a querer pirar-se.
-Ó pá…deixas-me assim? –faço cara de zangado.
-Estou com pressa “meu”, depois falamos. Paga aí os cafés. –e abala a correr.
Fico a olhar para as costas dele, como habitualmente de boca-aberta. Eu sei a causa de ele abalar a correr: ele vai atrás daquela negra boazona de mini-saia.
Mas eu já o conheço, sei que ele um dia destes vai contar-me esta história inteirinha. Além disso estou muito melhor. Até parece que tomei um anti-depressivo. Pareço outro.
Mentalmente agradeço ao Abrolhos, mesmo tendo que pagar os cafés, aliás, como sempre.

ILUSÃO

Procuro-te no meio da multidão,
nos pequenos magotes de gente,
onde paras ilusão?
Parece que alguém mente;
Dizem conhecer-te bem,
mas só te conhece quem sente,
uma tristeza ou solidão tem,
aquele que sofre e bem te tente;
Procuro-te na água do rio,
espelhada como imagem,
nem o sol me tira o frio,
nem o vento me dá aragem;
Penso que és uma utopia,
um sonho pouco real,
se te visse o que eu fazia,
construía o meu canal;
Como não te vejo, espero,
endureço muito então,
pode ser que sendo sincero,
alcance uma paixão;
Se eu te visse tu fugias,
ó minha querida ilusão,
eu sei que tu bem me querias,
se eu te desse o coração;
Mas ele está fechado para balanço,
à espera de um qualquer amor,
que musique um falhanço,
um fado ou balada de trovador.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

ODE À LUA

Ó lua porque evitas o meu olhar?
Se estou só, perdido no universo?
Como tu, balouçando se calhar,
entre uma rima, esquecida, de um qualquer verso;
Porque foges de mim lua?
se és o meu satélite congregador?
Porque insistes nessa teimosia tua?
Porque corres e evitas o meu amor?
Ó lua gostava de te entender,
porque tens essas faces enganadoras?
Com esse desprezo quero desaparecer,
ir para o inferno, junto de almas pecadoras;
Ó lua porquê essa face triste,
parece que o sol não te chega não,
os teus olhos tem o brilho em riste,
como uns vadios de paixão;
Ó lua olha para mim,
deixa de olhar o espaço,
se me olhares, eu por ti,
dou cambalhotas, rio, nem sei que faço;
Mas ó lua tem paciência,
não pago a tua frustração,
depois do logro a exigência,
confia, deixa-me consolar teu coração

sábado, 18 de agosto de 2007

UM PRAGMATISMO DE ESQUERDA IDIOSSINCRÁTICO

O menssenger começou a piscar. Atendi. Uma senhora apelava: “podemos falar?”.
Caro que sim, respondi. E começámos um diálogo que, a meu ver, é riquíssimo do ponto de vista antropológico e sociológico. Vou transcrevê-lo na íntegra. Escusar-me-ei a fazer juízos de valor. Quem tiver a paciência de ler este texto e chegar ao fim, certamente os fará. Vamos então ao diálogo:

-Boa tarde. Podemos conversar? Interroga (ela).
-Boa tarde, claro que sim! –respondo (eu)
-Vamos ver se temos algo em comum –(ela). Eu sou Professora –área de Letras –
divorciada. Passo a dizer que tipo de pessoa que me interessa: para ter afinidade
comigo. Deverá ser agnóstico ou ateu e deverá ser de esquerda.
Com sentido de humor e pessoa que saiba o que quer.
Depois, é óbvio que o aspecto físico não está posto de parte.
-Muito bem! Vou responder-lhe ponto-por-ponto.-(eu)-Sou agnóstico.
-Pela sua escrita, acho-o um tanto formal. –(ela)
-Politicamente, não sei onde me coloco. Se a senhora quiser discutir comigo a
“sua esquerda”, aposto que se vai achar de direita, pelas similitudes existentes entre as
duas ideologias. (eu).
-NÃO GOSTEI DE OUVIR ISSO! –(ela)
Está errado…
-Pois…mas é o que penso! –(eu)
-Mas está errado. -(ela)
Oquê??! Porque de direita eu nunca serei. Isso ofende-me…
-Estamos a conversar. –(eu)
-Sei. –(ela)
Mas posso dizer-lhe do meu percurso: no 25 de Abril militei em organizações de
esquerda que faziam trabalhos nos locais. Alfabetizei, fundei associações culturais e
um jornal.
-Diga-me um ponto, para si essencial, que considere intrínseco na esquerda. –(eu)
-Honestidade, sentido de justiça…(mas isto são apenas palavras)…anti-racismo. –(ela)
-E a direita? Para si não tem essas premissas? –(eu)
-NÃO! –(ela)
-Está enganada…-(eu)
-É que nem discuto tal coisa. Não vale a pena. Esqueça! –(ela)
-Não estou a defender a direita… -(eu)
-Palavras, demagogia, todos têm…-(ela)
-Politicamente, consigo transcender-me. Considero-me um observador, ou se quiser um
especulador…-(eu)
-Direita é retrocesso, mediocridade e “incultura”. Logo nem discuto…-(ela)
-Esse seu “fechar-se” às ideias dos outros é estranho…-(eu)
-Sou radical, pode dizê-lo, não me ofende! –(ela)
-Tudo é argumentável…-(eu)
-Não, não é! -(ela)
Tenho orgulho das minhas convicções.
O racismo, por exemplo, não é argumentável. É pura sacanice e estupidez.
-A senhora, como professora, deveria saber que tudo é arguível. –(eu)
-Não concordo! –(ela)
-Tudo pode ser, sim. –(eu)
-A tolerância é um “brinde” para os retrógrados e injustos…-(ela)
-Antropologicamente pode ser questionável. –(eu)
-Isso querem “eles”. –(ela)
Não me venha com filosofias…
-Venho sim! –(eu)
Esse seu corte é contornar airosamente os problemas. Eu estou, de certeza, à sua altura
Para os discutir, se quiser…
-Eu, para isso não estou. –(ela)
Não discuto o que, para mim, é óbvio…
-Tudo passa pela filosofia, como sabe…-(eu)
-Como queira! –(ela)
-É assim…para si?-(eu)
-É! –(ela)
-Mas pode não ser para os outros…-(eu)
-Nesta idade (52 anos), não ando a convencer ninguém…-(ela)
-A senhora, negando-se a ouvir os outros, com esse radicalismo, o que está a ser? –(eu)
-Cada um tem as suas opções feitas…-(ela)
Sou radical, “no problem”..-(ela)
-Eu não tenho, nem quero ter…-(eu)
-Ah…mas eu tenho…(ela)
De certos valores não abdico.
-Mudamos a cada minuto que passa..-(eu)
-Nem tanto. Não somos Camaleões… –(ela)
-Os valores são dinâmicos…-(eu)
-Aqui e ali, talvez. -(ela)
Mas no fundamental não…
-Já os princípios, (nem por isso), são mais estáticos…-(eu)
-Questão de terminologia. –(ela)
Não vou por aí. É perda de tempo. Desculpe…
-A senhora é que sabe…-(eu)
-Penso saber…-(ela)
-Por mim, respeito a defesa dos seus valores, não me perturba. Embora discorde…-(eu)
-Ok. –(ela)
-E o que quer fazer? –(eu)
-Não entendi…-(ela)
-Pergunto se quer desligar?! –(eu)
-Penso que somos muito diferentes…-(ela)
-Pois somos mesmo, sobretudo em género…-(eu)
-Ahahahahahahahah! –(ela)
Eu sou mais terra-a-terra, pelo saber do vento nas árvores e o olhar dum cão…
-Tenho dúvidas de que assim seja…-(eu)
-Assim como? –(ela)
-Duvido que saiba interpretar o vento…-(eu)
-Pode considerar-me uma utópica…-(ela)
-Repare, eu não tenho nada contra a sua utopia. –(eu)
O que sou contra, (perdoe a franqueza), é a sua intolerância, imprópria de uma pessoa
que tanto se arroga de apregoar que é de esquerda.
Pode até, se quiser, “dissecar” etimologicamente a palavra “tolerância”. Analisá- la-emos sobre o ponto de vista filosófico. Mas tenha calma. Por favor ouça
os outros. Desculpe.
-Lamento, penso que não vale a pena continuar..-(ela)
-A senhora é que sabe.-(eu)
-Fique bem. –(ela)
-Tenha uma boa tarde. –(eu)
-Obrigada. –(ela)
-Obrigada para si também. –(eu).

