sexta-feira, 7 de junho de 2013

LEIA O DESPERTAR...



LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Para além  do texto "UMA ENTREVISTA, POR ACASO", deixo também as crónicas "BAIXA, CHORAI, CHORAI..."; "ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS"; e "UMA QUEDA APARATOSA NA CALÇADA".


UMA ENTREVISTA, POR ACASO…

Há cerca de vinte anos que frequento a Barbearia Santa Cruz, ali mesmo ao lado do café e da igreja de onde foi retirado o logótipo desta casa onde tudo se corta, desde cabelos a barbas e, às vezes, até nos políticos, ou não fossem estes salões de escanhoaria o berço de grandes planos futuros.
Sempre que entro aqui, normalmente para cortar o cabelo, acontecem duas coisas. Uma delas é como se fizesse uma viagem ao início de 1960, à minha aldeia, e ao recanto do “Zé Maria”, barbeiro. Como num filme a preto e branco, a rodar lentamente em imagens, revejo tudo ao pormenor. A outra é que, sentado numa das quatro cómodas cadeiras estilo António Pessoa, inevitavelmente adormeço sempre com o mestre a aparar-me os meus filamentos brancos. Lembro-me, há cerca de uma vintena de anos, de ver aqui uns cinco profissionais a trabalhar sem mãos a medir. Mesmo assim, precisávamos de aguardar em fila de espera. Hoje, acompanhando a decrepitude da Baixa de Coimbra, este velho salão, fundado em 1944, tem apenas dois técnicos a trabalhar, e nem sempre, conforme o pouco movimento exige. Uma destas pessoas, que prezo muito, pela sua finura de trato e extrema simpatia, e que, aposto, é muito mais velho do que parece, é o senhor José Lopes Coelho. Vamos ouvir o que tem para nos dizer:



“Embora não pareça –bem sei-, tenho 76 anos de idade. Nasci em 1937. Trabalhei muito, sabe? Muito mesmo! Desde que mal acabei a escola primária e até aos 19 anos, não ouve erva daninha nos campos do Mondego que não conhecesse as minhas mãos. Em 1956, para fugir aquela dureza calosa e desconforme, fui laborar, como aprendiz, para uma barbearia na Rua Direita. Foi lá que iniciei a arte de cabeleireiro de homens. Mas eu ganhava pouco e sonhava com uma vida melhor. Em 1964, com 27 anos, fui para França como clandestino. Durante um ano, sem papéis, trabalhei noite e dia na construção civil. Já legalizado, um ano depois, recomecei lá, nas terras de Obélix, na minha verdadeira profissão, esta a dos cabelos que ainda hoje persigo. Em 1983 regressei a Portugal e fiquei com a Barbearia Santa Cruz ao senhor Joaquim Lopes do Carmo, fundada em plena Segunda Guerra Mundial e a fazer, para o próximo ano, 70 anos de existência. Quando aqui comecei como patrão, nos idos anos de 1983, a Baixa era um motor de propulsão. Esta zona fervilhava de movimento. Não tinha nada a ver como está hoje. Sinto uma saudade enorme desse tempo. Cheguei a ter aqui, diariamente, 3 funcionários efetivos e dois eventuais. Era sempre a aviar. Não havia quase hora de almoço. Hoje, estamos apenas aqui duas pessoas: o Carlos, o meu empregado, e eu. Como vê, pelas cadeiras vazias, chegamos a ser de mais. Quero acreditar que, quando eu não puder estar cá e partir para o outro mundo, o salão continue aberto ao público, apesar de não ter seguidores na família. Olhe ali aquele quadro na parede –e aponta. Está a ver? É a prova da homenagem que a Associação de Cabeleireiros e Barbeiros de Lisboa me fez em 2006. Ainda que em simbologia, concedeu-me a “Tesoura de Ouro” por 50 anos de atividade. Sinto-me orgulhoso, sabe?
Vejo a Baixa morta, sem movimento, sobretudo nas ruas estreitas. Estão muitas lojas fechadas. Apesar de tudo, aqui na calçada ainda se vê diariamente alguma passagem de transeuntes, mas não chega para manter as atividades comerciais e industriais abertas. Foi muito mau retirarem o trânsito a estas ruas! No meu entendimento, no mínimo, os transportes coletivos deveriam passar sempre. Não gosto destas obras que fizeram na Praça 8 de Maio, principalmente aquelas rampas que dividiu o largo a meio. A falta dos autocarros –as pessoas saíam aqui- contribuiu também para o estado endémico da Rua das Figueirinhas. Quem a viu e quem a vê agora! A agonia desta rua começou com a transferência do velho hospital e continuou com o sumiço da clientela do Mercado Municipal. A cidade é um conjunto e não pode viver isolada entre si. Se os citadinos não circularem entre todos os seus polos, Celas, Conchada, Bairro Norton de Matos, Alta e Baixa, Coimbra fenece. Como é que esta zona pode subsistir? “Não há mal que sempre dure nem bem que não acabe”, diz o povo, mas neste caso da recuperação da Baixa… não sei! Apesar do meu ceticismo, ainda conservo esperança de que as coisas mudem. Sim, pode escrever: acredito no futuro desta área monumental.”


