(Imagem da Web)
Estou no nosso quarto. Neste quarto que foi
meu e dela até há um ano atrás e antes de ter ido dormir para o andar de cima.
A mala está aberta em cima da cama em desalinho e jamais refeita da separação.
Ponho dentro a primeira camisa meio enrugada. Nunca mais tive o prazer de
sentir no corpo o aveludado de uma roupa bem passada a ferro. Antes de colocar
a segunda peça olho à volta e vejo que, na fotografia do nosso casamento há 35
anos, ela me observa. Vestida de branco e com uma camélia na mão, abraçada a
mim mantém um sorriso escarninho. Parece troçar. Desvio o olhar. Naquela
outrora nossa divisão partilhada tudo se mantém igual, a não ser a cama vazia.
Todas as noites, quando chego tarde do trabalho, acendo a luz e o primeiro
relance vai para o lugar cativo, aquele que foi seu, ao meu lado, durante
décadas. Mas ela não está. Está tão perto mas tão longe dos meus olhos. Pego em
dois pares de calças de ganga, que dispensam o ferro de engomar, e ponho dentro
do malote. Volto a mirar tudo em volta. Pressinto um calafrio nos olhos da dama
do quadro a óleo no canto esquerdo. Parece admoestar-me pela minha decisão. Mas
que posso fazer? Continuar assim? Dois estranhos dentro de uma mansão –até soa
a título de livro. É o que somos. Dois desconhecidos que se conhecem
demasiadamente bem mas que falta qualquer coisa, um fluido misterioso, um
entrosamento, para que se entendam e falem a mesma língua. Levo quantos pares
de meias? E quantas cuecas? Interessante esta minha indecisão nas coisas simples
e banais. Sei porquê. Foi sempre ela que se ocupou das minudências.
Com a mala na mão, cheia de
sonhos desfeitos, fecho a porta da entrada. Como camponês a observar a terra
lavrada, enxergo tudo em redor e fixo-me no pequeno chafariz que, pedra a
pedra, ergui com tanto amor. Sinto nas pernas um roçar. Desvio o olhar. Tenho
junto os meus gatos e o Pintas, o meu
cão. Parecem tristes por me ver partir. E, sem puder evitar mais, as lágrimas
irrompem pela minha face de solidão. Estou dividido. Não sei o que fazer. Vou
colocar-me nas mãos do destino. Quem sabe a minha nova namorada se atrase na
chegada?
Ela chegou ao aeroporto um minuto
depois da hora marcada.
(Texto
original de participação na 5.ª jornada do Campeonato Nacional de Escrita
Criativa e sobre o mote “Ela chegou ao aeroporto um minuto depois da hora
marcada”)
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