(Foto de Leonardo Braga Pinheiro)
Aquele homem alto, garboso e de
personalidade bem vincada nem parece o mesmo. Apesar dos seus oitenta anos, até
há um ano atrás parecia um pinheiro erecto e pronto a enfrentar todas as
ameaças possíveis e impossíveis que invadissem a mata de pináceos. Agora, na
sua loja, numa rua estreita da cidade, arrasta-se de ombros caídos, como se
crescessem ombreiras e faltasse corpo, olheiras negras e olhos vermelhos, como
se o chorar copiosamente passasse da excepção à regra, e face macilenta cor de
defunto.
A sua esposa morreu há cerca de
um ano atrás. Foi o fim de uma relação de seis décadas a dois. Foi o epílogo de
uma história de amor muito feliz. Nada a substitui, tudo a faz lembrar, nada a traz
de volta. O tempo, no seu correr de rotineira loucura, é implacável e, perseguindo
sabe-se lá o quê, não olha a meios, à dor e ao sofrimento, para atingir os fins,
derradeiro e último dia do calendário existencial de cada um que vai tombando.
Quando lhe pergunto como vai
andando, as lágrimas, como se estivessem presas por fios invisíveis e prontos a
ceder pelo cansaço, irrompem pelo rosto abaixo, como chuva repentina de verão em
terra sequiosa. “Vou mal. Muito mal! Foram sessenta anos de vida em comum. Entende?
Durante o dia, como estou ocupado, até vou andando. O pior é à noite. O vazio
do silêncio ser quebrado pelo barulho imperceptível de um móvel, na madeira a ceder em "traque", e olhar,
ansiosamente, pensando que ela está ali. Mas não está. O espaço visual continua
desabitado. Só eu e os objectos em redor teimamos em lembrar a sua memória.
Levanto os olhos para a fotografia que me enche o coração e ela, fixamente,
olha para mim, como se a interrogar da razão deste quebrar de regra. Porque não
fui eu primeiro? Porque fiquei eu a penar neste padecimento indescritível? E
quando vou para a cama e dou por mim a estender o braço, num abraço esvaziado,
e o recolho lentamente tomando consciência do meu hábito repetido de décadas?
Ali está o cheiro dela, o odor materializado que tenho sempre presente nas
minhas narinas e que nunca esqueço. Só quem passa por esta amargura sabe e
sente a tristeza que me envolve o coração. Tanto trabalhei, noite e dia, desalmadamente
em busca de um futuro melhor. Hoje, de bom grado, daria tudo, toda a minha riqueza e até a minha vida,
para a ter de volta. Estranho esta forma de viver. Não acha?
Tal como você diz, bem sei que me
deveria afastar de todas as recordações que me transportam ao reavivar do
sofrimento. Mas, e conseguir? Como posso eu deixar de a visitar duas vezes por
semana no cemitério? Talvez você não entenda, mas ali, envolvida pela terra, eu
sei que ela está lá fisicamente… ou o que resta dela. Da minha querida. Do meu amor!
Você consegue imaginar a mágoa que sinto aqui no peito? Não consegue! Este
pesar há-de ir comigo para a cova, qualquer dia, em que finalmente nos iremos reencontrar. Acredita que chego a pensar nisso e desejar a morte? Só agora sei que
ela era o sustentáculo da minha vida, o vento que tocava as velas do frémito da
minha existência. Se calhar é tarde para o reconhecer, o que lhe parece? Sempre
me tive na conta de homem insensível à dor e que não chorava. Veja bem no que
me transformei: numa criança que lacrimeja por tudo e por nada. Nada me satisfaz.
Já nada me dá prazer viver. Não precisa de me dizer que estou deprimido eu sei…
aliás, o psicólogo que me acompanha diz exactamente isso mesmo. Mas que quer?
Eu perdi uma parte de mim. A minha segunda alma!”
Sem comentários:
Enviar um comentário