(HISTÓRIA VERÍDICA)

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sexta-feira, 17 de agosto de 2007

RECORDAÇÕES DE TI

JUNTO DE TI...ó saudade,
dos tempos do Azeiteiro,
quando lembro a mocidade,
prespasso um sorriso brejeiro;
JUNTO DE TI...eu sonhei,
fiz planos, olhei a lua,
nunca me ligaste, eu sei,
porquê essa distracção tua?
JUNTO DE TI...olhei o mondego,
vimos a água sempre a correr,
passeámos, um fado, em sossego,
como o rio, ao mar, vai morrer;
JUNTO DE TI...olhei para mim,
questionei, inferi, com calor,
senti o teu vago olhar, assim,
pressenti longe o teu amor;
JUNTO DE TI...sou um sol brilhante,
sem ti uma noite de bréu, escura,
gostava de ser mais acutilante,
para não me levares à loucura;
JUNTO DE TI...sou escritor,
sou artista reputado,
desenho na areia, sou pintor,
sem ti sou vazio e mal amado;
JUNTO DE TI...sou gigante,
erecto numa ilha do pacífico,
sem ti sou desinteressante,
um pigmeu quase tísico;
JUNTO DE TI...sou dobrado,
tu, eu, minha alma transcendida,
sou um sino a balouçar estrilhado,
badalando ao mundo: querida...querida!

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

O KARMA DE MALAQUIAS

(FOTO DE LEONARDO BRAGA PINHEIRO)

 Corria o ano de 1957 quando a mãe de Malaquias, em fim de estado interessante, se deu conta que o pimpolho se negava a sair do seu ventre materno. Nunca soube se por preguiça se por impossibilidade natural, a verdade é que, durante três dias, foi uma luta titânica da parteira da aldeia para tentar salvar os dois. O pai do futuro rapazinho fora avisado que um deles, a mãe ou a criança, poderia perecer. Claro que, imediatamente, sentenciara: “em caso de escolha, morra aquele que está para vir ao mundo!”
Entre gemidos dolorosos e transpirações sofridas, ao fim de três dias e três noites, depois de um profundo grito cortante ecoando em toda a casa, a parteira, com ar de vencedora, exclamou: “temos gente nova e mantemos a obreira, senhor Afonso!”.
O pai de Malaquias, de olhos esbugalhados, há três dias sem dormir, exclamou: “graças a Deus “ti” Etelvina, estava a ver que essa criatura me matava a minha Maria”.
Estava dado o mote para um iniciar de rejeição do futuro homem, quer pela mãe, que mesmo contrariando a natureza tão profícua na relação materno-infantil vira a sua vida em risco, quer pelo pai, que, pela sua custosa aparição em cena, ia levando para os anjinhos a sua Maria.
Malaquias, não se sabe se por carência de amor, não parava de chorar. Era de noite, era de dia, chovesse ou fizesse sol. A mãe Maria, resmungando por entre dentes a má sorte que lhe coubera em sina, levou-o ao médico da vila. Este, depois de um exame rotineiro, diagnosticara que o puto estava são que nem um pêro. Mas o raio do "meia-dose-de-gente" não parava de reclamar em agudos prantos sentidos. Esta incomodação contínua levou a mãe a ir a uma "mulher de fora” numa aldeia próxima, uma vidente, muito evidente nas coisas futuras. A mulher, olhando para o pequeno Malaquias, sem delongas ou dúvidas existenciais, pronunciou judiciosamente: “este pequeno ser tem fome!”.
A mãe Maria saiu com a mesma interrogação com que entrara. Como poderia a criança ter fome se até mamava no seio o seu leite sagrado? “A bruxa” não estava, certamente, nos seus melhores dias nas artes da presciência filosófica.
Já na sua aldeia, antes de entrar em casa, cruzou-se com a vendedeira de leite, com o seu cântaro debaixo do braço. Entre um cumprimento e uma interrogação acerca do pequeno herdeiro, é então, e sem que nada o faça prever, que o bebé estende o bracito em direcção ao cântaro leiteiro. A vendedeira, talvez movida por um instinto inexplicável, verte um pouco de leite numa das medidas à mão e, aproximando-a da boca do bebé, este ingeriu, de um só trago, o líquido branco segregado das glândulas mamárias da fêmea do boi.
Por acasos, ou não, a mãe Maria ficou a saber que o sustento do seu primogénito era "aguadilhado" e pouco nutriente para a sua necessidade alimentar básica.
A infância de Malaquias foi sempre temperada exageradamente com grandes tareias sobretudo do seu pai Afonso, que, instigado pela sua mãe Maria, tornou o Sábado como dia do castigo supliciante. Afonso era guarda prisional. Estava ausente de casa desde Segunda até Sábado. Fosse pelo hábito repressivo das cadeias do Estado Novo ou por um sentimento de rejeição, que começara aquando do nascimento do puto, a verdade é que o homem-pai, como um Deus vingador, parecia quase odiar o miúdo, seu filho, como se descarregasse nele toda a frustração de uma semana aprisionado entre muros. 
O infante já conhecia a rotina: o pai chegava a casa por volta das 10 horas da manhã de Sábado. Durante uma hora, mais ou menos, a sua esposa fazia-lhe o relatório minucioso da semana, das traquinices do piolho, “que andara a jogar à bola na rua, que fora tomar banho, juntamente com outros miúdos, para a represa do vale da serva”. 
Pelas 11 horas, mais minuto, menos minuto, as cinturadas estavam a cair-lhe em cima, a ferir-lhe o corpo e a amachucar-lhe a alma, cortando-a, e fazendo esta em mil farrapos. Com o tempo, Malaquias desenvolveu capacidades superossivas à dor, o seu cérebro correra em seu auxílio, criando mecanismos imunitários ao sofrimento. Mesmo sentindo as vergastadas a lancinar-lhe as costas deixou de chorar e, no intervalo de cada cinturada, com um rosto mascarado de dor, pensava enraivecido:“um dia, quando for grande, vou te matar, cabrão!”. Um dia o pai dissera-lhe: “se tornas a tomar banho na represa de vale da serva, dou-te um “enxerto” que te mato!”.
Malaquias sabia que aquela ameaça velada, em caso de incumprimento, seria cumprida. Nunca mais tomou banho na represa. Um dia, num domingo de grande calor estival, ele e outros miúdos traquinas, depois de andarem a brincar às escondidas, estando todos suados, todos correram para a represa de vale da serva. Uns nus, outros meios despidos, todos mergulharam nas frescas águas do rio. Todos não! O Malaquias parou estático, a ver o prazer que os seus colegas deveriam estar a sentir ao serem embrulhados e banhados pelas águas da pequena lagoa. Subitamente, sentiu no seu ombro uma mão calejada tão sua já conhecida: era seu pai que, na companhia de um seu colega de trabalho, se aproximara sub-repticiamente. Aparentemente, aos nossos olhos, perante a razão, tudo estaria bem. Pois! Mas aos olhos de Afonso, seu pai, não estava. Ali mesmo, desenfreadamente, começou à chapada ao rapaz. Como o seu camarada de trabalho interviera a seu favor, enumerando a sua boa conduta –afinal ele não fora tomar banho como os outros, tinha seguido à risca as ordens do seu primogenitor- Afonso, hipocritamente, suspendeu as sevícias. Quando chegou a casa, levou Malaquias para o sótão da casa, amarrou-lhe as mãos atrás das costas, passou-lhe uma corda no pescoço e atou-a numa trave de madeira. Foi buscar o cão e prendeu-o à sua frente. Ali, com o animal como testemunha, brandiu-lhe nas costas várias cinturadas e deixou-o ali preso para o resto do dia. O cão, esse nobre amigo do homem, olhava para ele, de olhos ternos e meigos, parecendo querer chorar.
Malaquias, fruto dessas tareias constantes, ou karma existencial, tornou-se uma pessoa triste, apática, de pouco brilho no rosto. Desde cedo começou a sentir-se um íman atractivo de tudo o que era mau. Sem motivo plausível, sentia ser vilipendiado na rua e agredido sem motivo. Sem razão atendível, era o ir a passar debaixo de uma janela e de repente cair um vaso de flores mesmo ao seu lado ou à sua frente. Enquanto estudante numa das Faculdades de Coimbra, era comum nas orais de exame o examinador, como não fosse à bola com a sua cara, chumbá-lo injustamente.
Já depois de licenciado, concorreu a vários concursos, cujo limite de ingresso eram de vinte concursandos. Várias vezes ficou entre os primeiros. Pois, fosse por artes demoníacas ou do homem, a verdade é que mais tarde era derrogado para vigésimo- primeiro. Depois de "andas para bolandas", lá conseguiu entrar para a função pública e hoje está num serviço de atendimento. É normal, sem motivo compreensível, um utente, logo que se senta e olhar para o seu rosto, começar a insultá-lo e a discutir com ele.
Acidentes de automóvel já foram tantos que nem se lembra do número. Alguns sem explicação. Por exemplo, lembra-se de um, em que estava parado, numa recta, veio um individuo embriagado, bateu-lhe de frente, e destruiu-lhe o carro todo. Milagrosamente apanhou com algumas escoriações. Quando saiu do carro, o prevaricador, também com algumas arranhadelas, começou a agredi-lo ferozmente. Para cúmulo do azar o outro não tinha seguro.
Malaquias interroga-se: de onde virá tanta má sorte? Será que provém de tantas tareias levadas injustamente e, "ipso facto", levou a sua personalidade para campos desconhecidos, em que campeia a tristeza, o desalento e a solidão? Ou, hipoteticamente, como num karma budista, em espírito negativo reencarnado dentro da doutrina espírita, em aperfeiçoamento contínuo, terá de seguir o seu destino preconcebido? E, a ser assim, nesse caso, os seus pais, perante o seu fadário traçado, teriam sido apenas instrumentos ao serviço de um futuro construído antecipadamente? Quem poderá responder?


