No pequeno estabelecimento de hotelaria onde almoço
diariamente por 5,50 € posso comer uma boa sopa, vários bocados de broa e pão,
um prato bem servido de carne ou peixe, à escolha, uma bebida e um café. É
normal ser-me perguntado: “quer mais um
bocadinho, senhor Luís?”
Nos últimos tempos, como o número
de clientes continuasse a cair, a dona do pequeno snack-bar lembrou-se de
arranjar uns cartões com quinze quadrículas. A cada refeição consumida
corresponde um traço. Depois de ter o cartão completo o cliente terá direito a
um almoço grátis. Ou seja, o resultado deste desconto passa a refeição para
5,16 €. Então vejo pessoas sentadas ao meu lado e que conheço bem e sei a sua
condição económica de relevo a, sofregamente e como se fosse a sua salvação, elevarem o cartão em busca do risco. Ninguém ousa interrogar-se: “será que a senhora consegue ganhar dinheiro
assim, desta maneira, a fazer descontos para se conseguir aguentar?”
–declaro solenemente que declinei a oferta do bilhete.
Tenho uma loja de comércio aberta há cerca de
20 anos na Baixa da cidade. Perante a queda acentuada e progressiva da procura
interna, o desalento e a falta de motivação para continuar já há muito tomou
conta de mim. É preciso dizer que o que move um negociante é a compra e venda –e
uma e outra, como irmãs siamesas, estão agarradas. Se a última, a venda, decai
logo arrasta a compra. Acho muita graça aos propagandistas quando apregoam aos
sete ventos para que quando chove deve vender-se guarda-chuvas e não olhar para
os grossos pingos da bátega que lhe caem em cima. Filosofia de quem não sabe o
estado em que se encontra o comércio tradicional. Tenho para mim que, na
actualidade, transversalmente os profissionais deste ramo andam todos numa
preocupante depressão.
Tal como outros comerciantes, para conseguir
fazer negócio, desde já há uns tempos tive de optar por fazer grandes
descontos. Se não for assim não se consegue vender seja o que for. Mas fui mais
longe. No vidro da montra coloquei uma mensagem assim: “Esta loja, tal como a maioria,
está na iminência de encerrar. Entre, deleite-se e compre se puder, enquanto
está aberta. Em contagem decrescente, apenas vai restar a memória.”
Perante a mensagem -como se vê
ambígua- vale a pena contar o comportamento das pessoas que transpõem a porta.
Uma grande maioria, dirigindo-se-me, começa por me interpelar: “vai encerrar? Não posso crer! Ai, não pode
fazer isso! Uma loja tão linda!”. A seguir dão uma volta ao estabelecimento
e apercebem-se das reduções de 20 e 50 por cento. Pegam numa qualquer peça e,
mirando-a de trás para frente, interrogam sobre o preço, fazendo contas de
cabeça sobre o desconto… e seguidamente oferecem metade. Isto é, prometem dar um
quarto do seu valor inicial. Por conseguinte, esquecendo toda a sua
argumentação anterior em que manifestavam pesar pelo futuro de mais um ponto de
venda, como abutres cheirando o sangue fresco da manada, tentam retirar o
máximo de proveito da minha fragilidade. Apesar das minhas imensas preocupações
acerca do futuro da minha loja e dos comércios em meu redor, por enquanto,
ainda posso negar-me a vender artigos com prejuízo e então com um grande
desplante, com uma cara de pau,
agradeço a oferta e remato dizendo que hoje
já almocei, venha amanhã que, se calhar, até lhe venderei o artigo ainda por
menos desta sua oferta. Então acontece uma coisa interessante: o até aqui
arrogante comprador, como apanhado em falta, cai em si e, desfazendo-se em mil
desculpas, não sabe onde se enfiar. “Ai,
desculpe! Não queria ofender! Não era isso que queria dizer! Por amor de Deus!
Sabe? É que eu sou o comprador, não é? E sempre foi assim! Uma pessoa tem de
negociar, não é?”.
Com alguma pachorra, quando ainda
consigo tê-la, lá vou explicando que, nos tempos que correm, cada vez mais é
imperioso que o cliente detenha alguma moral e ética projectada numa
responsabilidade acrescida perante o vendedor. Aquele, o adquirente, muitas
vezes, terá de esquecer que está por cima, que detém o dinheiro para pagar, e
olhar olhos nos olhos quem está em dificuldades para conseguir sobreviver.
Chama-se a isto sensibilidade social e comunitária. Quem está no comércio sabe
do que falo, está em marcha uma subjugação do vendedor e um domínio para o comprador –já tive
um caso em que o cliente, levantando as notas na mão, atira: “mas o senhor não quer vender? Mas eu tenho
o dinheiro! E o senhor denega a venda?”
Como disse, por enquanto ainda posso negar
alienar o que me dá prejuízo. E quem precisa mesmo de vender a qualquer jeito
para fazer face às suas despesas diárias? Como é que faz? Naturalmente vende e
em cada transacção que não tem lucro vai ficando cada vez mais fragilizado,
empobrecido, e sem meios para repor a sua anterior existência. Isto é
preocupante! E não escrevo apenas por mim. Declaradamente, estamos em deflacção
económica e ninguém fala nisto. As coisas perderam completamente valor e
passaram a ser um estorvo para quem as adquiriu com tanto esforço e satisfação
ao longo da vida e passaram a ser velharias
sem interesse para os descendentes. As necessidades vão perdendo a sua importância
e passam a ser apenas o que podem ser.
Perante a crise galopante que
soterra quem mais precisa, este comportamento excessivo e abusivo do consumidor
é o que é! Estamos em plena selva social e onde os mais fortes se sobrepõem aos
mais fracos. Estamos no tempo da caça ao homem. No aforismo de Thomas Hobbes,
filósofo inglês da Idade Moderna, em que o Homem
é o Lobo do Homem, em que o comprador, o dono do dinheiro, apercebendo-se
da vulnerabilidade do vendedor, espezinha-o, humilha-o como se fazia aos
escravos até meados do século XIX. Uma pergunta emerge: mas, ao longo da
história mercantil, da compra e venda, não foi sempre assim? Foi! Mas que custa muito
estar no lugar do calcado, lá isso custa! Fosca-se!
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