(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
I
Há dias vi-o transpor a porta da minha loja.
Eu estava a falar com um cliente. Cumprimentámo-nos, e, rapidamente, depois de
um olhar intuitivo que a racionalidade não explica, eu disse: adivinho que
precisas de falar comigo. Agora estou ocupado. Vem um dia destes, vamos almoçar
e conversamos. E o João André –vamos tratá-lo assim- deu meia volta e foi-se à
vida. O João, de 33 anos, foi colega da minha filha. Ambos têm mais ou menos a
mesma idade. Nos tempos de estudantes na Universidade eram muito amigos e frequentou
a minha casa. O André é um rapaz alto, todo charmoso e do género em que uma
mulher volta o pescoço duas vezes para o rever.
Há dias, na sexta-feira 31 de
Maio, próximo da hora do almoço, sem se fazer anunciado, mais uma vez transpôs
a porta e, na sua voz pausada, mansa de ovelhinha
tresmalhada e abandonada, interrogou: “posso
ir almoçar consigo?”. Foi então que me fixei no João. Barba por aparar de
várias jornadas, em aspecto desleixado, de chinelos e com os pés muito sujos,
calças descosidas nos fundilhos e a ver-se as cuecas, uns tiques perfeitamente
notórios de alguém que está descompensado psiquicamente e um horrível cheiro
intenso, parecido com inalações de uma esterqueira, saído de um corpo que já não
sentiria água há muitos dias. Fomos almoçar ao pequeno snack onde vou diariamente contentar o estômago. Sentámo-nos na
pequena sala. Estou convencido que, para os donos da casa e para os clientes
presentes, o smel que invadiu o
pequeno estabelecimento foi a prenda negra de um dia que, especulei, já não seria
brilhante. Fiz de conta que o incomodativo odor era de um prado verde com
cheiro a jasmim. Reparei que o João comia sofregamente como alguém que já não
ingeria alimentos há uns tempos. Fomos conversando calmamente sem atropelos e
de modo a que ele não sentisse que eu estava a invadir a sua privacidade –sem
acreditar totalmente na reincarnação, estou convencido que noutra vida passada
eu teria sido psicólogo. Não exactamente assim chamado, porque o ramo da
ciência da mente e da alma tem escassas décadas, mas qualquer coisa parecido
com confidente e tratador de ânimos em desalinho. E o André, enquanto ora dobrava ora desdobrava o guardanapo compulsivamente, começou a falar: “sou do Alentejo; de uma típica localidade
alentejana, de casario baixo, caiado de branco e portadas a azul-cobalto. Depois
de saltar de trabalho em trabalho, arranjaram-me uma colocação na vila e sede
de concelho. Apaixonei-me por um médico, não me aceitaram, incluindo o meu pai,
que ameaçou matar-me, apertou-me a garganta –e levou a mão direita ao
pescoço. A minha mãe não se importou. Tem
medo dele. Ela só está na sua companhia pelo conforto financeiro que ele lhe dá.
Ela tem medo dele. Lembro-me de a minha mãe se ter tentado matar por duas
vezes, era eu ainda uma criança”. Em gestos exaustivos sem controlo, levava
a mão ao cabelo, olhava para o lado, sorria sem nexo de causalidade. Tragava a
comida com voracidade. Fez de uma côdea restante um guardanapo para limpar completamente o prato e deixá-lo a brilhar.
Despejou o molho sobrante sobre a peça vidrada, pediu mais pão e repetiu a
mesma operação, como se, através do quadro figurativo, lambesse o prato redondo
com os lábios sequiosos de comida.
Mais uma vez, recorrendo à
intuição, enfatizei: o teu pai foi
militar e não aceitou a tua homossexualidade… “Sim, foi da marinha”, respondeu. Enquanto tragava uma garfada do
delicioso bacalhau com natas, pensava neste estranho país que é o nosso.
Legaliza-se o aborto, homologa-se o casamento gay, aprova-se na Assembleia da
República a lei da adopção para casamentos do mesmo género. No entanto, no que
é básico, que é o apostar na educação, ensinando o respeito pelas diferenças de
cada um, na tolerância, contribuindo para a felicidade individual, não se faz
absolutamente nada. Continua-se a fazer
de conta, para o exterior, que somos uma nação modernaça, quando, de facto,
salvaguardando a excepção, somos um rebanho de pacóvios, rústicos, intolerantes
e defensores de uma masculinidade macho-latina, heterossexual, que nunca
existiu.
Continuava o João, “nunca mais quero ver o meu pai. Para mim,
ele não existe, morreu!” – o destino é cruel, pensava para mim em
solilóquio com os meus botões. Como se eu não soubesse bem, sentindo na pele,
as relações entre pai e filho. Entre os meus amigos, estou rodeado de casos
parecidos com o deste André. E sendo assim, se acaso não fosse imparcial, a
julgar numa leviandade notória, teria o direito de condenar este pai, assim sem
mais nem menos? Como não relevar a sua frustração? Como não entender que,
certamente num esforço sem precedentes, deu tudo a este filho,
proporcionando-lhe instrumentos, através de um curso universitário, para que
fosse uma pessoa realizada, respeitável e com família? E o que recebeu em troca?
Um alcoólico, um pródigo, que não liga nada, e não dá valor, ao que lhe cai no
regaço sem esforço. Para piorar, sendo de uma aldeia pequena do Alentejo, onde
todos falam da homossexualidade, com desdém, chamando aos diferentes paneleiros, como aceitar um filho assim?