(HISTÓRIA ESCRITA BASEADA NO RELATO DO AUTOR, AQUI BAPTIZADO DE MALAQUIAS)

terça-feira, 14 de agosto de 2007

O ABROLHOS E O CENTENÁRIO DO TORGA

Passou o fim de semana e eu sem ter uma conversinha com o Almerindo Abrolhos. Fogo, a falta que me faz! Já não sei se vou ao Café Santa Cruz para beber café, se vou pela necessidade de falar com o Almerindo. É que, hoje, pela velocidade que imprimimos à vida, sempre a olhar para o relógio, parece que o tempo deixou de ser universal para passar apenas a ser unicamente nosso. Como se cada segundo perdido, em situações não lucrativas, fosse trágico, como se passássemos a ser “contadores” à enésima fracção de segundo. Como se nos tornássemos “aquela máquina” fria e impessoal, cuja função é debitar acções lucrativas em proveito próprio. Como se até o dar –dar? hoje nada se dá! -os simples bons dias é algo que deve ser rentabilizado, e então passa-se apenas a cumprimentar as pessoas mais chegadas e as importantes. Mas, rapidamente, porque temos pressa, o tempo é dinheiro, porque é escasso e, por isso, urge. É como se, obsessivamente, procurássemos nas acções mais simples uma constante interrogação metódica: o que ganho eu com isso?
Talvez por isso desaparecessem, ou vão desaparecendo paulatinamente, numa escala imparável, os velhos cafés, onde a tertúlia era muito mais do que uma simples conversa de amigos. Era a alma de uma cidade, que, ali, no espaço de quatro ou mais cadeiras, era dissecada até à molécula. Hoje come-se em pé, engolindo de um trago, apenas para confundir o estômago, sem ter muito em conta o valor pantagruélico do confeito; ora se para comer é assim, porque se haveria de perder tempo a conversar?
É por isso, -deve ser mesmo, não tenho bem a certeza- que gosto de conversar com o Abrolhos. No fundo, é como se eu, psicologicamente, como náufrago, me agarre a ele para evitar submergir, e me torne igual às outras “máquinas” que populam por aí. Eu preciso do Almerindo. Ele é, para mim, um dos últimos paradigmas existenciais. É controverso? Sem dúvida nenhuma! Mas afinal só o diferente é controverso. Às vezes, quando sentado na sua mesa, vejo o olhar venenoso com que é amiúde prendado, de quem está à volta, quer homens, quer mulheres. Os homens, obviamente, sentem por ele uma dor terrível de cotovelo. Algumas mulheres sentem que o Abrolhos é um personagem anacrónico, de macho latino que desejam ver fora das suas existências pouco românticas. Acham que o Almerindo, ao despejar nelas aquele olhar de enleio, misturado de lascívia, atenta conta a sua dignidade feminina. Como se ele pusesse em causa a igualdade entre géneros. Como se ele fosse um recalcado, um descompensado de afecto, com problemas para resolver, desde a infância, com as mulheres, quem sabe um complexo de Édipo? Mas quem não tiver, ou sofrer destas insuficiências afectivas, que ponha o dedo no ar.
Para mim, não quero saber! Gosto dele e pronto! Vou beber um café com ele. Lá está ele, sentado na esplanada, a ler o jornal. Volta e meia levanta os olhos, e estes parecem rir, sobretudo quando passa uma bonita mulher. Vou-me aproximando. Vou-me sentar.
-Bom dia Abrolhos! Há uns dias que não te vejo, pá. Confesso que tinha saudades –cumprimento efusivamente, apertando-lhe a mão com calor emotivo.
-Ó “meu”, que é isso?! Chega-te mas é mais para aí. Não te estiques! Mau, mau, estás a passar-te para o reviralho…ó quê? –responde o Almerindo com aquele seu trejeito encantador de dizer as coisas sem magoar.
- Ó pá, lá por ser moda, não me catalogues. Eu faço parte dos últimos moicanos, os últimos resistentes, como tu, aliás –respondo, fingindo alguma indignação, ao mesmo tempo que me escancaro numa sonora gargalhada.
-Ó “meu”, desculpa lá isso! –o Abrolhos pareceu ter emudecido, até parece não me conhecer.
-Ó pá, estás a brincar, ó quê? Isso só me incomodava se fosse verdade. Parece que não me estás a ver, pá! Olha vamos é às novidades. –corto a linha da conversa, como se tivesse utilizado uma lâmina com fio de corte.
-O que me dizes acerca das comemorações do Torga, neste fim de semana, cá no burgo, e da, aparente, falta de atenção do Governo em não se fazer representar ao mais alto nível? É pá uma vergonha! Já viste? Está bem que o Pedro Pita é um homem de cultura, -ó pá!- mas é um representante subalterno, um Delegado nomeado pelo Governo. É escandaloso! –soletro, quase letra-a-letra, esta última frase com grande solenidade, como que a mostrar a minha enormíssima indignação.
-Ó “meu”, tu és curtido! Às vezes pareces-me diferente do maralhal, outras vezes penso que és igual à carneirada. –replica o Abrolhos, de rosto ambíguo, entre o sério e o divertido.
-Ó pá, não me ofendas. Eu igual à carneirada do pensamento único? Estás a confundir-me. –reclamo, puxando dos meus galões de conhecimento adquirido.
-Olha “meu” os convites não se impõem. É um negócio bilateral gratuito. Ou se aceita ou não. Não percebo essa indignação que grassa por aí. Só posso entendê-la dentro do habitual parolismo atávico, ou complexo de pobre, tão característico desta terra, que teima em se pôr em bicos de pés e chamar continuamente a si um estatuto e uma importância que perdeu. Mas, sabendo dessa derrota, assumamo-la de vez e evitemos andar a carpir mágoas por tudo o que é sítio. Qualquer dia, esta cidade, deveria ser chamada de Santa Madalena. -retorque o Abrolhos de cara endurecida pela irritação surda que mina o seu espírito, como que envolvido por um paroxismo.
Reparei que o Almerindo começou a olhar fixamente para os seus sapatos de verniz, comprados na Sapataria Romeu, que tanto gosta de ostentar. Ele não faz a coisa por menos.
-Ó “meu”, já viste os meus sapatos? –interroga-me.
-Já, já vi, são lindos, com esse estilo de John Travolta, a dançar no Grease, por volta de fins da década de 70. –respondi.
-Não é isso, “meu”! Já viste, estão um bocado para o usados…precisava de comprar outros. Não estão a dar com a minha classe, “meu”. O problema é que o vale de correio do desemprego ainda tarda... ó “meu” emprestas-me 100 euros?
-Mas…não acabaste de criticar um certo complexo de pobre…? – deixei a frase suspensa, se eu conheço a Abrolhos para quê fazer-lhe perguntas e tentar compreendê-lo?