BAIXA, CHORAI, CHORAI…

 São 10h00 deste Sábado, 1 de junho. Na confluência, em forma de T, das Ruas Eduardo Coelho e Padeiras está a realizar-se um pequeno conclave. O tema chamado à colação, para análise, foi o facto de o Eduardo, com a retrosaria Edunor, na Rua das Padeiras, ter encerrado e já não abrir. De braços cruzados e rostos fechados, estão a Liliana, funcionária da sapataria Veludo Carmim, o filho de um empresário com o mesmo nome no ramo de sapatos, e o Luís Duarte, comerciante de adornos interiores e alegrias exteriores. No canto que faz esquina para o Largo da Freiria, o senhor Eduardo, o ceguinho, que, sem ver, apreende mais de olhos sem luz do que muitos visuais em grandes planos de perspetivas grandiloquentes, presidia à reunião e, na sua lengalenga chorada, chamava a atenção para a solenidade do momento: “uma moedinha, por amor de Deus, Senhor!”. Dizia a Liliana, “por este andar, vai tudo embora!”. O Luís Duarte, nitidamente preocupado, enfatizava: “porra! Mais uma que encerra! Já viram como vai ficar a Rua das Padeiras? Não tardará muito fecho também. Estou a fazer o quê aqui? Isto está desanimador!”. Proclama o filho do comerciante de sapatos: “e o café também não abriu hoje. É dia primeiro de junho, não acham estranho?”. E o ceguinho, impávido e sereno, tentando pôr ordem na desordem mental e no pessimismo dos participantes, repetia: “tenham dó e caridade de dar uma moeda para quem não vê a luz do dia, senhor!”
Lá no alto, no beiral, um casal de pombos, olhando ora para um lado ora para outro das duas ruas e certamente vendo o pouco movimento de transeuntes, parecia estar sorumbático. O prédio da antiga Topal e agora Veludo Carmim, como farol de uma imensidão oceanográfica que já foi cruzamento de navios perdidos no horizonte, parecia apático e não manifestava opinião. A meia altura, um candeeiro, outrora reluzente e agora muito sujo, como vadio andrajoso, olhava para baixo e via um homem passar com um pequeno carro de duas rodas a transportar os restos, em manequins esquartejados como espojos de guerra, de uma loja que, durante mais de uma década, foi luz, a boutique Romy, e há dias encerrou também. Mais ao lado, o Filipe, como a representar o estado a que chegou a Baixa de Coimbra, com um estabelecimento de pijamas e outros artigos de conforto físico e que espera também a machadada final para acabar de vez com um sonho que se tornou pesadelo, em gestos repetidos e quase obsessivos, parece amassar as duas mãos, rodando-as em torno uma da outra, e complementando o quadro com uma cara sisuda. Uns passos mais à frente, no Largo do Poço, quase em competição por um público que não há e umas moedas que prometeram mas não aparecem, estão o Luís Cortês, a tocar órgão e a cantarolar “Coimbra é uma lição, de tristeza e solidão…”, e um pequeno grupo de senhoras aquecem as vozes, mais que certo para se atirarem a um qualquer “faducho” do desgraçadinho.
Alheio a toda esta perscrutação, o grafite na parede da sapataria Quirino com a frase em destaque “Crise” parece dizer tudo em apenas 5 letras.


ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS

 Quem, há dias, atravessou a Praça 8 de Maio à hora do almoço, se, em frente à Igreja de Santa Cruz, não se apercebeu de uma figura humana, hirta, pintada de branco como saída das trevas e das trovas do vento, certamente iria muito distraído. Quando alguém colocava uma moeda no pequeno cesto, de repente o largo era invadido por uma voz melodiosa, bem timbrada e afinada, de anjo, numa harmónica sinfonia celestial. Então vamos lá saber quem é esta imagem mitológica.
“Chamo-me Cláudia Santos. Tenho 24 anos, e sou desempregada ativante. Frequentei o conservatório na área de guitarra e estudei fotografia no ensino superior. Como estava sem nada fazer, reuni comigo os meus heterónimos de emergência, e, dando uma metafórica palmada em cima da mesa, um deles gritou: Cláudia, isto não pode continuar assim. Tens de te atirar à vida, rapariga. O que é que sabes fazer? Ali mesmo, tratei de inventariar os meus talentos. Tenho alguns. Fixei-me no canto. Eu sempre gostei de cantar, mas, por uma razão ou outra, nunca o consegui fazer. Foi assim que descobri que o poderia fazer. Afinal eu sou dona da minha vontade. É ou não é? Como tudo na vida, a primeira vez foi um pouco difícil. Agora já é para mim quase normal. Está correr muito bem. Por acharem a ideia muito original, as pessoas param e dão uma moeda para me ver e ouvir e eu sinto-me muito bem. Pressinto que estou a alegrar as ruas da cidade, a fazer algo de útil. Que acha o senhor da minha performance?”


UMA QUEDA APARATOSA NA CALÇADA

 Na semana passada, uma senhora de Brasfemes, quando passava no Largo do Poço, calcou uma pedra solta na calçada e estatelou-se ao comprido, magoando-se seriamente. Valeram-lhe alguns funcionários da Sapataria Caravela que, estendo-lhe a mão, ajudaram a levantá-la. Numa das suas pernas era visível uma mancha negra e um dos pulsos parecia quer crescer de inchaço. Um pouco combalida, lá foi dizendo: “sou uma doente oncológica. Bolas! Não sei como aconteceu isto. Porque não arranjam a calçada? Isto está um perigo! Olhe que fiz a “espargata”. Se calhar vou ter de ir ao hospital, sobretudo por causa do pulso –e tentava afagá-lo como se o braço fosse um passarinho.
De salientar que os pisos de quase todas as ruas está simplesmente deplorável. Por exemplo na Rua Sargento-mor, segundo as declarações de comerciantes, as quedas de transeuntes são diárias. A meio da artéria, em frente à loja da Lena, são visíveis duas crateras enormes; uma tampa de saneamento sem cobertura de pedra e um buracão no meio do solo.
Já que, pelos vistos, a autarquia não terá meios para reparar estes atentados à segurança, no mínimo, deveria sinalizar e declarar esta zona de “perigo para a saúde pública”. 


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