Hoje tive duas passagens que me
colocam todo eriçado e me transformam no animal que normalmente não sou. No meu
dia-a-dia sou um tipo pacato, diria até simplório. Sou simpático por condição.
Mas, tenho a certeza, se o não fosse intrinsecamente seria por obrigação. Acho
que qualquer um de nós, independentemente do estatuto e do lugar profissional
que ocupe na sociedade, tem o dever de olhar para o semelhante com algum
carinho. Isto é, a fazer sentir ao outro que somos feitos da mesma massa. Uns,
pelas circunstâncias da vida, porque nasceram em berços de pobreza ou riqueza,
não têm o direito de se manifestarem inferiores ou superiores. Odeio
solenemente quem se coloca em “bicos de pés” apenas por ser doutor. E isto acontece
muitas vezes. Eu sou um simples comerciante, orgulho-me do que faço, mas
poderia ter sido muita outra coisa se a vida me tivesse dado hipóteses. Não
deu. Estou "ressabiado" por isso? Não senhor. Não me incomoda nada. O que me
chateia deveras é verificar que diariamente há sempre alguém que coloca um pau
na roda, a mim e a outros da minha geração que sempre trabalhámos, como que a lembrar
de que não temos canudo como eles. E isso tira-me do sério. Por que a idade e
os escolhos de pedregulhos que passei dão-me um à vontade fantástico e falo
para qualquer “gato pintalgado” de igual modo como comunico com o “Carlitos
popó”. Claro que ter chegado a este estádio muito tem contribuído o facto de ter uma escrita "oralizada", conseguindo colocar em palavras o que me vai no pensamento e da mesma forma que falo. Ou seja, o que quero dizer é que pela circunstância
de me expressar facilmente através da escrita chego a todo o lado, e com o
tempo, fui ganhando confiança, uma calma e uma assertividade necessária.
Mas vamos lá contar o que me
aconteceu hoje. Logo de manhã, calhou-me na rifa um idiota de um advogado que,
no meio da conversa em que entabulámos, calhou eu empregar o “você”. Sem
qualquer ponta de respeito por mim atirou: “faça o favor de me tratar por
senhor. “Você” é estrebaria”. É lógico que ele não poderia adivinhar que me “passo
dos carretos” quando alguém me atira uma coisa destas às trombas. Tenho razões
que me levam a agir assim: há mais de trinta anos senti-me insignificante
perante um “escroque” que, com aquela admoestação, virtualmente me atirou para as pedras da
calçada. Nunca mais me esqueci. Está gravado a fogo na minha memória. Dizer
aquela frase, para mim, é ultrajante, é aviltante, e atenta contra a igualdade entre
pessoas. É óbvio, o “pobre homem”, porque é mesmo um presumido de um pobre
coitado, levou que contar. Depois de unhas em riste e assanhadas, e prontas a
entrar em acção de parte a parte, o “fidalgo” no fim até pediu desculpa. Mas
neguei-me terminantemente a fazer-lhe a vontade, aliás, ostensivamente, até fiz
pior e passei só a tratá-lo por você. Lá lhe fui explicando que a palavra “você”
é a contracção de “vossemecê” e “vossa mercê”, ambas de significado cerimonioso,
do povo para alguém de relevância social, e que caiu em desuso. Mas o "mastronço" é que não ia na minha conversa. Primeiro, por ser mais burro que o meu Silvano –que,
por acaso, de jumento só tem mesmo o nome- porque alguém da sua família outrora
nobre, mas hoje caída em desgraça, nunca lhe ensinou um pouco da nossa história
popular. Segundo, por estar convencido que agindo assim coloca em sentido todo
e qualquer opositor. Claro que ele não poderia adivinhar que me sinto ferido,
como espetado por lança afiada, quando alguém profere a sua afirmação. É lógico
que, em silogismo, ele dirá o mesmo. Mas eu não discrimino ninguém e o “cabeçudo”
estava a tentar elevar-se em frente à minha humilde pessoa. Ao longo da
conversa deu para ver que o “desgraçado” precisava mais de pena do que as “chibatadas
verbais” que lhe dei. Mas, enfim!
A outra coisa que me irrita
solenemente é a falta de palavra de alguém. Lá vem outra vez a experiência da
vida e os conselhos que me ficaram do meu pai. Era muito pobre mas agarrado a algumas convicções dentro do universo em que vivia. Algumas delas, à força de
tantas vezes serem repetidas, acabaram por ser tomadas por mim. O meu
progenitor, que não sabia ler nem escrever, quando era confrontado com a ideia
de que um determinado contrato deveria ser passado a escrito abespinhava-se
todo. Perante a minha chamada de atenção, pareço estar a vê-lo de indicador
junto ao meu nariz e proferir: “tu és tolo, rapaz! A palavra dada vale mais que
todo o dinheiro do mundo. Estás a ouvir bem? Quem falta à palavra dada não
presta para nada!”
Então, no meu dia-a-dia, estou
sempre a recordar a frase do meu pai. Naturalmente que já falhei muito ao longo
da minha vida mas tentei sempre retratar-me perante a pessoa, ou pessoas, com quem não cumpri. O curioso é que se eu desacertar um compromisso, posso até dizer
que fico doente. Fico inconsolável. É psicológico, eu sei! A minha família,
tantas vezes, não entende este meu “correr montes e vales” para poder honrar a palavra
dada. É lógico que quando alguém falha comigo fico “piurso”. Fico pior que uma “barata”.
E hoje duas pessoas não cumpriram o que se tinham comprometido. Uma delas nem é
importante. Mas outra, por ser um representante de uma instituição que deve dar
o exemplo à comunidade, é. E se não voltar atrás, isto é, repor o
contratualizado em palavra dada, vai dar barulho. Os cidadãos têm de saber e
conhecer as pessoas que gerem os seus destinos. Se não têm palavra não prestam
para nada, como dizia o meu pai. Aguardemos.
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