LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Para além do texto "REFLEXÃO: QUE ESTADO É ESTE?", deixo também as crónicas "ARRUMADORES LEGAIS PEDEM AJUDA"; "UMA ORQUESTRA ESPECIAL NA BAIXA"; "OS PARABÉNS DA CLARA"; e "ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: "O MÚSICO ROMENO"
REFLEXÃO: QUE ESTADO É ESTE?
Na semana passada um comerciante
da Baixa de Coimbra, a braços com uma divida às Finanças embora a cumprir com
plano de pagamento, viu todo o dinheiro desaparecer da sua conta bancária.
Volto a sublinhar que, segundo as suas declarações, “embora a data de
vencimento do pagamento do acordo entre nós celebrado fosse esta quinta-feira,
1 de Novembro, no princípio da semana, logo na segunda-feira, quando passei o
cartão para poder levantar dinheiro, verifiquei que a conta estava limpa.
Fiquei alarmado. Fui ao banco e fiquei a saber que as Finanças retiraram-me
tudo. Apesar de ter ido à repartição da minha área e ter sido admitido o erro e
me ter sido dito que a ordem tinha sido emanada de Lisboa, durante três dias a
minha firma e a minha família ficaram sem meios para prover os seus
desenvolvimento e sustento. Só Deus sabe o que passei! Nunca pensei chegar a
esta altura da vida e sentir-me achincalhado desta maneira” –diz-me de lágrimas
nos olhos e algumas delas a correrem pela face gretada de tanta noite mal
dormida.
Este comerciante, de 61 anos e
que trabalha desde criança, teve várias lojas na cidade e, durante décadas, deu
emprego a vários trabalhadores. Hoje labora sozinho com a esposa no seu pequeno
estabelecimento e as poucas vendas que vai fazendo vão servindo para cumprir o
débito ao Estado e, dali, poder alimentar a sua família.
Entre várias questões que se
colocam, numa altura em que tanto se fala em Estado Social, podemos começar por
interrogar: que Estado é este que, num assalto descarado de completa
insensibilidade perante um cidadão que trabalhou a vida inteira, deixa uma
família sem um único euro e entregue à sua sorte? Poderemos aventar vários ápodos:
Estado selvagem? Estado de confisco? Ou Estado sem merecer o nome tal como o
conhecemos, enquanto Contrato Social de Hobbes e Locke e Montesquieu e Rosseau,
desde os séculos XVII/XVIII?
Seja lá qual for a denominação
que arranjarmos, este procedimento desumano é mais selvático do que as relações
entre animais irracionais. É simplesmente inqualificável.
Outra questão que se coloca, para
a administração fiscal, que diferença existe entre um homem que sempre
trabalhou desde criança e um outro que pouco contribuiu para a riqueza nacional?
Não há nenhuma diferença? O passado não conta para nada? Estamos perante
obrigações iguais? Voltamos ao positivismo jurídico, puro e duro, em que, pelo
simples facto de se ser cidadão, para o Governo, são todos iguais? E a
humilhação por que passou este comerciante, que numa altura da sua vida em que
legitimamente merecia ter alguma segurança e desafogo económico, a quem pode
ser endereçada? Tem futuro este contrato social e este Estado que assim
(mal)trata os seus “filhos”? Poderemos falar em relação paternal? Que sistema é
este?
ARRUMADORES LEGAIS PEDEM AJUDA
“Ó senhor Luís queria pedir-lhe
um favor: o senhor pode pedir ajuda no jornal para nós?”. Quem assim me roga é
o António Andrade Rocha, arrumador autorizado pela Câmara Municipal de Coimbra.
O Rocha e o José António Costa, a troco de uma simples moeda, estão há muitas
décadas a prestar um reconhecido serviço social a ajudar os automobilistas
junto ao Estádio Universitário, na margem esquerda. Depois de algumas multas,
pela Polícia Municipal (PM), por estarem ilegais, a autarquia, admitindo o seu
préstimo em direito adquirido, viria a dirimir esta questão pela melhor forma
de compensação e viria a conceder-lhes autorização em 24 de julho, último.
Mas, afinal, o que é que se
passa, senhor Rocha? Interrogo. “Sabe o que é? É que andam para aqui uns tipos
a oferecer-me pancada… Querem vir para o meu lugar, entende? Eu sou muito
doente, não posso com eles, mas preciso deste dinheiro que ganho aqui. É o
único rendimento que entra em casa… A minha mulher está desempregada. Isto está
acontecer todos os dias. Sinto-me muito inseguro. Até já ameaçaram o Costa, que
até tem um “cabedal” de respeito… Ó “Zé”, chega aqui!”. E chama o colega, que
se encontra uns passos mais à frente.