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

O ABROLHOS E O ARRENDAMENTO URBANO



 Ontem não estive com o Almerindo, o Abrolhos, estão a ver quem é, não estão? Já vos falei dele. É um tipo bestial –não seguindo o étimo da palavra, mas no sentido de um bacano; um tipo porreiro. É um fulano como não há igual. É do melhor. Podemos considerá-lo um cromo? Podemos sim senhor. Mas é um cromo de luxo, não daqueles vulgares, que vinham nos rebuçados, lembram-se? Eram de personalidades várias, como os jogadores de futebol, por exemplo. 
O Abrolhos é uma bandeira içada no alto de uma montanha. Onde estiver, pela sua imponência e solenidade, é impossível passar despercebido. Marca um território. O Almerindo tem um carisma particular, uma espiritualidade própria, um “feeling” para tudo o que o rodeia. Confesso que às vezes chego a invejar este homem. Sempre bem-disposto, mordaz, consegue fazer-me rir, pelas suas piadas originais, e, sobretudo, possui uma qualidade que considero sublime: consegue rir de si próprio. É um “coimbrinha” que, mesmo sendo naturalmente hipócrita, no sentido de enganador de conveniência, consegue, embora, sempre, pelas costas, dizer as verdades. 
Gosto dele! Que querem? Adoro tomar a “bica” com ele na esplanada do café Santa Cruz. Bem, desculpem lá, mas vou ter com ele. Vou saber as últimas novidades. Lá está ele, sempre bem vestido como o camano. Vou-me aproximando. Ele está muito introspecto a ler um papel, parece uma carta.
-Bom dia, Abrolhos. Estás bom? É pá, desculpa, que ontem não pude vir cá…
-Ó “meu”, isso não é para nós! Vens quando puderes. Sabes que gosto de conversar contigo -interrompeu-me com seu jeito mordaz.
-Ó pá, então que contas? Novidades? Estou a ver-te aí a ler, completamente entrosado, não me digas que recebeste uma carta de alguma admiradora!? –interrogo, vendo que ele lê, com muito interesse, um papel manuscrito.
-Não “meu”. Apesar de que até gostava. Quem me dera a mim! ando a atravessar uma crisezita no meu casório. Agora que falas nisso…bem precisava de levantar a minha auto-estima…
-O quê? -interrompo-o, intempestivamente. Levantar a tua auto-estima? Tu estás a brincar comigo, não estás, ó Abrolhos? Tu és um sobreiro velho que nunca se abate…
-Isso é o que pensas, “meu”. Quantas vezes rimos para não chorar. Enfiamos a máscara sorridente e passeamos por aí, como se prestássemos um serviço aos outros. Andamos no tempo como se vivêssemos em função deles. Como se fôssemos aquilo que eles querem que sejamos –soletra o Abrolhos enfaticamente, como se estivesse mareando num mar de filosofia.
-Ó Almerindo, desculpa lá, nem te estou a conhecer. Vamos mas é mudar de conversa, pá! Responde lá, afinal, que carta é essa que estás a ler. Foi essa missiva que te deixou assim? –interrogo com uma acutilância quase incomodativa.
-Ó “meu”, é uma carta de uma inquilina para um senhorio. Ela é arrendatária de um terceiro andar, aqui na baixa, em muito bom estado de conservação. Sabes quanto paga?
… (fica a olhar para mim, à espera da resposta).
-Ó pá, não imagino, mas tendo em conta que as rendas são muito baixas…deixa ver, deixa ver... deixa-me pensar…talvez 100 euros –alvitro, quase a jogar um número para o contentar.
-Ó “meu”, é vergonhoso, isto. Ela paga cinco euros e vinte cêntimos de renda mensal. Tu já viste este abuso de direito, “meu”? Ainda por cima com exigências, como estou a ler aqui?! Tu já vais ler que eu já te passo a carta. Ó “meu” eu moro na Baixa… –a cara do Abrolhos está mesmo indignada, está franzida de dureza. Queira Deus que não lhe dê uma qualquer "solipampa".
-Ó pá, se calhar essa inquilina tem mais de 65 anos –tentei amenizar o clima de indignação do Abrolhos.
-Ó “meu”, tem! Mas a idade não pode ser -não deveria ser- condição "sine qua non" para coarctar o legítimo direito ao proprietário de aumentar as rendas. Por isso é que tu vês esta miséria de abandono e mau estado dos prédios aqui na Baixa, e em todo o país. Isto é transversal, infelizmente.
-Mas, espera aí, ó Abrolhos, eu não percebo muito disso, mas não houve, no ano passado, alterações ao código de arrendamento? Até lhe chamaram Novo Regime de Arrendamento Urbano? –interrogo, com desmesurado interesse. Agora a conversa está a caminhar bem.
-Houve sim,”meu”! Mas foi como se não houvesse! Foi simplesmente uma operação de charme, de cosmética. Sabes “meu”, como se fosse a Lili Caneças, nova por fora, mas por dentro completamente esclerosada e anacrónica.
-Então mas não teve efeitos práticos nenhuns? –interrogo.
- Praticamente nada! Num universo de 390 mil contratos, apenas 70 foram actualizados. Isto é um descalabro para as cidades. E repara que já passou um ano desde a entrada em vigor do novo regime –refere o Abrolhos.
-Mas porquê? –interrogo,
-Ó “meu”, porque está tudo mal. Uma lei para ser justa e equitativa tem sempre de ter em conta os direitos e as obrigações, harmonizando os interesses das partes conflituais a quem se destina. Ou seja, como neste caso, inquilinos e senhorios, aqueles são vergonhosamente favorecidos e estes, os proprietários, continuam a serem tratados como se fossem capitalistas ricos, como neste caso desta carta. Isto é como se, estes, tivessem de subsidiar os reformados, substituindo-se ao Estado –explica-me o Abrolhos, com ar solene, como se fosse um professor de direito.
-Mas, diz-me, com esta lei complicaram tudo, foi? –interrogo
-Ó “meu”, completamente. Só para entenderes, criaram as CAM (Comissões Arbitrais Municipais), no entanto, num universo de 308 Municípios, apenas 27 foram até agora constituídas. E repara já passou um ano –continua o Abrolhos a explanar.
- Mas, diz-me, pá, essas Comissões “não-sei-de-quê” vêm resolver alguma coisa? Pergunto, assim como “naquela coisa”.
-Nada, pá! É uma armadilha para os proprietários. Quem pedir uma avaliação está “lixado”, é feita a reavaliação das matrizes dos prédios e o novo aumento de renda não dá sequer para pagar o IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis) –retorque o Abrolhos, sempre acompanhado de gestos com a mão, como se estivesse a dar uma aula.
-Ó pá! Deixa-me ler essa carta da inquilina para o proprietário. Deixaste-me curioso – solicito em tom neutro.
-Toma “meu”! –entrega-me a carta na mão. Vou começar a lê-la:


“Coimbra, 22 de Julho de 2007


Maria Apaniguada Malempregada Berlaitada


“Inquelina” do 3º andar do prédio sito na “Rua da má-língua”, nº4-3ºandar Coimbra, vem por este meio relembrar aos proprietários Senhor António Calça Rota e mulher, digo relembrar porque no mês de Novembro 2006, foi informado que havia infiltrações de água provenientes do mau estado do telhado e, assim como viu, e disse-me que precisava do telhado ser novo, e que eu tinha que esperar.
E como se está no verão, desde já agradeço que mande fazer as devidas reparações no telhado, porque estragos no recheio mobiliário, e bem assim como no tecto (isto é que fica por debaixo das telhas) e objectos partidos no arranjo do telhado ser pagos e arranjados.
Outra coisa também para ser reparada é a canalização da água, que não está em muito boas condições.
Agradeço que me avisem antes das obras, para eu poder acautelar as minhas coisas.
Que não seja, como em tempos recuados que não me avisaram, fizeram o que quiseram; era água por todos os lados e lixo.
Há outra coisa ainda:
As obras nos telhados tem que ser rápidas, e seguidas. Não se pode
arranjar dum lado e passados 15 a 20 dias arranjar a outra parte que falta.
Sem outro assunto de momento subscrevo-me atenciosamente.
(Maria Apaniguada Malempregada Berlaitada)


