LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Para além do texto "PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE...QUÊ?", deixo também as crónicas "O ÚLTIMO REGRESSO"; "A MORTE COMO FINAL FELIZ"; REFLEXÃO: A PRIMEIRA ESPERANÇA"; e "VIDAS ERRANTES (1)"
PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE… QUÊ?
Depois de um trabalho árduo e
exemplar, resultado de várias personalidades envolvidas no processo, no último
sábado, a Universidade e a Rua da Sofia, na cidade, foram classificadas como
Património Universal da Humanidade pela Unesco –a Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura é uma entidade internacional que,
através da classificação, busca a preservação e salvaguarda do património cultural,
material e imaterial, mediante o reconhecimento público mundial, cativando
milhões de visitantes e receitas turísticas para os sítios dos países
reconhecidos.
Enquanto decorreu esta
candidatura, Coimbra, na sua modorra costumeira, manteve-se adormecida,
apática, para esta alta distinção de consequências políticas, sociais e
económicas. Depois do ato declarativo já ser conhecido de todos os citadinos,
talvez fosse bom ouvir um comerciante com loja na Rua da Sofia. Chama-se Alípio
Mendes Pereira. Tem 69 anos de idade e está na rua dos antigos colégios há mais
de meio-século. Gerente da Retrosaria
Mendes, coloquei-lhe a pergunta de chofre: o que significa para si esta
distinção? É boa? É má? Ou assim, assim?
“Se lhe respondesse de uma forma objetiva, e até do “politicamente
correto”, diria que sim, que era boa. Porém, como lhe disse, tenho 69
primaveras e se, por um lado, a idade nos torna mais sábios, por outro,
atribui-nos uma responsabilidade manifestada numa certa desconfiança, um ceticismo,
perante um dado adquirido. E assim sendo, se os procedimentos mudarem talvez seja
o caminho para a recuperação do património, público e privado, na Rua da Sofia –e,
apesar de alguma apreensão, tenho esperança de que assim vá acontecer. Se tudo
continuar como até aqui nem aquece nem arrefece. Vou contar-lhe a minha
experiência. Tenho um prédio virado para o Terreiro da Erva que quero
recuperar. Ando há um ano à volta do processo. Ainda está tudo no zero. Até
agora ainda não me disseram o que querem de uma forma clara, nem consegui perceber.
Há três entidades envolvidas e, entre si, não se entendem. Para piorar, na
última reunião, uma delas faltou. Diga-me lá, isto é alguma coisa? Isto não é
um desrespeito? Ou melhor, não há respeito nenhum! Assim, desta maneira, algum
particular pode restaurar o seu património? Eu já não tenho paciência e, por
isso mesmo, a minha filha é que tem acompanhado estas tentativas de acordo. Ela
é geógrafa em uma autarquia próxima, acompanhando de perto estes trabalhos, e
enfatiza comigo que nunca viu nada assim. Ela acha que eles não sabem o que querem.
Estas entidades continuam a viver o seu dia-a-dia, contrariamente ao que
deveriam ser, proactivos, desempenham um lugar de impedimento, sem se
importarem nada com os privados. Devo esclarecer que não culpo o Departamento
de Urbanismo Câmara Municipal de Coimbra. Esta divisão está à espera da decisão
desta troika, que, até agora, não aparece. Devo salientar também que tenho
muito boa ideia do engenheiro Sidónio Simões. É um homem prático. Vejo bem que
tem vontade de resolver as coisas rapidamente mas não consegue porque, como
disse, as três entidades envolvidas nem atam nem desatam. Nesta recente
classificação da Rua da Sofia, se não houver outra forma célere de decidir, esta
dignidade pode vir complicar ainda mais. A Baixa, entre outros obstáculos, está
em quase completa ruína por causa destas situações. É muito fácil passar a
culpa para os proprietários mas eu sinto na pele o que se está a passar comigo
e sei bem que não é assim. Esta nomeação seria boa se abrangesse a Baixa toda.
Esta zona é um todo. Veja o que se passa na Rua Direita e vias circundantes.
