sábado, 24 de novembro de 2012

REFÉNS DO PROGRESSO

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)



 Por volta de meados do século XX, final de 1950 e começo de 1960, dentro dos meios disponíveis, o princípio era poupar para sobreviver. Tudo era aproveitado e reaproveitado para novas funções. Em muitas casas portuguesas, sobretudo nas aldeias, não havia água canalizada e a energia eléctrica, exceptuando na mercearia e taberna onde havia uma televisão e um aparelho de rádio, só imperavam em alguns lares. A água para consumo era apanhada na fonte natural de mina e para os usos comuns recorria-se à das chuvas. Era normal ver muitos bidons de folha junto aos beirais a recuperarem as goteiras de inverno. A iluminação era com recurso a um único lampião a petróleo.
A alimentação diária era incipiente. Em cardápio repetido, reinavam o carapau, o “chicharro” como vulgarmente era conhecido, e o bacalhau, que eram vendidos pelo sardinheiro envolvido em sal e em caixas de madeira, um dia por semana, numa carrinha de caixa-aberta. A carne, para além de uma rês que se matava no dia da festa anual da padroeira, só marcava presença enquanto durasse o “porquito” de matança e estendido ao longo do ano à custa do sal conservante na arca salgadeira e implantada na adega. O pão, de “bico”, raramente entrava num lar humilde. Predominavam a broa e o pão de centeio, cozidos no forno e depois de amassados na masseira acompanhados por umas rezas para a sua boa levedura pela matriarca da casa. Mas a rainha pantagruélica de todas as famílias era a frugal sopa de feijão, batata e couve. A única refeição completa do dia era a ceia, saboreada junto à lareira com fogo a crepitar, que se alongava na noite e muito para além do sol-posto. A roupa que se vestia era esticada no tempo e passada a ferro na vontade. Havia um único fato domingueiro e um par de sapatos, que duravam décadas e, muitas vezes, eram as farpelas de envolvimento na última viagem. O próprio funeral era do mais singelo possível. O único “luxo” necessário era um caixão sem grandes atributos decorativos e que numa “carreta” de quatro rodas, empurrada à força de braços, percorria a distância entre o lugarejo e o cemitério.
Depois do ensino primário, hoje básico, só tinha direito a prosseguir os estudos quem, com o seu rendimento, não fosse fundamental, ou pelo menos dispensável, para o sustento da prole. Não havia Serviço Nacional de Saúde. Normalmente, o que valia às populações era terem sempre na sede de concelho um “pai dos pobres”, que, a troco de nada e por bondade, distribuía consultas e remédios gratuitamente. Não havia reformas. Trabalhava-se até se aguentar fisicamente e poder corresponder para as despesas familiares. Os velhos, para além de serem o esteio, nasciam e morriam no teatro de guerra onde sempre viveram e lutaram. Do ponto de vista do bem-estar e da dignidade humana, eram bons tempos que hoje possamos recordar com saudade? Com certeza que não.
E veio o 25 de Abril de 1974. Depois da Constituinte, nasceu a nova Constituição assente nos Direitos Humanos, com génese na Revolução Francesa, de 1789, com base nos primados Liberdade, Igualdade e Fraternidade, e Bolchevique, de 1917, doutrinada no princípio de que, perante o Estado, todos somos pessoas iguais independentemente do que produzimos. E nasceu um novo homem, reivindicativo e interventivo, em corte total com o “espécime” passivo e subjugado do anterior regime. Revolucionou-se tudo, desde os costumes aos valores, que, por inerência e na sua dinâmica, andam sempre de braço dado. O bem-estar, na comparação com o período antecedente, para bem de todos, alterou-se profundamente. Abraçámos o progresso e substituímos os velhos candeeiros a petróleo por modernos lustres, eléctricos, de meia-dúzia de lâmpadas. De 1974 até meados da década seguinte, com grandes atropelos constitucionais, em completo desrespeito pelo cidadão, recorrendo a saneamentos políticos, e pela propriedade pública e privada, assistiu-se a nacionalizações sem regra e a expropriações selvagens. Aparentemente, tudo em nome do abolir de assimetrias entre ricos e pobres. Nesta década recebemos o FMI e vimos os juros bancários subirem a 38 por cento e a serem postecipados, descontados à cabeça.
Veio a assinatura do contrato de adesão à então CEE, Comunidade Económica Europeia, em 1986, e passaram a entrar milhões em subsídios. Aumentou o rendimento disponível das famílias. Resultado do acordo com a Europa, e também numa falsa ideia de desenvolvimento, fomos abandonando a agricultura, as pescas, a pecuária, a caça, enquanto meio alimentar e necessário às populações, e a mineração. Impávidos e serenos, assistimos ao êxodo das aldeias para as vilas e cidades. Os que teimaram em ficar foram aposentados compulsivamente. Numa década, de 1986 a 1996, devido a esta deslocalização, a oferta no comércio e na indústria hoteleira quadruplicou. O imobiliário, por causa da procura exacerbada e em crescendo, devido ao grande afluxo de dinheiro em circulação, hipervalorizou três vezes mais em relação ao seu preço real. O crédito bancário barato concorreu para a facilidade de acesso a todos os bens e todos nos transformamos em falsos ricos. Se a indústria pesada foi desmantelada imediatamente, a fábrica, desde a serração de madeiras, à telha e até aos têxteis, continuou a laborar. Largámos os cursos técnicos, de saber fazer, e apostámos na licenciatura em linha, sem ter o cuidado de avisar os jovens de que ter o canudo não é sinónimo de emprego.
Em Abril de 1994 Portugal subscreveu o acordo com a Organização Mundial de Comércio e progressivamente abriu completamente as fronteiras às importações mundiais. Aos poucos, desde essa data e até hoje, por força da impossibilidade de concorrer com produtos baratos, foram encerrando todas as unidades produtivas nacionais. No presente estamos com quase 20 por cento de desempregados. Por consequência, baixaram os rendimentos familiares, caiu a procura para níveis nunca vistos e há um reajustamento na oferta e no valor real de todos os bens, essencialmente no edificado. Estamos todos perante um novo paradigma: temos casa própria apetrechada com todas as comodidades, desde aquecimento central até 200 canais de televisão por cabo, temos vários carros parados na garagem e não temos meios para os manter. Mesmo querendo livrar-nos deles não há quem os compre. Estamos todos amarrados a este progresso.

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