-Ó Abrolhos, isto é de mais! Realmente temos aqui uma casa bem arranjada, como quem diz, mal desgraçadamente –refiro, abanando a cabeça, para cima e para baixo e franzindo o sobrolho. Mas, há uma coisa que me está a espicaçar. Tu moras na Baixa, és inquilino e estás tão contra os inquilinos?
- Olha “meu”, conheces-me, eu não posso com injustiças! Sempre fui assim, desde que me conheço –refere o Almerindo, levantando o queixo com grande aprumo.
-É verdade, pá! Eu conheço-te! E por te conhecer bem é que te pergunto: quanto pagas de renda?
-Ó “meu”, não confundas as coisas! Já estou na minha casita há 25 anos. E mais: quando fui para lá a renda era uma fortuna. Além de mais sou eu que tenho sempre pintado tudo a expensas minhas…-responde o Abrolhos um bocado para o irritado.
-Está bem, pá! Mas quantos pagas, afinal?
- Ó “meu”, pago 50 euros. Mas para o estado da casa é de mais – responde divagando como se não falasse para mim.
Como sempre fico de cara à banda com as respostas carregadas de solenidade e justiça do Abrolhos…

terça-feira, 7 de agosto de 2007

UMA HISTÓRIA DOMÉSTICA MUITO VIOLENTA

(IMAGEM DA WEB)


 A primeira vez que vi o João, há cerca de dois anos, pareceu-me um rapaz todo desempenado fisicamente e, pelo pouco que falei com ele, bem formado intelectualmente. Contou-me os sonhos de independência financeira, normais num jovem de 20 anos. Ou, provavelmente, muito mais do que isso, o que pelo facto de simplesmente sonhar –sendo o sonho o princípio da realidade- me levou imediatamente a admirá-lo. Até comentei: “a Margarida teve muita sorte no rapaz que escolheu para seu futuro marido”.
A Margarida é minha prima em segundo grau. Uma miúda linda, própria duma mocetona de 20 anos. De cara angélica e um corpo de "barbie", a boneca criada por Ruth Handler em 1936.
Eu sabia que eles estavam a morar numa aldeia próximo de Coimbra, na mesma casa dos meus familiares. Há cerca de três anos em união de facto, num andar independente, mas de entrada conjunta. Sabia também que eles marcaram o casamento há tempos. Nunca me preocupei em saber como corria a sua relação. Dei por acabado que seriam mais um casal como tantos iguais a outros e fiquei à espera de ser convidado para a celebração do casamento.
No Domingo recebi um telefonema meio angustiante: “tio quando vens cá?...precisava de falar contigo…”-esta comunicação era da mãe da “barbie”, minha prima directa.
Passei então no Domingo, cerca das 21 horas.
-O que se passa”-interroguei- algum problema grave?
-Tio, a Margarida separou-se do João há cerca de um mês…-começou a contar a minha prima- e agora ele não a larga. Ameaça-a constantemente pelo telefone. Há dias deu-lhe um brutal tabefe num café, perante outras pessoas, que ela ficou com os dedos dele marcado no rosto. Como ela trabalha até à meia-noite, em Coimbra, e se desloca no seu carro, ele já, por mais de uma vez, a foi esperar a meio do caminho e, continuadamente, persegue-a. Há uma semana foi ao trabalho dela e ameaçou-a, conjuntamente com um seu colega de trabalho do qual ele sente uns ciúmes desgraçados.
Há dias encostou-lhe uma arma à cabeça e disse à Margarida que a matava se ela não voltasse para ele…-contou, em narração, a minha familiar de lágrimas nos olhos.
-E o que aconteceu agora –interrompi-a- estão juntos outra vez?
-Ela voltou para junto dele ontem, sim é verdade –responde a minha prima.
-Mas achas que ela voltou para ele devido à pressão emocional ou ao medo que ele lhe possa incutir? O receio de represálias físicas? –perguntei com acutilância.
-Tenho a certeza que sim. Ela teme-o. E nós também. Como ele tem, ainda, a chave de casa, vem de noite, faz barulho e vai ter com ela ao quarto, forçando-a…
-Diz-me uma coisa –interrompo- esta violência já vem de longe, não é verdade?
- É sim tio! Ainda eles não viviam juntos, e ele lhe deu uma “malha”. Depois vieram para aqui morar e era uma constante. Há cerca de um ano ela apareceu com um olho todo negro e um dedo “deslocado”. Perguntámos-lhe o que tinha acontecido e a Margarida respondeu que fora uma cotovelada do João…sem querer.
-Então, e, perante esse quadro de violência, ninguém fez nada? –interrogo, entre o incrédulo e o estarrecido.
-Não tio, a gente não gosta de se meter. “Entre marido e mulher não se deve meter a colher”…-responde a minha familiar com sofrida ignorância.
-E se ele a mata? –interrogo- como é que vocês ficam com a consciência? Não sabes que a polícia serve para prevenir esses casos?
-Pois é tio, eu sei, mas o meu marido não quer saber…
- Queres que eu apresente queixa? Acho que devo fazê-lo, é uma obrigação cívica, até, além de mais, para prevenir alguma coisa que possa acontecer –interrogo a minha prima.
- Sim tio. Faça-o!
Depois de ter tomado nota dos nomes da “barbie” e do agressor malfadado rumei ao posto mais próximo da GNR. Pelo caminho ia rebobinando este enredo de terror e fui fazendo o balanço desta família, dividida entre a cobardia e a omissão. Agarrada a aforismos estereotipados que, sendo levados à letra, dão um “geitão” para evitar chatices. Miséria de ignorância das pessoas. Povo atrasado, quase a cair para o mental. Ia simplesmente indignado.
E, a pensar neste abominável caso, cheguei ao posto da GNR, da cidade mais próxima desta aldeia. Eram cerca de 22 horas. Toquei à campainha da porta, veio um guarda e disse-lhe que pretendia efectuar uma participação de violência doméstica. Entrei.
-Violência doméstica? –interroga o cívico, como se tratasse de algo pouco comum- o senhor tem os elementos todos?...O nome da vítima, o nome do agressor? Onde moram?...tem tudo isso?...Mas a vítima não pode vir cá amanhã?
Com manifesta pouca tolerância, repliquei:- O senhor agente, sabe, melhor do que eu, que a violência doméstica é um crime público. E assim sendo, a mim cabe-me despoletar a situação, é a minha obrigação como cidadão. Tenho aqui alguns dados e os posteriores serão da responsabilidade do Ministério Público e da vossa polícia –repliquei sem disfarçar algum enfado.
-Pois, pois! Apenas estava a referir os dados porque é preciso preencher 14 folhas -respondeu o GNR, um pouco mais calmo, como admoestado.
- Senhor agente eu estou disponível. Estou aqui para isso -repliquei.
Começámos a fazer a participação, eu ia falando, ele ia escrevendo no computador.
No fim, deu-me a participação e disse: “assine aqui, se faz favor”.
Referi que gostaria de ler antes de assinar. Li, e no tocante às minhas declarações de denunciante, reparei que numa frase de cerca de duas dúzias de palavras haviam pelo menos 6 erros ortográficos. Comecei a pensar o que deveria fazer. Deveria dizer-lhe, ou não? "Digo, não digo…talvez não deva dizer?". Em conflito mental, acabei por optar no sim, com alguma relutância: “o senhor agente desculpe…” –e o homem lá emendou as minhas declarações.
É preciso dizer mais alguma coisa? Este é o país que temos. Quem ler este texto que faça o seu juízo de valor.


