(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Esta semana faleceu uma minha vizinha, uma comerciante
com estabelecimento próximo. Como sempre faço, quando algum profissional do
comércio nos deixa, escrevo um pequeno texto de elogio fúnebre. Não estou
preocupado com o balanço entre o deve
e o haver, como que a julgar se o que
parte fez isto ou aquilo, se contribuiu ou não para uma
melhor convivência. Se foi meu amigo, ou não. Se concorreu e foi importante na
minha amizade eu refiro. Se não ajudou, paciência! Foi o que foi, ou que pode
ser, e não estou cá com julgamentos e sentenças a posteriori. Como tenho muito de racionalista, acredito que na
morte tudo se apaga. Ainda que os activos e passivos sejam transmissíveis aos
vindouros, algumas dívidas devem ser perdoadas. Sobretudo algumas ofensas ou
palavras menos boas que, a seu tempo, nos feriram. Somos todos falíveis.
Erramos a todo o momento e não me venham cá com superioridades comportamentais.
E quem não absolver o próximo não se perdoará nunca e, enquanto andar por cá,
será sempre uma pessoa azeda, intratável e que implica um razoável distanciamento
na coexistência pacífica que deve nortear esta passagem a que chamamos de vida.
Tenho para mim que o ódio, no pior, e o perdão no melhor, são paradigmas nos
sentimentos da humanidade. Quero dizer, portanto, que a crónica final que
escrevo sobre alguém que morre não é um ajuste de contas. É simplesmente um
resumido aplauso a uma pessoa que esteve entre nós e, à sua maneira,
representou um papel na comunidade –como alguém já escreveu, afinal a sociedade
será um grande teatro onde cada um de
nós, no tempo de vida que lhe cabe, vai representando cenicamente a sua função.
Ora, a ser assim, o papel de bonzinho
não pode calhar a todos. Alguns terão de fazer de vilões e estes, mesmo em
discriminação positiva, merecem uma ovação. É assim, com este espírito, que me
entrego ao elogio fúnebre em geral.
Quando comecei este texto não era propriamente
isto que queria transmitir. Mas, para quem gosta de se expressar através das
palavras silenciosas, a escrita é assim como pensar em regar uma parte do jardim.
Quando damos por ela já estamos fora de controlo.
Agora sim, vou pegar na ideia que
me levou à primeira frase. Desde há sete anos que escrevo e fotografo praticamente
todos os dias. É um disparate mas, sem grande cuidado na catalogação, tenho
cerca de dez mil fotos de coisas e pessoas que passaram por aqui, pela Baixa da
cidade. Então quando esta semana soube da notícia da morte da minha vizinha Romy fui procurar uma sua fotografia –embora
ela fosse profundamente avessa a fotos, estava convencido que tinha uma pelo
menos. Se tenho, depois de passar mais de uma hora a procurar, não encontrei. A
que postei depois foi gentilmente cedida pelo filho Patrick -a quem aproveito
para agradecer. Ao “desfolhar” este
meu álbum virtual aconteceu uma coisa interessante: com uma tristeza
absorvente, tomei conta das dezenas e dezenas de pessoas que desapareceram das
nossas vistas. Umas, enquanto funcionárias, foram despedidas; outras, enquanto
comerciantes, encerraram os seus estabelecimentos; outras, ainda, morreram e
nunca mais voltarão ao nosso meio. Por exemplo, ao ver a imagem do finito “Manel”, da sapataria Reis e tal como ele também sumida, dá uma dor lancinante no
peito. É como sentir que, com o seu desaparecimento físico, estamos mais abandonados
e sozinhos. É como se, em metáfora, a nossa vida fosse um pavio a arder e, à
medida que envelhecemos e vemos cair os mais chegados, vai ficando cada vez mais
curto. É certo que a cidade, na nossa rua, no nosso largo, se renova com outras
gentes mas já não é igual. É como se com quem parte, com eles, fosse um pouco
de nós. É como se a nossa vida, em imbricamento, fosse também a deles. A
verdade, e por estranho que pareça, é que quando estão no nosso meio não lhe
damos grande valor. Pelo contrário até embirramos com minudências, com “coisinhas” que não têm o mínimo de
interesse.
Há uns anos, em conversa com uma viúva, ao tentar confortá-la com a perda do seu marido, dizia-me a mulher: “sabe uma coisa? O meu homem não era flor que se cheirasse nem carregado de perfume caro. Às vezes maltratava-me, chegando mesmo a bater-me. Acredita que chego a ter saudades de uma ou outra bofetada que ele me dava?”. Na altura, não disse nada e fiquei sempre a pensar naquelas frases aparentemente vazias de sentido vivencial. Num primeiro momento fui levado a reflectir que a mulher deveria ser masoquista. Hoje não! Agora entendo melhor o seu desabafo. Quem se vai, na grande viagem sem retorno, deixa um rasto de solidão inexplicável. Se é certo que em aforismo tudo e todos são substituíveis, na prática, na praxis do dia-a-dia, não é assim. Todos os que foram marcando a nossa existência deixam um rasgo profundo na memória. E não é certo que, até no genoma, somos feitos de todo um passado que se perde nos labirintos do tempo?
Há uns anos, em conversa com uma viúva, ao tentar confortá-la com a perda do seu marido, dizia-me a mulher: “sabe uma coisa? O meu homem não era flor que se cheirasse nem carregado de perfume caro. Às vezes maltratava-me, chegando mesmo a bater-me. Acredita que chego a ter saudades de uma ou outra bofetada que ele me dava?”. Na altura, não disse nada e fiquei sempre a pensar naquelas frases aparentemente vazias de sentido vivencial. Num primeiro momento fui levado a reflectir que a mulher deveria ser masoquista. Hoje não! Agora entendo melhor o seu desabafo. Quem se vai, na grande viagem sem retorno, deixa um rasto de solidão inexplicável. Se é certo que em aforismo tudo e todos são substituíveis, na prática, na praxis do dia-a-dia, não é assim. Todos os que foram marcando a nossa existência deixam um rasgo profundo na memória. E não é certo que, até no genoma, somos feitos de todo um passado que se perde nos labirintos do tempo?
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