(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Passando a imodéstia, volta e meia sou contactado pelos canais privados de televisão para colaboração. A semana passada fui solicitado por Ana Sofia, do programa "Querida Júlia, da SIC, para tentar persuadir um viúvo da cidade a falar da saudade do seu amor desaparecido. Seria para realizar este programa de ontem. Contactei vários mas não consegui convencer nenhum. Foi uma boa experiência porque não imaginava que os homens eram muito mais resistentes à dor em relação às mulheres. Foi assim que escrevi este texto:
O VIÚVO QUE QUEBROU A REGRA
Aquele homem alto, garboso e de
personalidade bem vincada nem parece o mesmo. Apesar dos seus oitenta anos, até
há um ano atrás parecia um pinheiro erecto e pronto a enfrentar todas as ameaças
possíveis e impossíveis que invadissem a mata de pináceos. Agora, na sua loja,
numa rua estreita da cidade, arrasta-se de ombros caídos, como se crescessem
ombreiras e faltasse corpo, olheiras negras e olhos vermelhos, como se o chorar
copiosamente passasse da excepção à regra, e face macilenta cor de defunto.
A sua esposa morreu há cerca de
um ano atrás. Foi o fim de uma relação de seis décadas a dois. Foi o epílogo de
uma história de amor muito feliz. Nada a substitui, tudo a faz lembrar, nada a
traz de volta. O tempo, no seu correr de rotineira loucura, é implacável e,
perseguindo sabe-se lá o quê, não olha a meios, à dor e ao sofrimento, para
atingir os fins, derradeiro e último dia do calendário existencial de cada um
que vai tombando.
Quando lhe pergunto como vai
andando, as lágrimas, como se estivessem presas por fios invisíveis e prontos a
ceder pelo cansaço, irrompem pelo rosto abaixo, como chuva repentina de verão
em terra sequiosa. “Vou mal. Muito mal! Foram sessenta anos de vida em comum.
Entende? Durante o dia, como estou ocupado, até vou aguentando. O pior é à
noite. O vazio do silêncio ser quebrado pelo barulho imperceptível de um móvel,
na madeira a ceder em “traque” de estalido, e olhar, ansiosamente, pensando que
ela está ali. Mas não está. O espaço visual continua desabitado. Só eu e os
objectos em redor teimamos em lembrar a sua memória. Levanto os olhos para a
fotografia que me enche o coração e ela, fixamente, olha para mim, como se a
interrogar da razão deste quebrar de regra. Porque não fui eu primeiro? Porque
fiquei eu a penar neste padecimento indescritível? E quando vou para a cama e
dou por mim a estender o braço, num abraço esvaziado, e o recolho lentamente
tomando consciência do meu hábito repetido de décadas? Ali está o cheiro dela,
o odor materializado que tenho sempre presente nas minhas narinas e que nunca
esqueço. Só quem passa por esta amargura sabe e sente a tristeza que me envolve
o coração. Tanto trabalhei, noite e dia, desalmadamente em busca de um futuro
melhor. Hoje, de bom grado, daria tudo, toda a minha riqueza e até a minha
vida, para a ter de volta. Estranho esta forma de viver. Não acha?
Tal como você diz, bem sei que me
deveria afastar de todas as recordações que me transportam ao reavivar do
sofrimento. Mas, e conseguir? Como posso eu deixar de a visitar duas vezes por
semana no cemitério? Talvez você não entenda, mas ali, envolvida pela terra, eu
sei que ela está lá fisicamente… ou o que resta dela. Da minha querida. Do meu
amor! Você consegue imaginar a mágoa que sinto aqui no peito? Não consegue!
Este pesar há-de ir comigo para a cova, qualquer dia, em que finalmente nos
iremos reencontrar. Acredita que chego a pensar nisso e desejar a morte? Só
agora sei que ela era o sustentáculo da minha vida, o vento que tocava as velas
do frémito da minha existência. Se calhar é tarde para o reconhecer, o que lhe
parece? Sempre me tive na conta de homem insensível à dor e que não chorava.
Veja bem no que me transformei: numa criança que lacrimeja por tudo e por nada.
Nada me satisfaz. Já nada me dá prazer viver. Não precisa de me dizer que estou
deprimido eu sei… aliás, o psicólogo que me acompanha diz exactamente isso
mesmo. Mas que quer? Eu perdi uma parte de mim. A minha segunda alma!”
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