(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Por volta de meados do século XX,
final de 1950 e começo de 1960, dentro dos meios disponíveis, o princípio
era poupar para sobreviver. Tudo era aproveitado e reaproveitado para novas
funções. Em muitas casas portuguesas, sobretudo nas aldeias, não havia água
canalizada e a energia eléctrica, exceptuando na mercearia e taberna onde havia
uma televisão e um aparelho de rádio, só imperavam em alguns lares. A água para
consumo era apanhada na fonte natural de mina e para os usos comuns recorria-se
à das chuvas. Era normal ver muitos bidons de folha junto aos beirais a
recuperarem as goteiras de inverno. A iluminação era com recurso a um único
lampião a petróleo.
A alimentação diária era incipiente.
Em cardápio repetido, reinavam o carapau, o “chicharro” como vulgarmente era
conhecido, e o bacalhau, que eram vendidos pelo sardinheiro envolvido em sal e
em caixas de madeira, um dia por semana, numa carrinha de caixa-aberta. A
carne, para além de uma rês que se matava no dia da festa anual da padroeira,
só marcava presença enquanto durasse o “porquito” de matança e estendido ao
longo do ano à custa do sal conservante na arca salgadeira e implantada na
adega. O pão, de “bico”, raramente entrava num lar humilde. Predominavam a broa
e o pão de centeio, cozidos no forno e depois de amassados na masseira
acompanhados por umas rezas para a sua boa levedura pela matriarca da casa. Mas
a rainha pantagruélica de todas as famílias era a frugal sopa de feijão,
batata e couve. A única refeição completa do dia era a ceia, saboreada junto
à lareira com fogo a crepitar, que se alongava na noite e muito para além do sol-posto. A roupa
que se vestia era esticada no tempo e passada a ferro na vontade. Havia um
único fato domingueiro e um par de sapatos, que duravam décadas e, muitas
vezes, eram as farpelas de envolvimento na última viagem. O próprio funeral era
do mais singelo possível. O único “luxo” necessário era um caixão sem grandes
atributos decorativos e que numa “carreta” de quatro rodas, empurrada à força
de braços, percorria a distância entre o lugarejo e o cemitério.
Depois do ensino primário, hoje
básico, só tinha direito a prosseguir os estudos quem, com o seu rendimento,
não fosse fundamental, ou pelo menos dispensável, para o sustento da prole. Não
havia Serviço Nacional de Saúde. Normalmente, o que valia às populações era
terem sempre na sede de concelho um “pai dos pobres”, que, a troco de nada e
por bondade, distribuía consultas e remédios gratuitamente. Não havia reformas.
Trabalhava-se até se aguentar fisicamente e poder corresponder para as despesas
familiares. Os velhos, para além de serem o esteio, nasciam e morriam no teatro
de guerra onde sempre viveram e lutaram. Do ponto de vista do bem-estar e da dignidade
humana, eram bons tempos que hoje possamos recordar com saudade? Com certeza
que não.
E veio o 25 de Abril de 1974. Depois
da Constituinte, nasceu a nova Constituição assente nos Direitos Humanos, com génese
na Revolução Francesa, de 1789, com base nos primados Liberdade, Igualdade e
Fraternidade, e Bolchevique, de 1917, doutrinada no princípio de que, perante o
Estado, todos somos pessoas iguais independentemente do que produzimos. E
nasceu um novo homem, reivindicativo e interventivo, em corte total com o “espécime”
passivo e subjugado do anterior regime. Revolucionou-se tudo, desde os costumes
aos valores, que, por inerência e na sua dinâmica, andam sempre de braço dado.
O bem-estar, na comparação com o período antecedente, para bem de todos,
alterou-se profundamente. Abraçámos o progresso e substituímos os velhos
candeeiros a petróleo por modernos lustres, eléctricos, de meia-dúzia de lâmpadas. De 1974
até meados da década seguinte, com grandes atropelos constitucionais, em
completo desrespeito pelo cidadão, recorrendo a saneamentos políticos, e pela propriedade pública e privada, assistiu-se a nacionalizações sem regra e a
expropriações selvagens. Aparentemente, tudo em nome do abolir de assimetrias
entre ricos e pobres. Nesta década recebemos o FMI e vimos os juros bancários
subirem a 38 por cento e a serem postecipados, descontados à cabeça.
Veio a assinatura do contrato de
adesão à então CEE, Comunidade Económica Europeia, em 1986, e passaram a entrar
milhões em subsídios. Aumentou o rendimento disponível das famílias. Resultado
do acordo com a Europa, e também numa falsa ideia de desenvolvimento, fomos
abandonando a agricultura, as pescas, a pecuária, a caça, enquanto meio
alimentar e necessário às populações, e a mineração. Impávidos e serenos, assistimos
ao êxodo das aldeias para as vilas e cidades. Os que teimaram em ficar foram
aposentados compulsivamente. Numa década, de 1986 a 1996, devido a esta
deslocalização, a oferta no comércio e na indústria hoteleira quadruplicou. O
imobiliário, por causa da procura exacerbada e em crescendo, devido ao grande
afluxo de dinheiro em circulação, hipervalorizou três vezes mais em relação ao
seu preço real. O crédito bancário barato concorreu para a facilidade de acesso
a todos os bens e todos nos transformamos em falsos ricos. Se a indústria
pesada foi desmantelada imediatamente, a fábrica, desde a serração de madeiras, à telha e
até aos têxteis, continuou a laborar. Largámos os cursos técnicos, de saber
fazer, e apostámos na licenciatura em linha, sem ter o cuidado de avisar os
jovens de que ter o canudo não é sinónimo de emprego.
Em Abril de 1994 Portugal
subscreveu o acordo com a Organização Mundial de Comércio e progressivamente
abriu completamente as fronteiras às importações mundiais. Aos poucos, desde
essa data e até hoje, por força da impossibilidade de concorrer com produtos
baratos, foram encerrando todas as unidades produtivas nacionais. No presente
estamos com quase 20 por cento de desempregados. Por consequência, baixaram os
rendimentos familiares, caiu a procura para níveis nunca vistos e há um
reajustamento na oferta e no valor real de todos os bens, essencialmente no
edificado. Estamos todos perante um novo paradigma: temos casa própria
apetrechada com todas as comodidades, desde aquecimento central até 200 canais
de televisão por cabo, temos vários carros parados na garagem e não temos meios
para os manter. Mesmo querendo livrar-nos deles não há quem os compre. Estamos todos
amarrados a este progresso.
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