(HISTÓRIA VERÍDICA)

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

O ABROLHOS E O ENCERRAMENTO DA CENTRAL

Hoje é 2ª feira. Vou falar com o Almerindo Abrolhos. De certeza absoluta que depois de um fim de semana, deve ter imensas novidades para me contar. Vou então, em direcção à Praça 8 de Maio, ao Café Santa Cruz, o "poiso-feliz”, ou “porto de abrigo” do meu amigo Abrolhos.
Ena pá! Tanta gente! O que é que se passa aqui?! Ah…estou a ver ali a Televisão. É a RTP1…é o programa “Praça da Alegria”. Daí toda esta assistência. A locutora pula de cara em cara, tentando obter uma declaração. Todos se esforçam por aparecer no pequeno écran. Individualmente, todos procuram os quinze segundos de fama. Aquela senhora, está a falar. Olhem para a cara dela! Reparem no ar formal, como se estivesse, pelos trejeitos do rosto, a dizer: “mamã estou aqui! Sou eu mesmo mamã! Estou na televisão!”
A esplanada do Café está repleta. Aposto que o Abrolhos não está lá. Ele detesta magotes de gente. Está ali uma pessoa que conheço. Vou perguntar-lhe se viu o Almerindo.
-Bom dia, estás bom Armindo? Desculpa lá, viste por aqui o Abrolhos?
-Vi-o, há uma hora, a entrar na Central, aquele Café encostado ao Nicola, ali à frente, na Rua Ferreira Borges, estás a ver onde é? –interroga-me o meu amigo.
-Claro, pá! Quem não conhece a “Central”, um dos mais emblemáticos cafés da cidade –respondo enfaticamente.
Deixo todo aquele rebuliço da Praça 8 de Maio, ao som do Toy, com o seu refrão “perdidamente apaixonado”. Enquanto não chego à Central, vou pensando na canção do Toy. Engraçado, o amor é como a felicidade, todos corremos atrás deles, como um horizonte perdido no espaço visual. Quando encontramos qualquer um deles, como invisuais, não os reconhecemos, e como indigentes carenciados, continuamos repetidamente à procura. É como se, obsessivamente, precisássemos desta utupia.
Enquanto vou caminhando, lembro-me do Abrolhos. Um ser tão especial. Sempre bem disposto. O facto de estar desempregado há mais de cinco anos não modifica a sua disposição, antes pelo contrário. E agora, parece-me, creio que o seu casamento longo está atravessar uma grave crise. Nem mesmo assim perde a sua mordacidade. Parece que qualquer dissabor, por maior que seja, tem um efeito ejector na sua alegria.
Bom, estou a chegar ao Café Central. Vou entrar. Lá está o Abrolhos. Sentado ao canto, junto às casas de banho. Ele escolhe sempre um sítio onde possa ter uma panorâmica geral de tudo o que se passa à sua volta. Como sempre, está impecavelmente vestido. Com o seu pólo Califa, as suas calças vincadas –engraçado, nunca vi o Almerindo de calça de ganga- e os seus inconfundíveis sapatos de verniz, das Sapatarias Romeu. Olho à volta. O café está praticamente cheio. É quase tudo gente de mais de meia idade. Essencialmente senhoras, possivelmente reformadas, todas apinocadas. E um pormenor engraçado: duas ou três senhoras têm uma cadelinha, ou cão, no regaço. Parecem que afagam um bebé, tal a forma carinhosa como o apertam contra o peito. Há cães com sorte, penso para mim…
-Bom dia, Abrolhos! Hoje mudaste –sublinhei o “mudaste” a lembrar o anúncio da televisão- de poiso –perguntei, dividido entre a interrogação e a constatação.
-Mudei, “meu”, hoje a Praça 8 de Maio está impossível! Estes parolos parecem que nunca viram a televisão. Parecem macacos. Até me enerva esta pacovice barata –responde o Abrolhos.
-É pá, tenta ver as coisas de outra maneira –replico, sem grande convicção- afinal, se atentares, a televisão raramente fala do que se passa aqui, ou vem à cidade. Apesar de ter aqui um departamento, raramente foca a urbe, é como se não existisse. O país está dividido em Lisboa e Porto e o resto é mesmo paisagem.
-Ó “meu” talvez tenhas razão, mas que embirro com isto embirro, pronto! –replica o Abrolhos.
- Vamos mudar de assunto –opino- conta-me as “últimas”. De certeza –eu conheço-te- não vieste a este café apenas porque te enerva o pacovismo das pessoas. Estou errado?
-Ó “meu” tu surpreendes-me! Às vezes chego a pensar que és presciente….
-Sou quê? Estás a insultar-me… Abrolhos? Interrogo, ampliando uma cara de chateado à brava.
- Não, “meu”! “Presciente” quer dizer adivinho…
-Ah…bom! Fico mais descansado, pensei que me estavas a insultar. Respondi com ênfase.
-Realmente, “meu”, estou aqui por solidariedade para com este Café, que regurgita o nosso passado e faz, intrinsecamente, parte da nossa memória colectiva…
-Espera aí! –interrompo abruptamente o Abrolhos- não me digas que é mais um Café que vai fechar? Estou a ver! Mais um “pronto a vestir”! Depois do “Arcádia e da “Brasileira”, é mais um. É pá, não posso crer!
-É verdade, “meu”, infelizmente! Li no Jornal “Campeão das Províncias”. Ó “meu” estou em choque, isto é um sítio curtido. Não há outro igual. Se encerrar é mais um pouco da nossa história, um pouco de nós que se vai –declama o Abrolhos, com uma tristeza nos olhos que fazia dó.
Claro que eu sei que a sua tristeza advém, essencialmente, da falta que ele vai sentir daquelas “cotas” todas aperaltadas, e que, como passagem de modelos, diariamente, posam na “Central”. Com o seu decote pronunciado, como se estivessem a reavivar nos homens um deleite ultrapassado, e sua saia, puxada intencionalmente para o meio das coxas.
- Ó pá, tens razão, mas o mercado é dinâmico, e, naturalmente, uns nascem e outros morrem –tentei consolar o Almerindo.
-“Meu”, este espaço é curtido, faz-me falta, é um candeeiro, na noite escura, da cidade, que se apaga. É mais um que se vai.
-Ó “meu”, paga-me aí o café que me esqueci do dinheiro em casa -levanta-se, vai-se embora, e deixa-me a falar sozinho.
Como sempre fico sem palavras perante o atrevimento do Abrolhos…

