É quarta-feira, dia 12.
Pouco passava das 20 horas. No Largo do Romal começaram as populares fogueiras
de São João. O sol, espalhando sombras num entardecer de generosidade divina,
vai-se preparando para se pôr no horizonte. Como trepador a subir a montanha, o
brilho do astro-rei, paulatinamente, vai subindo cada vez mais alto na torre da
Igreja de São Bartolomeu, ali mesmo ao lado.
No recanto mais típico da Baixa, com mais de cem anos de historial de fogueiras mandadas por alturas dos santos populares, as cerca de vinte mesas, pertencentes às duas tabernas existentes no pitoresco local, espalhadas por metade do terreiro, estavam praticamente completas de todos as cores e quadrantes, social, político e religioso. O prato mais pedido era o das sardinhas assadas com pimentos.
Com ar descontraído, “à civil”, estava um agente da PSP que diariamente patrulha estas ruas estreitas; embora fora de serviço, mas polícia não desliga, e, como tal, sempre a varrer o ambiente. A verdade é que ali respirava-se paz, concórdia, e tolerância com todos os credos e profissões.
No recanto mais típico da Baixa, com mais de cem anos de historial de fogueiras mandadas por alturas dos santos populares, as cerca de vinte mesas, pertencentes às duas tabernas existentes no pitoresco local, espalhadas por metade do terreiro, estavam praticamente completas de todos as cores e quadrantes, social, político e religioso. O prato mais pedido era o das sardinhas assadas com pimentos.
Com ar descontraído, “à civil”, estava um agente da PSP que diariamente patrulha estas ruas estreitas; embora fora de serviço, mas polícia não desliga, e, como tal, sempre a varrer o ambiente. A verdade é que ali respirava-se paz, concórdia, e tolerância com todos os credos e profissões.
Numa mesa mais ao centro, a
conviver com amigos, estava o Manel,
que, há vários anos, nunca perde uma alegoria destas. Estão ali as suas
reminiscências. Nos idos anos de 1970 trabalhou ali mais de uma década numa
antiga firma de electricidade, hoje, já desaparecida.
No lado esquerdo, em pé, a beber uma cerveja e a conversar com o Bruno, está o Naifas, o cigano, perfeitamente inserido neste ambiente multi-cultural.
No lado direito, como farol em dia de nevoeiro a romper a imensidão, o Emplastro, com o cabelo empastado em brilhantina, varria tudo em redor à procura de uma garina que lhe servisse de porto de abrigo.
Para trás e para diante, a coxear, o pintor Isaías, com as calças todas sarapintadas de tinta, ensaiava uma abordagem a uma virgem quarentona.
Descomplexados, prontos a curtir o som da orquestra, o Jacinto e o Anacleto, cabo-verdianos, de cor de pele achocolatada, com chapéu de palha na cabeça, irão mostrar como se dança verdadeiramente uma morna caliente.
Numa mesa de canto, a Lurdinhas, à espera de um prato de sardinhas, trocava um olhar de enleio com a sua companheira, ao mesmo tempo que, sub-repticiamente, não fosse alguém ver, lhe afagava uma das papudas mãos.
Bateram as 22 horas. O conjunto contratado pela Junta de Freguesia de São Bartolomeu, numa réplica de Tony Carreira, deu início ao bailarico.