É fácil? É sim, desde que o primogénito seja do nosso vizinho. Felizes daqueles
pais que têm herdeiros certinhos, pensava eu enquanto o João emborcava mais um copo
de tinto.
Ao menos, posso ligar à tua mãe? Interroguei. Na afirmativa, deu-me
o contacto. Mas precisas de ajuda
urgente, João –continuei. Não sei se
sabes mas existe a linha 144, é um programa de assistência de emergência
social. Aceitas ir comigo à esquadra da PSP? Liga-se a pedir ajuda imediata,
pelo menos para tomares banho e te darem uma roupa lavada. Aceitas? Aceitou.
E fomos para a polícia.
II
Junto à porta
de armas da esquadra falei com o agente que estava na triagem. No princípio
olhou-nos com alguma desconfiança e secura na voz. Como o João se afastou, lá
lhe expliquei a emergência da situação e o guarda, mais ou menos da minha
idade, apesar da máscara de indiferença, quase certo já ter chorado em silêncio
sobre quadros de solidão análogos, passou para o meu lado e disponibilizou-se a
colaborar. Do meu telemóvel, liguei o número telefónico do 144. Imediatamente
recebi uma mensagem gravada: “bem-vindo à
linha nacional de emergência social. Por favor aguarde!”. Durante alguns
minutos, esperei ao som de música de fundo.
Veio a técnica e indagou em perguntas sem fim. Lá fui desenrolando o
novelo, dentro do pouco que eu sabia e contando que, não sendo psiquiatra, era
notório que o rapaz estava profundamente perturbado. E a funcionária, entre interrupções
com música e mais perguntas, lá atirou: “o
senhor está então na 2ª Esquadra de Coimbra? Pode passar ao agente que está ao
seu lado? E eu passei. Entre os dois ficou assente que, logo em seguida,
ligaria ao comandante do posto para que este mandasse transportar o André aos
serviços de emergência social em Coimbra. Confirmou-me isto mesmo depois de
falar com o cívico. Durante cerca de meia-hora aguardámos todos e da central de
emergência nacional nem um pio nem um sinal. Voltei a ligar. Agora era outra
colega. Lá fui dizendo o que tratámos com a sua camarada e a promessa de
contacto dela. “Mas o que é que se passa?
Interrogava esta senhora. E eu, já a ferver de impaciência, lá lhe voltei a
contar. Disse-lhe também que, em minha opinião, estes serviços, tendo em conta
o seu logótipo de ajuda social, não podem funcionar desta maneira, sendo
disfuncionais. Qual a razão da sua colega
não ter cumprido o prometido? Questionei. Respondeu a senhora que a comparte
entendeu melhor ligar primeiro para os serviços da Segurança Social. E eu, que estou aqui há quase uma hora,
porque não me contactou, se tinha o número? Perguntei. E a senhora já com a
paciência esgotada, perante um chato como
eu, lá foi dizendo para aguardar que ia mesmo ligar ao chefe da esquadra. Desta
vez ligou. Uma hora depois, deixei o João na polícia à espera de ser
intervencionado.
III
Liguei à mãe e contei-lhe o que estava
acontecer com o filho e que, a meu ver, deveria tomar providências. Remeteu-me
para uma técnica de Serviço Social da Câmara Municipal do Concelho. Então mas não deveria ser a senhora a fazer
isso? Interroguei. A senhora é que é
mãe. Eu não sou nada ao João. Repliquei. Por entre um choro descontrolado,
lá disse a mulher: “por amor de Deus,
senhor, ligue a esta doutora. Eu não posso fazer nada”. E liguei à técnica
social. Esta explicou-me a situação. “Os
pais do André, fartos de uma situação sem fim à vista, tinham desistido do
filho. Para além disso, disse-me, o João estaria descompensado
psiquicamente, porque certamente não tomaria os medicamentos há vários dias, e,
com alguma urgência precisaria de ser accionado o internamento compulsivo –consignado
na alteração à Lei de Saúde Mental em 2010. Prometeu-me que contactaria os
serviços de Coimbra.
Passadas cerca de duas horas apareceu-me
o João já completamente diferente, asseado e, notoriamente, com outra
disposição, a dar-me um abraço e, no meio de uma lengalenga, a soletrar: “muito obrigado… muito obrigado.
Nunca me esquecerei!”
IV
Na segunda-feira, 3 de Junho, passados 3 dias,
recebi um telefonema do pai, “tinha aqui
este número de telefone, foi o senhor que ligou para a minha mulher, não foi?
Gostava de lhe dizer que tenho passado um martírio com este meu filho. Nem o
senhor imagina o que tem sido a minha vida. Agrediu-me e fez uma participação
no Ministério Público, aqui no Alentejo. Ele foi aí para Coimbra e levou um
carro. Teve aí um acidente. Já recebi a participação do sinistro. Agora não
sabemos onde é que ele abandonou a viatura. Não sei se o senhor sabe, mas já trouxeram
o André de ambulância! Mas sabe o que aconteceu? Os técnicos de saúde, chegaram
aqui e largaram-no. Ele assinou um termo de responsabilidade e, agora, descalço
percorre as ruas da cidade. Que mal fiz eu a Deus para merecer isto, senhor?”
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