Aquilo é um cancro com metástases à vista.
No tocante ao comércio local tradicional confesso que também não tenho
muita esperança de que vá melhorar. Se calhar irá ser bom para a hotelaria.
Isso sim! Mas oxalá eu esteja enganado e seja bom para todos!”
O ÚLTIMO REGRESSO
O Paolo Vasil é um músico de rua.
Toca acordeão junto ao Museu Municipal do Chiado. Para além disso, desde
Novembro, último, faz parte integrante da denominada Orquestra de Músicos de Rua de Coimbra. De rosto cheio de bonomia, trabalhador,
cumpridor da palavra dada, que se nega a estender a mão em humilhação sem dar
algo em contraprestação, este romeno de 63 anos, veio quebrar o estereótipo que
normalmente se inventariam todos os seus compatriotas.
Trabalhou no seu país-natal até
aos 53 anos. Para além de ali ter tido uma banda de baile, onde tocava nas
horas vagas como acordeonista, era empregado numa fábrica de utensílios
metálicos. Até ao dia em que foi dispensado como se fosse um ferro-velho sem
utilidade. Decorria o ano de 2003. Tinha de continuar a trabalhar para
sobreviver. Deixou a sua única filha na Roménia, pegou na mulher e rumou a
Portugal onde residiam uns familiares, em Coimbra. Agarrou-se ao que sabia
fazer: tocar acordeão. Andou pelo Sul do nosso país até que um acontecimento
trágico, em 2009, veio alterar todo o seu destino previamente concebido em
noites de solidão. Há quatro anos levou o maior sopapo que um pai pode levar: a
sua querida e única filha morreu de cancro na Roménia. Tudo fez para a salvar,
mesmo recorrendo a um empréstimo particular de uma vizinha no país de Nicolae Ceausescu. Pouco depois largou o
Sul e, conjuntamente com a esposa, veio para a cidade dos doutores morar para
casa dos consanguíneos. Para fazer face às despesas, desde essa altura, toca nas
ruas principais da calçada. Até agora, o que tem auferido, em moedas deixadas
no pequeno cesto pelos transeuntes, tem dado para viver. Nunca pediu ajuda à
Segurança Social. Nunca recebeu qualquer subsídio. Hoje está com imensos
problemas. O que ganha na rua já não dá para comer. Para piorar, está doente.
Sofre da Diabetes e tem graves problemas na Cervical. Passou este último
fim-de-semana no hospital. Acompanhado da mulher, veio ter comigo. Na sua
linguagem de português arranhado, como
andorinha abandonada, com rosto triste e resignado, entabulou: “Sinhor” Luís, preciso de ajuda. Quero
regressar à Roménia, mas não tenho dinheiro para as passagens. Para além disso,
precisava de, ao menos, poder amortizar a dívida lá com a minha vizinha. Sabe,
tenho vergonha na cara –e passa a mão no rosto. Se ao menos conseguisse uns 600 euros poderia entrar na minha rua de
cabeça erguida. Quero morrer lá. Aqui não posso mais continuar. Financeiramente
estamos a passar muito mal. Não consigo ganhar para comer e comprar
medicamentos. Animicamente, desde que a minha filha nos deixou, nunca mais
recuperei. Sinto-me morrer todos os dias. Pode fazer alguma coisa por mim,
“sinhor” Luís?”
A MORTE COMO FINAL FELIZ
Na semana passada, a vinte metros
da Praça Fausto Correia –outrora chamada Machado Assis-, na zona de Celas, em
Coimbra, uma senhora de 74 anos espetou uma faca no abdómen vindo a ser
encontrada por familiares numa poça de sangue e já sem vida. Em Fevereiro, a
uma dezena de metros desta praceta, também um meu amigo colocou termo à sua
existência. Segundo um residente próximo, nos últimos dois anos, 8 pessoas
recorreram ao suicídio num raio de uma centena de metros. Nenhum jornal da
cidade relatou a morte desta senhora.