A menina Etelvina, viúva dos pés à cabeça, abriu o salsifré a dançar com a dona Estefânia. Ao lado, o Xico, polidor de esquinas de profissão, com uma grande porca no focinho, quase que embatia nestas pobres e inocentes almas, residentes numa ruela ali próximo. A roda começou a encher-se nas músicas convidativas de Emanuel e Quim Barreiros. Ao som da banda Mar & Samba, com o Toy e a sua inconfundível boina à Che na bateria, podia ver-se o Toino Manias a exibir-se, dançando sozinho. Mais ao lado, toda enroscada no seu querido, a Marquitas, que habitualmente a esta hora costuma estar a trabalhar na avenida, ali próximo, alugando o corpo a retalho e resguardando a alma, mas hoje, a entrar na noite de queima de todas as calorias, nem o seu melhor cliente a faria arrancar dali. Aliás, por causa das coisas, até desligou o telemóvel. Nesta noite de festa popular, o único que a vai ter nos braços é mesmo o seu Isquim, o seu bacano mais que tudo. É o amor da sua vida. Que pena às vezes se aborrecerem sobretudo quando ele está com a buba, esquinado, e lá vem um sopapo desnecessário do raio da besta do homem. Mas que se há-de fazer? Pensa a trabalhadora do turno da noite para si mesma. Ninguém é perfeito e há muito que deixou de acreditar na vinda do seu príncipe encantado montado num cavalo branco.
No lado esquerdo, em pé, a beber uma cerveja e a conversar com o Bruno, está o Naifas, o cigano, perfeitamente inserido neste ambiente multi-cultural.
No lado direito, como farol em dia de nevoeiro a romper a imensidão, o Emplastro, com o cabelo empastado em brilhantina, varria tudo em redor à procura de uma garina que lhe servisse de porto de abrigo.
Para trás e para diante, a coxear, o pintor Isaías, com as calças todas sarapintadas de tinta, ensaiava uma abordagem a uma virgem quarentona.
Descomplexados, prontos a curtir o som da orquestra, o Jacinto e o Anacleto, cabo-verdianos, de cor de pele achocolatada, com chapéu de palha na cabeça, irão mostrar como se dança verdadeiramente uma morna caliente.
Numa mesa de canto, a Lurdinhas, à espera de um prato de sardinhas, trocava um olhar de enleio com a sua companheira, ao mesmo tempo que, sub-repticiamente, não fosse alguém ver, lhe afagava uma das papudas mãos.
Bateram as 22 horas. O conjunto contratado pela Junta de Freguesia de São Bartolomeu, numa réplica de Tony Carreira, deu início ao bailarico.
A menina Etelvina, viúva dos pés à cabeça, abriu o salsifré a dançar com a dona Estefânia. Ao lado, o Xico, polidor de esquinas de profissão, com uma grande porca no focinho, quase que embatia nestas pobres e inocentes almas, residentes numa ruela ali próximo. A roda começou a encher-se nas músicas convidativas de Emanuel e Quim Barreiros. Ao som da banda Mar & Samba, com o Toy e a sua inconfundível boina à Che na bateria, podia ver-se o Toino Manias a exibir-se, dançando sozinho. Mais ao lado, toda enroscada no seu querido, a Marquitas, que habitualmente a esta hora costuma estar a trabalhar na avenida, ali próximo, alugando o corpo a retalho e resguardando a alma, mas hoje, a entrar na noite de queima de todas as calorias, nem o seu melhor cliente a faria arrancar dali. Aliás, por causa das coisas, até desligou o telemóvel. Nesta noite de festa popular, o único que a vai ter nos braços é mesmo o seu Isquim, o seu bacano mais que tudo. É o amor da sua vida. Que pena às vezes se aborrecerem sobretudo quando ele está com a buba, esquinado, e lá vem um sopapo desnecessário do raio da besta do homem. Mas que se há-de fazer? Pensa a trabalhadora do turno da noite para si mesma. Ninguém é perfeito e há muito que deixou de acreditar na vinda do seu príncipe encantado montado num cavalo branco.
Por cima dos pares de dançarinos,
as bandeiras de papel mostravam querer imitá-los e pareciam também bailar em
fustigo de uma aragem mais afoita.
O vinho, robusto e bem encorpado, misturado com o cheiro a sardinha assada, corria a rodos pelas largas dezenas de gargantas sequiosas. E vieram as 23 horas.