Fala o Costa, “é verdade, sim,
também já fui ameaçado. Eles querem tomar o nosso lugar a qualquer jeito. Já
viu isto? Tanto tempo à espera que nos “passassem cartão” e agora, que estamos
legais, querem vir tomar o nosso lugar? Estou aqui há 30 anos, não é
brincadeira nenhuma. A PM deve repor a legalidade, não deve?”
UMA ORQUESTRA ESPECIAL NA BAIXA
No passado dia 1 de novembro,
durante a manhã, em frente ao Museu do Chiado esteve um conjunto musical muito
peculiar, de sete elementos, a animar o peditório da Liga Nacional contra o
Cancro. E o que a tornava tão fora do comum? Pode interrogar o leitor? É que os
seus componentes eram, maioritariamente, músicos de rua e que, um pouco à
pressa e para o efeito, se disponibilizaram para contribuírem para tão nobre
causa. Esta banda, que animou a Rua Ferreira Borges durante cerca de três
horas, era formada pelo Paolo, no acordeão, pelo Faissal, na percussão, pelo
Lourenço, na viola, e pelo Bartolessi no Saxofone –como não houve ensaio prévio
este músico foi obrigado a sair antes. Todos estes artistas foram acompanhados no
baixo, pelo Rafael, no solo, pelo Armando, e no ritmo, pelo Quintans. Todas as
composições eram originais e da autoria destes dois últimos “músicos”. Esta
ideia de participação sonora surgiu na sequência do voluntarismo de Norberto
Pires, professor universitário, que se tinha disponibilizado para, nesta manhã
do dia de todos os santos e último feriado, rogar o óbolo aos transeuntes.
Nesta caminhada solidária de bom exemplo, fez-se acompanhar por Adão Mendes, da
Revista C, Mário Nogueira, da FemProf, e alguns outros cidadãos de boa vontade.
OS PARABÉNS DA CLARA
Em metáfora, se os estabelecimentos
comerciais são o “corpo” que dão vida a todas as ruas da cidade, os
comerciantes, que com a sua identidade os representam, serão a sua alma. É de
tal modo esta metamorfose de envolvência que ambos se chegam a confundir e se
tornam num só. É o caso da Fernanda Clara Pessoa Espírito Santo. Desde os seus 18
anos de menina que é o rosto simpático da Sapataria Pessoa, na Rua das Padeiras.
Esta semana fez anos, e soprou forte nas velas do tempo em direção ao futuro.
Quantos seriam? Não faço ideia, nem ouso interrogar a Clara. Mas isso
interessa? Aliás, não se deve perguntar a idade a uma senhora. Mas, pelo traço
de felicidade, aposto que já fez meio-século.
ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS
“O MÚSICO ROMENO”
Quantos de nós já fomos
envolvidos pelo manto melodioso e cristalino das suas músicas executadas com
mestria no acordeão, nas ruas largas da calçada? Quem é este músico de rosto
cheio, de bonomia e de aparente resignação pela sorte que o destino lhe traçou?
É o Paolo Vasil. Partiu da Roménia em 2003 diretamente para Coimbra, onde tem
familiares. Rumou em busca de um mundo melhor, porque no seu país natal
sopravam ventos de contradição. Desde sempre trabalhou na sua pátria. Durante
muitos anos laborou numa fábrica de utensílios metálicos, até ao dia em que,
com 53 anos, o dispensaram como se fosse um ferro velho. Para além de operário,
sempre foi músico de coração. Tinha uma banda de baile de seis elementos, onde
era acordeonista. Aqui, em Portugal, talvez devido à idade, foi sempre muito
difícil arranjar trabalho. Foi assim que, como náufrago em oceano de infinito, se
amarrou ao instrumento das suas horas livres. Hoje, com 63 anos, já não espera
milagres, mas também não desespera. Vive um dia de cada vez. Adora esta cidade
–e leva a mão ao peito. Sente-se acarinhado por todos. Tem um nó na garganta:
há três anos a sua filha querida morreu de cancro. Mas os filhos são um fruto
que Deus dá e Deus leva quando entende –e sorri enfaticamente.
Sem comentários:
Enviar um comentário