A primeira questão que nos
ocorrerá é tentar perceber se a zona terá algo de fatídico. Penso que não.
Estes factos estão apenas associados à grave crise emocional que atravessa o
país. Lembrei-me de escrever sobre este caso ao ler que “o consumo de medicamentos antidepressivos disparou no último ano, revela o relatório da Primavera do Observatório Nacional dos Sistemas
de Saúde, apresentado esta terça-feira em Lisboa. "De facto, há um acentuar dos
problemas de saúde mental, normalmente muito associados ao desemprego. Está a
aumentar o consumo de antidepressivos e isto é um alerta, afirma
à Renascença a coordenadora do estudo, Ana Escoval.”
Outra questão pertinente é tentar
entender até que ponto, com o argumento de que o suicídio é desencadeado por
simpatia, os jornais, com esta segregação de notícias e na maioria dos casos
apresentando estas mortes como de causas desconhecidas, estarão ou não a
contribuir para falsos diagnósticos e diminuição de um alerta social que urge discutir.
Ou seja, com o argumento de que se deve proteger a coletividade para estímulos
de ordem simpática, que levem à imitação de procedimentos, até que ponto não
estará esta sonegação de notícias a evitar o debate público sobre uma saúde
mental cada vez mais precária?
Os cortes na saúde nos países desenvolvidos
e em vias de desenvolvimento estão a ser brutais. Ainda há pouco visionei um
vídeo da histeria de uma médica nas urgências no Rio de Janeiro perante o
excesso de trabalho da sua unidade hospitalar e, com centenas de pacientes em
fila de espera, em que o encerramento de outras periféricas era uma
constatação.
Depois de vinte anos de um
Serviço Nacional de Saúde quase excelente, em que a vida era colocada acima de
qualquer outro valor ou interesse, hoje assiste-se a uma degradação continuada
dos serviços públicos e em que cada vez mais a morte provocada, sendo uma
libertação das agruras existenciais, é um ato individual, pensado e escolhido, de
final feliz. Com os aumentos das taxas moderadoras e sem dinheiro para se
adquirir medicamentos, o suicídio é cada vez mais uma alternativa à saúde
primária dos portugueses. Talvez valha a pena pensar nisto.
REFLEXÃO: A PRIMEIRA ESPERANÇA
A recente classificação da Alta,
com incisão na Universidade, e Baixa, na Rua da Sofia, como Património
Universal da Humanidade, pela Unesco, foi uma lufada de ar fresco num
compartimento fétido e malcheiroso. No entanto, mais uma vez se verifica que,
tal como a tentativa de salvação das contas públicas, inevitavelmente como
fado, a solução vem de fora. Ressalvo que esta minha especulação não retira o
mérito a todos quantos trabalharam nesta candidatura. O que quero dizer é que a
sensação que nos aflui é que só se olha para as partes baixas quando alguém do
exterior nos vem chamar a atenção para a riqueza colossal que temos entre mãos
e não cuidamos devidamente, e, por isso mesmo, por estarem inoperacionais
precisam de atividade. É uma frustração sentir que, tal como a história nos
mostra, continuamos sem políticos de craveira, com olhos pequeninos, que olhem
para o horizonte tridimensional.
Esta distinção internacional,
para quem reside e trabalha na Baixa, apesar de algum ceticismo, constitui não
a última mas a primeira esperança de um futuro que se augura melhor.
VIDAS ERRANTES (2)
Junto à porta de armas da delegacia, falei com o agente que estava na
triagem. No princípio olhou-nos com alguma desconfiança e secura na voz. Como o
João se afastou, entre caminhares de coisa nenhuma, lá lhe expliquei a
emergência da situação e o guarda, mais ou menos da minha idade, apesar da
máscara de indiferença, quase certo já ter chorado em silêncio sobre quadros de
solidão análogos, intuí, passou para o meu lado e disponibilizou-se a
colaborar. Do meu telemóvel, liguei o número telefónico do 144. Imediatamente
recebi uma mensagem gravada: “bem-vindo à
linha nacional de emergência social. Por favor aguarde!”. Durante alguns
minutos, esperei ao som de música de fundo.