sábado, 4 de agosto de 2007

O ABROLHOS NAS FINANÇAS

Lá está o Almerindo Abrolhos sentado na esplanada do Café Santa Cruz. Estão a vê-lo? Não há dúvida! Reparem naquela classe. Aquele homem é uma obra de arte viva. Olhem para aquela pose! Atentem bem. O que vos faz lembrar? Pensem um pouco. É isso mesmo…só que vivo. Sem dúvida parece o Fernando Pessoa na Brasileira do Chiado, em Lisboa. Tem muitas parecenças. Mas o Abrolhos é muito superior. É uma estátua viva.
Lá está ele a ler o "Diário de Coimbra". Reparem, olhem o que vai acontecer. Estão ver aquela turista de mini-saia e com decote até ao umbigo? Já vão ver o que acontece. O abrolhos parece que pressente, é como se tivesse um sexto sentido. Quando ela passar ali perto, da sua mesa. Tomem atenção. Agora! -O Almerindo levanta os olhos do jornal e, com olhos, segue-a. Reparem no brilho dos olhos deste D.Juan. Eu não vos dizia? Este Abrolhos é surpreendente.
Se não levam a mal, vou tomar um café e conversar um pouco com ele.
-Bom dia Abrolhos! É pá! Estás todo produzido. Este teu perfume…(snif…snif), que cheirinho! È “Banderas”…não é?..Sinceramente, não admira que as mulheres te caiam no regaço. Com esta envolvência perfumática…
-É verdade…”meu”…é mesmo “Banderas”…como é que adivinhaste?...Fogo, com essas cheiradeiras, ainda és convidado para cão-pisteiro da GNR.
Não pude evitar uma sonora gargalhada, pela imediata reacção do Abrolhos. Toda gente começou a olhar para mim. Numa altura em que anda tudo triste, de sobrolho franzido, e eu a rir daquela maneira, das duas uma ou sou louco, ou inconsciente –terá pensado aquela gente, pela forma fixativa como me olhavam.
O Abrolhos, hoje, está vestido que é um espectáculo. Calça branca, bem vincada, repetidamente por um ferro de engomar, uma t-shirt azul céu, da Lacoste, e os seus emblemáticos sapatos abicados, de verniz, da Romeu. O seu penteado para trás, à Errol Flynn, misturado com brilhantina.
Vou chateá-lo. Vou fazer-me distraído, e, como se fosse sem querer, vou calcar-lhe um sapato. Vamos ver o que acontece.
-Desculpa ó Abrolhos, foi sem querer, estava distraído, desculpa ter-te pisado.
-Olha “meu”, não faças isto, detesto que me pisem, sempre abominei. É o meu sentido de independência e liberdade –replica o Abrolhos, sem conseguir disfarçar uma irritação surda, ao mesmo tempo que retira do bolso um lenço branco e impecavelmente dobrado. Dobra-se sobre o sapato maltratado e limpa-o com todo o amor e carinho, como se estivesse a cuidar de um menino.
-Desculpa lá, foi sem querer. Não voltará acontecer – repliquei, com sentido pesar e engelhando a cara, para parecer mais convincente.
-Ok, “meu”. Estás desculpado, sei que eras incapaz de fazeres isto de propósito. Conheço-te…
-Vamos falar de novidades –interrompo-o- pressinto que hoje estás tenso, estás continuamente a tamborilar os dedos sobre a mesa. Até me estás a irritar. O que se passa contigo hoje? Desembucha, homem. Somos amigos, não somos?
-Claro! Desculpa, realmente, hoje, não estou nos meus dias –responde o Abrolhos.
-Porquê? Interrogo. Aconteceu-te alguma coisa que não contavas?
-Bem! Contava e não contava. Deveria ter pago o selo do carro até ao dia 31 de Julho, mas como andava mal de “pilim”, deixei passar o prazo…
-Ainda tens o MG vermelho, de jantes raiadas, descapotável? –cortei eu, de supetão, interrompendo a explanação do Abrolhos.
-Claro, “meu”. O meu carro é a minha alma, a minha identidade, é tudo o que eu sou.
-Continua, desculpa ter-te interrompido. Não pagaste então o selo dentro do prazo –incentivei-o a continuar a narração.
-Pois. Como não paguei atempadamente, fui então às Finanças, ali na Fernão de Magalhães -“tas” a ver?-, logo a seguir, no dia 1. É pá! Montes de maralhal! Esta gente deixa tudo para os últimos dias. Já viste? Este povo é ingovernável, como dizia o tal imperador Romano. São desleixados até à última.
-Então mas ficaste chateado porquê? Não estou a perceber! –Atalhei, meio desconfiado de que deveria haver mais alguma coisa.
-Ó “meu” é que acabei por me vir embora, no dia 1. Era tanta gente. Tudo a olhar para o visor electrónico sequencial das senhas. Era giro. Só queria que visses, tudo de nariz no ar, à espera da sua vez. Mas as chamadas rodavam lentas. Parecia o jerico do Zé Malacueco.
-Mas, interroguei, andava assim tão devagar?
-Andava!? Ó “meu “ a fila não andava, rastejava como um cágado. Havia sete guichets de atendimento mas só quatro estavam a atender. “Tas” a ver, não “tas”?
-Ó pá, também estamos em mês de férias, é Agosto, deve haver menos pessoal –contrapus.
-Olha “meu”, lá o andar devagarinho ainda vá que não vá, mas o que me chateou verdadeiramente foi a cara de enterro dos funcionários. Dois homens e duas mulheres. Só queria que visses o seu semblante. Só uma senhora funcionária, por acaso linda, palavra de honra, de cabelos compridos, é que de vez em quando lá arrancava um sorrisito muito a custo. Ó “meu”…mas se visses quando ela ria. Ai meu Deus!..Que espectáculo…
-Então, voltas lá para a semana –reconfortei o Abrolhos, calculando que voltaria às Finanças com muito gosto pela funcionária de cabelos compridos.
-Ó Abrolhos, deixa-me gabar essa tua camisete da Lacoste. É linda! Foste aos saldos, já estou a ver…
-Ó “meu”, se és meu amigo, não me fales em saldos. Eu abomino os saldos. “tas-me” a ver aí a vestir o resto dos outros? Vade Rectro! Parece que não me conheces. Tem dó, “meu” –replica o meu amigo, quase a espumar pela boca. Desta vez é que deixei mesmo o Abrolhos irritado.
-Ó “meu”, queria pedir-te um favor. Podes emprestar-me 50 Euros?
Fiquei de queixo em baixo a olhar para o Abrolhos…

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

A APRESENTAÇÃO DO ABROLHOS



 Hoje, lembrei-me de vos trazer um personagem interessantíssimo que, seguidamente, irei apresentar-vos: Almerindo Abrolhos.
O Abrolhos –para os amigos, como costuma enfatizar -é um homem que gosto muito. Todos os dias estou com ele. Qualquer novidade, “trica”, ou “diz-que-disse”, nada lhe passa ao lado. Este homem, pela força da vida, pela sua experiência empírica, tornou-se relações públicas, psicólogo, filósofo, antropólogo, político, gestor, enfim, uma instituição de sabedoria. Olho para ele como uma mistura de admiração e alguma comiseração pelo seu procedimento. Mas, inevitavelmente, acabo sempre a admirá-lo. O Almerindo é um contorcionista social, um camaleão, jogando ao sabor das cores da conveniência própria. Para quem vive, e viveu, em Coimbra é o chamado “coimbrinha”. Um tipo que vive de esquemas, no interstício do sistema; duma inteligência invulgar e de uma voracidade de conhecimentos que amanhã lhe possam vir a ser úteis. O chamado “chico-esperto".
Quem quer encontrá-lo basta deslocar-se ao Café Santa Cruz, na Baixa de Coimbra. É o seu quartel-general, como costuma soletrar com alguma solenidade. No verão, neste Agosto de canícula, logo de manhã, lá está ele na esplanada do café, e junto à Igreja com o mesmo nome do estabelecimento. Na sua mesa, a chávena de café e três jornais. Dois diários da cidade, “As Beiras” e o “Diário de Coimbra”, e um diário nacional, “O Público”.
O café, “a bica”, que tomara há pouco, fora servida pelo senhor Costa, o empregado de mesa, que nas horas vagas é pintor de telas e aguarela.
O Almerindo tem aproximadamente 45 anos. Desempregado de longa duração. Trabalhou numa fábrica, ali para os lados da Pedrulha, mais de 25 anos. A empresa encerrou há cerca de 5 anos. No princípio, esta vacuidade de vida deprimia este excelso homem de cultura paisagista da urbe. Hoje, fruto do tempo, habituou-se e sem querer outra vida costuma referendar aos amigos que é um desempregado profissional, desempenhando o seu trabalho com empenho, dedicação e carinho.
Toda a gente gosta deste homem. É normal oferecer uma sandes e um sumo à miúda romena que lhe pede uma “moedinha, senhor”! Durante o dia, talvez pela proximidade, vai várias vezes à Igreja. É um católico fervoroso, dizem.
Eu gosto do Abrolhos, não só porque diariamente me dá as notícias de tudo o que se passou no dia anterior na cidade, mas também pela sua pose encenada ao pormenor. Tudo está de acordo com o personagem, como se ele fosse um “Casanova”, o escritor e aventureiro italiano que viveu entre Veneza e Londres, por meados do século XVIII. Ou então, de há trinta anos atrás, quem não se lembra, em finais da década de 70, do "Tonico Bastos", da novela da RTP, “Gabriela Cravo e Canela. Ou, ainda, na actualidade, um "Zé Camarinha", conquistador do belo sexo, dos Algarves e além-mar. O Almerindo é um ícone. Adoro os seus gestos maneiristas, o seu olhar sedutor. Aos seus olhos, não há mulheres impossíveis de conquistar. Tenho de confessar que ao pé dele sinto-me pequenino, quase insignificante, mas cada um é para aquilo que nasce. Eu nasci para trabalhar, ele para conquistar, e certamente deixar o seu nome gravado a fogo de paixão na história da cidade.
Basta reparar na sua imagem. É impossível ignorá-lo, quer seja homem ou mulher. Claro que estas falam a mesma linguagem do Abrolhos. É como se o homem tivesse herdado os genes da mãe e , ao vê-las, houvesse um clique e um entrosamento espiritual entre estes dois géneros, masculino e feminino.
As suas calças vincadas –hoje, por acaso, brancas-, a sua camisa de cor rosa desmaiado, e nas costas o pullover atado no pescoço. O seu sapatinho abicado, de verniz, comprado na Romeu –como gosta de apregoar, alto e bom som. O seu cabelo, penteado para trás, com um pouco de gel fixador, preto, pintado, obviamente, para disfarçar umas cãs rebeldes, que um conquistador nunca se entrega a uma velhice temporal. Eis então o Almerindo Abrolhos. Vou fazer as apresentações:
-Almerindo…apresento-te estes senhores –e aponto para vocês.
-Prazer, Abrolhos, para os amigos –levanta-se da cadeira e faz uma reforçada vénia, com o braço direito a fazer um largo e exagerado círculo de enleio.
Em frente a nós vai a passar um janota bem vestido, parece-me conhecê-lo. O homem dá de caras com o Abrolhos, faz um desvio e vem ter connosco à nossa mesa.
-Bom dia Abrolhos! Cumprimenta o passante, com voz repenicada, deve ser político, penso para mim.
-Bom dia Senhor Doutor, como vai? Gostei muito de o ouvir discursar ontem na Câmara. O Senhor Doutor marca a diferença num hemiciclo onde pondera a mediocridade. Vai ser deputado, pelo partido, nas próximas legislativas, não vai?
Reparei nos olhos do homem, até brilhavam de tanto elogio encomiante.
-Ó Abrolhos…não diga isso… não diga isso… há lá muito melhores do que eu –esta frase foi dita a titubear, quase aos soluços pela emoção.
O homenzinho foi embora, depois de ter pago os nossos cafés, e de se despedir com mil lisonjas ao Abrolhos. Para mim, nem sequer olhou. Era como se eu nem existisse, e como se estivesse invisível.
-Ó Abrolhos, desculpa lá, conheço este gajo de qualquer lado. É político não é? Interroguei.
-É…”meu”…é um vereador do PSD, ali na Câmara…um estronso qualquer-enfatizou.
Entretanto, na mesa ao lado sentou-se um casal quarentão. O homem lê um jornal e a mulher parece divagar, de olhar distante, talvez perdido numa memória.
Às tantas, começo a ver a troca de olhares furtivos, carregados de sensualidade, entre ela e o Abrolhos. Ena pá! O que estava ali a acontecer era um milagre de fluidos químicos entre mortais.
A mulher remexia-se na cadeira, como se estivesse tocada pelo demónio. Eu, sem saber o que fazer, apetecia-me fugir, mas estava preso nesta peça teatral. O olhar dela –meu Deus- parecia querer embrulhar o Abrolhos. Nunca vira nada assim!
Sub-repticiamente, levou as mãos aos seios, acariciando-os e subiu a saia ligeiramente, pondo à mostra uma perna torneada, certamente, por um artista metafísico.
Murmurou qualquer coisa ao ouvido do marido, que continuava entretido a ler o jornal, e, com um longo olhar de enleio, convidou o Abrolhos a seguí-la. Ela levantou-se e entrou na Igreja de Santa Cruz. O meu companheiro de mesa, como autómato, seguiu-a. Nem se despediu de mim. Estava explicada a religiosidade do Abrolhos…

