terça-feira, 4 de junho de 2013

UMA ENTREVISTA, POR ACASO...


 Há cerca de vinte anos que frequento a Barbearia Santa Cruz, ali mesmo ao lado do café e da igreja de onde foi retirado o logótipo desta casa onde tudo se corta, desde cabelos a barbas e, às vezes, até nos políticos, ou não fossem estes salões de escanhoaria o berço de grandes planos futuros.
Sempre que entro aqui, normalmente para cortar o cabelo, acontecem duas coisas. Uma delas é como se fizesse uma viagem ao início de 1960, à minha aldeia, e ao recanto do “Zé Maria”, barbeiro. Como num filme a preto e branco, a rodar lentamente em imagens, revejo tudo ao pormenor. A outra é que, sentado numa das quatro cómodas cadeiras estilo António Pessoa, inevitavelmente adormeço sempre com o mestre a aparar-me os meus filamentos brancos. Lembro-me, há cerca de uma vintena de anos, de ver aqui uns cinco profissionais a trabalhar sem mãos a medir. Mesmo assim, precisávamos de aguardar em fila de espera. Hoje, acompanhando a decrepitude da Baixa de Coimbra, este velho salão, fundado em 1944, tem apenas dois técnicos a trabalhar, e nem sempre, conforme o pouco movimento exige. Uma destas pessoas, que prezo muito, pela sua finura de trato e extrema simpatia, e que, aposto, é muito mais velho do que parece, é o senhor José Lopes Coelho. Vamos ouvir o que tem para nos dizer:

“Embora não pareça –bem sei-, tenho 76 anos de idade. Nasci em 1937. Trabalhei muito, sabe? Muito mesmo! Desde que mal acabei a escola primária e até aos 19 anos, não ouve erva daninha nos campos do Mondego que não conhecesse as minhas mãos. Em 1956, para fugir aquela dureza calosa e desconforme, fui laborar, como aprendiz, para uma barbearia na Rua Direita. Foi lá que iniciei a arte de cabeleireiro de homens. Mas eu ganhava pouco e sonhava com uma vida melhor. Em 1964, com 27 anos, fui para França como clandestino. Durante um ano, sem papéis, trabalhei noite e dia na construção civil. Já legalizado, um ano depois, recomecei lá, nas terras de Obélix, na minha verdadeira profissão, esta a dos cabelos que ainda hoje persigo. Em 1983 regressei a Portugal e fiquei com a Barbearia Santa Cruz ao senhor Joaquim Lopes do Carmo, fundada em plena Segunda Guerra Mundial e a fazer, para o próximo ano, 70 anos de existência. Quando aqui comecei como patrão, nos idos anos de 1983, a Baixa era um motor de propulsão. Esta zona fervilhava de movimento. Não tinha nada a ver como está hoje. Sinto uma saudade enorme desse tempo. Cheguei a ter aqui, diariamente, 3 funcionários efectivos e dois eventuais. Era sempre a aviar. Não havia quase hora de almoço. Hoje, estamos apenas aqui duas pessoas: o Carlos, o meu empregado, e eu. Como vê, pelas cadeiras vazias, chegamos a ser de mais. Quero acreditar que, quando eu não puder estar cá e partir para o outro mundo, o salão continue aberto ao público, apesar de não ter seguidores na família. Olhe ali aquele quadro na parede –e aponta. Está a ver? É a prova da homenagem que a Associação de Cabeleireiros e Barbeiros de Lisboa me fizeram em 2006. Ainda que em simbologia, concederam-me a “Tesoura de Ouro” por 50 anos de actividade. Sinto-me orgulhoso, sabe?
Vejo a Baixa morta, sem movimento, sobretudo nas ruas estreitas. Estão muitas lojas fechadas. Apesar de tudo, aqui na calçada ainda se vê diariamente alguma passagem de transeuntes, mas não chega para manter as actividades comerciais e industriais abertas. Foi muito mau retirarem o trânsito a estas ruas! No meu entendimento, no mínimo, os transportes colectivos deveriam passar sempre. Não gosto destas obras que fizeram na Praça 8 de Maio, principalmente aquelas rampas que dividiu o largo a meio. A falta dos autocarros –as pessoas saíam aqui- contribuiu também para o estado endémico da Rua das Figueirinhas. Quem a viu e quem a vê agora! A agonia desta rua começou com a transferência do velho hospital e continuou com o sumiço da clientela do Mercado Municipal. A cidade é um conjunto e não pode viver isolada entre si. Se os citadinos não circularem entre todos os seus pólos, Celas, Conchada, Bairro Norton de Matos, Alta e Baixa, Coimbra fenece. Como é que esta zona pode subsistir? “Não há mal que sempre dure nem bem que não acabe”, diz o povo, mas neste caso da recuperação da Baixa… não sei! Apesar do meu cepticismo, ainda conservo esperança de que as coisas mudem. Sim, pode escrever: acredito no futuro desta área monumental.”

1 comentário:

JPG disse...

Um abraço ao Sr José!!!

Durante muitos anos (ainda puto) cortou-me o cabelo e trocou conversas interessantes. Que saudades!!!

Além dele, muitos outros, como o Sr Ulisses (espero não estar enganado no nome) e outro Sr mais baixo, de bigode e voz rouca, além de dois jovens que protagonizaram um incidente fatídico...

Sempre bons momentos, mesmo na espera, conseguiam manter os clientes bem dispostos, qualquer que fosse a sua idade (recordo que eu teria menos de 15 anos).

Profissionais a 100%.

De novo, que saudades!!!

Abraço!