(Imagem da Web)
Volta e meia vou lá almoçar. É um
pequeno restaurante na Baixa da cidade. Sempre que transponho a porta de
entrada vejo lá caras novas. Sem exagero, no último ano, teriam lá passado mais
de uma dezena de funcionárias. Sei que são enviadas pelo Instituto de Emprego e
Formação Profissional. Às vezes converso com o dono desta pequena casa de pasto –estranho nome, mas é mesmo
assim chamada, aceitável se entendermos que, intrinsecamente, somos animais em
busca de sustento. A diferença entre nós e os ruminantes é que estes limitam a
sua procura à comida e à satisfação sexual, nós, humanos, não. Para além destes
dois elementos, enquanto primado existencial de uma salvação terrena,
precisamos também de alimento espiritual. Queixa-se ele amiúde da falta de
profissionalismo e de outros problemas das suas subordinadas. Escuto-o com
atenção, mas, mentalmente, vou pesando na minha balança de ponderação as razões
que tornaram este sexagenário e profissional de hotelaria azedo, mal com o
mundo, cara de pedra, e de manifesta infelicidade. Para além dos impostos e
obrigações segregadores, paga uma renda altíssima pelo pequeno espaço e, para
piorar, é obrigado a levar preços extremamente baixos para conseguir captar
clientela. Não é preciso ser economista para saber que neste caso, se os custos
fixos são exagerados e os proveitos são incertos e de pouca margem de lucro, o
encerramento é o único final concreto e previsível.
É feriado, Dia de Portugal.
Reparo que há pouco movimento de clientes na zona onde está inserido. Os
restaurantes em volta, com as esplanadas a desafiar o apetite dos poucos
transeuntes, estão vazios. Os funcionários, olhando quem passa como se pedissem
ajuda para manter os seus postos de trabalho, parecem sentinelas de guarda a um
posto vazio e sem sentido de estar de pé.
Sento-me na mesa à espera de ser
atendido. Enquanto isso, aproveito para observar. Reparo que o gerente do
pequeno restaurante está prestes a despejar alguma da frustração que o consome
numa nova empregada, mais que certo ter entrado ao serviço por estes dias. É
uma mulher com cerca de meio século –mas apenas verificamos este facto depois
de um exame atento. Aparentemente parece ter cerca de trinta anos. Tem os
cabelos oxigenados, rosto miúdo, olhos vivos e emoldurados com uns óculos de
executiva, imbricado num corpo de boneca e uma vincada personalidade assente
numa experiência empírica. O dono da casa saiu disparado na sua direcção. Apesar
de ir a mais de cem à hora, ainda deu para ouvir as suas palavras carregadas de
azedume, em ensaio de ralhete atirou
as palavras como se brandisse um chicote: “então a menina não leva a conta ao
cliente? Está tirada desde que a pediu!”. A mulher, como ave acossada, ainda
experimentou uma reacção brusca mas, provavelmente e especulando, ter-se-ia
lembrado dos seus filhos com fome, da prestação da casa por pagar e do marido
desempregado, olhou para ele com olhar furibundo, encheu o peito de ar, acabou
a encolher os ombros e não deu troco. Mas o homem precisava de alguém que desse
luta para largar o rancor que consumia as suas entranhas, alguém que lhe
servisse de vazadouro para arcar com o desapontamento de ter votado no partido
do Governo, no desânimo de ter um país miserável e gramar uma política de terra
queimada, onde os novos se tornaram velhos por não terem utilidade e os
velhos, como cacos sem glória, não passam de memórias de um passado pouco
edificante. Virou-se para outra colega, ainda nova, e tratou de barafustar nem
sei o quê. A rapariga afastou-se, levou a mão aos olhos, como se tentasse
evitar mostrar fragilidade perante o agressor e conter uma lágrima
intempestiva, não viesse o pingo lacrimejante romper o acordo existente consigo
mesma tantas vezes martelado em noites de grande insónia. Como também ela não
ofereceu resistência o homem veio para dentro a tartamudear uma vaga de
impropérios.
Segundo o semanário Expresso, em Elvas, para comemorar o 10
de Junho, Dia de Portugal, num continuado vazio nacionalista, onde a questão
que se coloca é saber o que se comemora de facto, se é a manutenção de um
Estado ou o fim de uma Nação, o Presidente da República, Cavaco Silva, rejeitou
uma visão conflitual dos poderes presidenciais. Dizendo também “que o
contributo do chefe do Estado deve ser dado pela "positiva" e
rejeitou uma linha de actuação negativista e conflitual. Falando na cidade
alentejana, “Cavaco abordou longamente o problema da agricultura nacional,
precisamente para mostrar o lado positivo do país, rejeitando que a entrada de
Portugal na CEE tenha representado o declínio da agricultura e do mundo rural.”
Não perguntei, quer ao dono do
pequeno restaurante quer às funcionárias, se perceberam alguma coisa do que
disse o Presidente da República. Será de supor que não. É que uns e outros
vivem no mesmo país, mas em universos distintos. Uns são uns desgraçados,
chafurdando na lama para sobreviver e fazendo do sofrimento uma força, outros,
à custa de douradas reformas estatais, como Juno em nuvem alta, vivem em graça.
Haja pachorra, e uma elevada paciência
divina, para aguentar esta situação de profunda indignidade.
1 comentário:
Deixei de frequentar depois de o ano passado ter constatado que fica a dever depois de despedir. Está à altura daqueles em quem votou.
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