Como de costume, e legitimamente, Carlos Clemente, o presidente da Junta de Freguesia de São Bartolomeu, o obreiro e continuador destas fogueiras que têm mais de um século, a queimar os últimos cartuchos, em fim de mandato pela representação dos fregueses e extinção da freguesia, no meio do improvisado palco, interrompendo a sequência de músicas portuguesas, disse: “Boa noite. Muito obrigado por terem vindo. Valeu a pena vir à Baixa e ao Largo do Romal. É um trabalho de quatro pessoas, que nos honra trabalhar para Coimbra e, em particular, para a Baixa. Às 01H30 acaba! Os meus pedidos de desculpa para os moradores mas é por uma boa causa”.
Nas muitas janelas em volta do largo apenas uma mostrava vida, emoldurada com uma senhora de rugas avançadas. Todas as outras fenetres estavam envoltas em silêncio de sepulcro.
A festa continuou com a cantiga popular “Bairro Alto com seus amores tão delicados”, e, mais uma vez, a Fany, toda apertadinha das coxas até aos seios, num repente de solavanco, puxou para junto de si o Evaristo, mais conhecido por sorrisos, que, por acaso, estava mesmo contente, não se sabe se pelo calor emanado do corpo da Fany se dos vapores etílicos do carrascão sangue de Cristo.
O vinho, robusto e bem encorpado, misturado com o cheiro a sardinha assada, corria a rodos pelas largas dezenas de gargantas sequiosas. E vieram as 23 horas.
Como de costume, e legitimamente, Carlos Clemente, o presidente da Junta de Freguesia de São Bartolomeu, o obreiro e continuador destas fogueiras que têm mais de um século, a queimar os últimos cartuchos, em fim de mandato pela representação dos fregueses e extinção da freguesia, no meio do improvisado palco, interrompendo a sequência de músicas portuguesas, disse: “Boa noite. Muito obrigado por terem vindo. Valeu a pena vir à Baixa e ao Largo do Romal. É um trabalho de quatro pessoas, que nos honra trabalhar para Coimbra e, em particular, para a Baixa. Às 01H30 acaba! Os meus pedidos de desculpa para os moradores mas é por uma boa causa”.
Nas muitas janelas em volta do largo apenas uma mostrava vida, emoldurada com uma senhora de rugas avançadas. Todas as outras fenetres estavam envoltas em silêncio de sepulcro.
A festa continuou com a cantiga popular “Bairro Alto com seus amores tão delicados”, e, mais uma vez, a Fany, toda apertadinha das coxas até aos seios, num repente de solavanco, puxou para junto de si o Evaristo, mais conhecido por sorrisos, que, por acaso, estava mesmo contente, não se sabe se pelo calor emanado do corpo da Fany se dos vapores etílicos do carrascão sangue de Cristo.
Este ano, tal como em anos
anteriores e sem fim de reinado à vista, o rei da dança foi o Jorge,
acompanhado da Andreia. A imitarem Richard
Gere e Jennifer Lopes, no filme Dança Comigo, naquele terreiro de
calçada portuguesa, pareciam anjos de algodão
a voar em céu azul. Também repetindo o ano passado, Barbosa de Melo,
acompanhado pela simpática esposa, picou
o ponto. Como a dizer aos presentes que, embora da mesma cor partidária do
antecessor, era fermento de outra massa,
o candidato pela Coligação por Coimbra espalhou charme no encantador Romal.
O mandador improvisado das marchas, que este ano substituiu o histórico
Carlos Mendes, como pavão, levantou o pescoço, sacudiu os ombros, ajeitou a
camisa, e subiu ao palco. A próxima meia hora era dele. Acompanhado pelas melodias de sempre, o homem lá ia
ordenando como podia aquele exército mal-amanhado, mas tudo tão ordeiro naquela
amálgama colectiva, através da dança e da música, como elos de interstícios
integradores, a contribuir para uma Baixa que, apesar do pessimismo presente,
se anseia próspera e melhor.
2 comentários:
Linda a maneira como retrata estas fogueiras da Baixa. Quase se imagina um quadro colorido de pintor de fama.
Obrigada por esta maravilhosa descrição
Muito obrigada pela generosidade. Volte sempre. Bem-haja
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