Através de voz, veio a técnica e indagou em perguntas sem fim. Lá fui
desenrolando o novelo, dentro do pouco que eu sabia e contando que, não sendo
psiquiatra, era notório que o rapaz estava profundamente perturbado. E a
funcionária, entre interrupções com música e mais perguntas, lá atirou: “o senhor está então na 2ª Esquadra de
Coimbra? Pode passar ao agente que está ao seu lado? E eu passei. Entre os
dois ficou assente que, logo em seguida, ligaria ao comandante do posto para
que este mandasse transportar o André aos serviços de emergência social em
Coimbra. Confirmou-me isto mesmo depois de falar com o cívico. Durante cerca de
meia hora aguardámos todos, e da central de emergência nacional nem um pio nem
um sinal. Voltei a ligar. Agora era outra colega. Lá fui dizendo o que tratámos
com a sua camarada e a promessa de contacto dela. “Mas o que é que se passa? Interrogava esta senhora. E eu, já a
ferver de impaciência, lá lhe voltei a contar. Disse-lhe também que, em minha
opinião, estes serviços, tendo em conta o seu logótipo de ajuda social, não podiam
funcionar desta maneira, sendo disfuncionais. Qual a razão da sua colega não ter cumprido o prometido?
Questionei. Respondeu a senhora que a comparte entendeu melhor ligar primeiro
para os serviços da Segurança Social. E
eu, que estou aqui há quase uma hora, porque não me contactou, se tinha o
número? Perguntei. E a senhora já com a paciência esgotada, perante um chato descarado como eu, lá foi dizendo
para aguardar que ia mesmo ligar ao chefe da esquadra. Desta vez ligou. Uma
hora depois, deixei o João na polícia à espera de ser intervencionado.
A seguir, liguei à mãe e contei-lhe o que estava acontecer
com o filho e que, a meu ver, deveria tomar providências. Remeteu-me para uma
técnica de Serviço Social da Câmara Municipal do Concelho. Então mas não deveria ser a senhora a fazer isso? Interroguei. A senhora é que é mãe. Eu não sou nada ao
João. Repliquei. Por entre um choro descontrolado, lá disse a mulher: “por amor de Deus, senhor, ligue a esta
doutora. Eu não posso fazer nada”. E liguei à técnica social. Esta
explicou-me a situação. “Os pais do
André, fartos de uma situação sem fim à vista, tinham desistido do filho. Para
além disso, disse-me, o João estaria descompensado psiquicamente, porque
certamente não tomaria os medicamentos há vários dias, e, com alguma urgência
precisaria de ser acionado o internamento compulsivo –consignado na alteração à
Lei de Saúde Mental em 2010. Prometeu-me que contactaria os serviços de
Coimbra.
Passadas cerca de duas horas
apareceu-me o João já completamente diferente, asseado e, notoriamente, com
outra disposição, a dar-me um abraço e, no meio de uma lengalenga, a soletrar: “muito obrigado… muito obrigado.
Nunca me esquecerei!”
Na segunda-feira, 3 de Junho, passados 3 dias,
recebi um telefonema do pai, “tinha aqui
este número de telefone, foi o senhor que ligou para a minha mulher, não foi?
Gostava de lhe dizer que tenho passado um martírio com este meu filho. Nem o
senhor imagina o que tem sido a minha vida. Agrediu-me e fez uma participação
no Ministério Público, aqui no Alentejo. Ele foi aí para Coimbra e levou um
carro. Teve aí um acidente. Já recebi a participação do sinistro. Agora não
sabemos onde é que ele abandonou a viatura. Não sei se o senhor sabe, mas já
trouxeram o André de ambulância! Mas sabe o que aconteceu? Os técnicos de
saúde, chegaram aqui e largaram-no. Ele assinou um termo de responsabilidade e,
agora, descalço percorre as ruas da cidade. Que mal fiz eu a Deus para merecer
isto, senhor?” (FIM)
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