segunda-feira, 5 de maio de 2014

A PARTIDA (5)

(Imagem da Web)




Estou no nosso quarto. Neste quarto que foi meu e dela até há um ano atrás e antes de ter ido dormir para o andar de cima. A mala está aberta em cima da cama em desalinho e jamais refeita da separação. Ponho dentro a primeira camisa meio enrugada. Nunca mais tive o prazer de sentir no corpo o aveludado de uma roupa bem passada a ferro. Antes de colocar a segunda peça olho à volta e vejo que, na fotografia do nosso casamento há 35 anos, ela me observa. Vestida de branco e com uma camélia na mão, abraçada a mim mantém um sorriso escarninho. Parece troçar. Desvio o olhar. Naquela outrora nossa divisão partilhada tudo se mantém igual, a não ser a cama vazia. Todas as noites, quando chego tarde do trabalho, acendo a luz e o primeiro relance vai para o lugar cativo, aquele que foi seu, ao meu lado, durante décadas. Mas ela não está. Está tão perto mas tão longe dos meus olhos. Pego em dois pares de calças de ganga, que dispensam o ferro de engomar, e ponho dentro do malote. Volto a mirar tudo em volta. Pressinto um calafrio nos olhos da dama do quadro a óleo no canto esquerdo. Parece admoestar-me pela minha decisão. Mas que posso fazer? Continuar assim? Dois estranhos dentro de uma mansão –até soa a título de livro. É o que somos. Dois desconhecidos que se conhecem demasiadamente bem mas que falta qualquer coisa, um fluido misterioso, um entrosamento, para que se entendam e falem a mesma língua. Levo quantos pares de meias? E quantas cuecas? Interessante esta minha indecisão nas coisas simples e banais. Sei porquê. Foi sempre ela que se ocupou das minudências.
Com a mala na mão, cheia de sonhos desfeitos, fecho a porta da entrada. Como camponês a observar a terra lavrada, enxergo tudo em redor e fixo-me no pequeno chafariz que, pedra a pedra, ergui com tanto amor. Sinto nas pernas um roçar. Desvio o olhar. Tenho junto os meus gatos e o Pintas, o meu cão. Parecem tristes por me ver partir. E, sem puder evitar mais, as lágrimas irrompem pela minha face de solidão. Estou dividido. Não sei o que fazer. Vou colocar-me nas mãos do destino. Quem sabe a minha nova namorada se atrase na chegada?
Ela chegou ao aeroporto um minuto depois da hora marcada.


(Texto original de participação na 5.ª jornada do Campeonato Nacional de Escrita Criativa e sobre o mote “Ela chegou ao aeroporto um minuto depois da hora marcada”)


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