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

UM DIA SEM CARRO

O meu carro, talvez contagiado pelo dono, anda com problemas. Sinto-o abatido, com pouco ânimo. Nos últimos dias, logo de manhã, custa a pegar. Parece que está cansado, pareço sentir-lhe a língua de fora. Levei-o ao seu terapeuta, como quem diz ao mecânico, mas este disse-me que era um problema no sistema electrónico e, assim sendo, como se fosse o seu sistema nervoso, o melhor era levá-lo ao psiquiatra, como quem diz à marca. Sim, porque eu, como gente rica, tenho dois mecânicos, um para coisas simples e a marca para coisas complicadas. Ser rico não é fácil, tem destas coisas. Uma pessoa tem de ter tudo a dobrar. Tem duas vozes que usa conforme as ocasiões. Uma, a mais humilde, assim um pouco a cair para a cana-rachada, que emprega, como lana caprina, com a plebe, em que não se preocupa com o vocabulário, no dia-a-dia. Outra mais grossa, mais empolgante, mais formal, diria uma “voz de senhor doutor”, em que o léxico é escolhido ao milímetro, onde não se permitem deslizes ou verborreias verbais. Ser rico é poder até adiar a morte, como quem diz o anúncio, como aconteceu com Antonioni, o realizador de cinema Italiano, que coitado do pobre homem, então não é que o destino quis que ele morresse no mesmo dia do Ingmar Bergmam? Sinceramente, foi uma desclassificação. Logo morrer no mesmo dia do maior cineasta Sueco. Então a família, para não coincidir com o outro ícone do cinema, adiou o anúncio da morte do meu ex-amigo Antonioni. Fez bem? Claro! Gente rica e famosa é assim. Você tem inveja? Olhe vá bugiar e seja famoso. Alguém tem culpa de você ser um apagado escriturário de 3ª classe? Essa mesquinhes de portuguesito paupérrimo, de bolso roto, de tanto procurar uma moeda, e de sola gasta num sapato que já viu melhores dias. Sinceramente, parece uma pandemia!
Bom, mas com a conversa, quase que me perdi. Fui então à marca, ali para os lados da Pedrulha, que dista para aí uns oito quilómetros da Baixa da cidade de Coimbra –evita de estar toda curiosa que não vou dizer a marca, que cusquice barata, meu Deus, a paciência que tenho de ter com estes pobres.
Deixei então o meu bólide. A marca disponibiliza transporte gratuito –para gente rica como eu, é claro! Mas eu hoje, apetecia-me ser pobre. É daqueles dias que só a psicologia explica. Vai daí, não pedi transporte e fui para a paragem do autocarro em frente. Não fazia ideia a que horas passaria o autocarro. Como eram 9 e 10 minutos, pensei para comigo:”e se eu apanhasse uma boleiazita até à baixa?”. E se melhor o pensei, melhor o fiz. De braço estendido, polegar em riste, aí estava eu, todo lampeiro, como um pobre qualquer. Passou o primeiro, mulher por acaso, só por acaso, nem para mim olhou. Bolas, senti-me completamente insignificante. Bom, foi por acaso, pensei. Veio o segundo, um homem a conduzir, olhou para mim, engelhou a cara, torceu o nariz, arranhou na cabeça e continuou viagem. O que quereriam dizer aqueles gestos? Pensei. Será que ele adivinhou que eu era rico e estava ali a fazer-me passar por pobre? Só podia ser isso. Continuei de polegar em riste. Passou uma senhora, duas, três, quatro, e nada. Alto e pára o baile, agora é que vai ser, pensei, este que vem aí é dos meus, um Mercedes e conduzido por um homem, já cá canta, esfreguei as mãos de contente. Pois sim! O janota piroso, olhou para mim, mediu-me de alto a baixo, e como se pensasse, “querias ser como eu, não querias?” E deixou-me ali a olhar para o traseiro do seu Mercedes. Ainda gritei: “EU SOU DA TUA CLASSE…SOU DA CLASSE A”…mas está bem, ele desapareceu e foi engolido pela curva da rotunda. Até uma carrinha de transporte me ignorou, francamente.
Pois é verdade, ser pobre não é fácil. Durante vinte longos minutos, ninguém me deu boleia. Certamente pensavam que os pobres devem andar de autocarro...e foi o que me aconteceu. Surgiu então um autocarro parcialmente cheio. Reparei que cerca de 80% eram utentes com mais de 50 anos. Só talvez 20% seriam jovens. O que é que isto quer dizer? Nada. Apeteceu-me referir, só isso. Depois de levar com um velho em cima, numa curva, lá cheguei então ao princípio da zona baixa da cidade. Para minha surpresa o autocarro faz inversão de marcha e eu, como caminhante estagiário, desci e fui a pé, cerca de dois quilómetros. Bolas…é complicado ser pobre…

UM POEMA DESNORTEADO

Hoje não tenho motivação,
estou perdido no espaço,
sinto-me sem inspiração,
quase não sei o que faço,
como se tivesse maldição;
Se tenho, alguém me amaldiçoou,
e esse alguém anda por aqui, certamente,
alguém que nunca me perdoou,
mesmo que me ajoelhe nunca vai ser indulgente,
mas se assim é, sei que jamais me amou;
E o que posso fazer para quebrar o feitiço?
Talvez fechar-me numa redoma?
Atar-me como um chouriço?
Evitar que alguém me coma?
Ou não devo fazer isso?;
Alguém me pode ajudar?
Quem me tira este tormento?
Pode ser contrapoder, e me amar,
mesmo que seja só por um momento,
retire esta dor lancinante e me possa sarar;
Quero lá saber se é muito ou pouco bela,
quero apenas sentir o seu espírito, a sua alma,
tem que ter um coração imenso e puro, dela,
ser amorosa, ternurenta, um doce, e ter calma,
poder entrar na sua vida, mesmo que seja pela janela.