LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Esta semana deixo o textos "REFLEXÃO: O CONSUMIDOR ABUTRE"; e "ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: O GREGO";
REFLEXÃO: O CONSUMIDOR ABUTRE
No pequeno estabelecimento de hotelaria onde almoço
diariamente por 5,50 € posso comer uma boa sopa, vários bocados de broa e pão,
um prato bem servido de carne ou peixe, à escolha, uma bebida e um café. É
normal ser-me perguntado: “quer mais um
bocadinho, senhor Luís?”
Nos últimos tempos, como o número
de clientes continuasse a cair, a dona do pequeno snack-bar lembrou-se de arranjar uns cartões com quinze
quadrículas. A cada refeição consumida corresponde um traço. Depois de ter o
cartão completo o cliente terá direito a um almoço grátis. Ou seja, o resultado
deste desconto passa a refeição para 5,16 €. Então vejo pessoas sentadas ao meu
lado e que conheço bem e sei a sua condição económica de relevo a, sofregamente
e como se fosse a sua salvação, elevarem o bilhete em busca do risco. Ninguém
ousa interrogar-se: “será que a senhora
consegue ganhar dinheiro assim, desta maneira, a fazer descontos para se
conseguir aguentar?” –declaro solenemente que declinei a oferta do almoço
suplementar.
Tenho uma loja de comércio aberta há cerca de
20 anos na Baixa da cidade. Perante a queda acentuada e progressiva da procura
interna, o desalento e a falta de motivação para continuar já há muito tomou
conta de mim. É preciso dizer que o que move um negociante é a compra e venda
–e uma e outra, como irmãs siamesas, estão agarradas. Se a última, a venda,
decai logo arrasta a compra. Acho muita graça aos propagandistas quando
apregoam aos sete ventos para que quando chove deve vender-se guarda-chuvas e
não olhar para os grossos pingos da bátega que lhe caem em cima. Filosofia de
quem não sabe o estado em que se encontra o comércio tradicional. Tenho para
mim que, na atualidade, transversalmente os profissionais deste ramo andam todos
numa declarada e preocupante depressão.
Tal como outros comerciantes, para conseguir
fazer negócio, desde já há uns tempos tive de optar por fazer grandes
descontos. Se não for assim não se consegue vender seja o que for. Mas fui mais
longe. No vidro da montra coloquei uma mensagem assim: “Esta loja, tal como a maioria,
está na iminência de encerrar. Entre, deleite-se e compre se puder, enquanto
está aberta. Em contagem decrescente, apenas vai restar a memória.”
Perante a mensagem -como se vê
ambígua- vale a pena contar o comportamento das pessoas que transpõem a porta.
Uma grande maioria, dirigindo-se-me, começa por me interpelar: “vai encerrar? Não posso crer! Ai, não pode
fazer isso! Uma loja tão linda!”. A seguir dão uma volta ao estabelecimento
e apercebem-se das reduções de 20 e 50 por cento. Pegam numa qualquer peça e,
mirando-a de trás para frente, interrogam sobre o preço, fazendo contas de
cabeça sobre o desconto… e seguidamente oferecem metade. Isto é, prometem dar um
quarto do seu valor inicial. Por conseguinte, esquecendo toda a sua
argumentação anterior, em que manifestavam pesar pelo futuro de mais um ponto
de venda, como abutres cheirando o sangue fresco da manada, tentam retirar o
máximo de proveito da expressa fragilidade. Apesar das minhas imensas
preocupações acerca do futuro da minha loja e dos comércios em meu redor, por
enquanto, ainda posso negar-me a vender artigos com prejuízo e então com um
grande desplante, com uma cara de pau,
agradeço a oferta e remato dizendo que hoje
já almocei, venha amanhã que, se calhar, até lhe venderei o artigo ainda por
menos desta sua oferta. Então acontece uma coisa interessante: o até aqui
arrogante comprador, como apanhado em falta, cai em si e, desfazendo-se em mil
desculpas, não sabe onde se enfiar. “Ai,
desculpe! Não queria ofender! Não era isso que queria dizer! Por amor de Deus!
Sabe? É que eu sou o comprador, não é? E sempre foi assim! Uma pessoa tem de
negociar, não é?”.
Com alguma pachorra, quando ainda
consigo tê-la, lá vou explicando que, nos tempos que correm, cada vez mais é
imperioso que o cliente detenha alguma moral e ética projetada numa responsabilidade
acrescida perante o vendedor. Aquele, o adquirente, muitas vezes, terá de
esquecer que está por cima, que detém o dinheiro para pagar, e olhar olhos nos
olhos quem está em dificuldades para conseguir sobreviver. Chama-se a isto
sensibilidade social e comunitária. Quem está no comércio sabe do que falo,
está em marcha uma subjugação do vendedor e um domínio quase absoluto para o
comprador –já tive um caso em que o cliente, levantando as notas na mão, atira:
“mas o senhor não quer vender? Mas eu
tenho o dinheiro! E o senhor denega a venda?”
Como disse, por enquanto ainda posso negar
alienar o que me dá prejuízo. E quem precisa mesmo de vender a qualquer jeito
para fazer face às suas despesas diárias? Como é que faz? Naturalmente vende e
em cada transação que não tem lucro vai ficando cada vez mais vulnerável,
empobrecido, e sem meios para repor a sua anterior existência. Isto é
preocupante! E não escrevo apenas por mim. Declaradamente, estamos em deflação económica,
em que se vende abaixo do custo por precisão, e ninguém fala nisto. As coisas
perderam completamente valor e passaram a ser um estorvo para quem as adquiriu
com tanto esforço e satisfação ao longo da vida e passaram a ser velharias sem
interesse para os descendentes. As necessidades vão perdendo a sua importância
e passam a ser apenas o que podem ser.
Perante a crise galopante que
soterra quem mais precisa, este comportamento excessivo e abusivo do consumidor
é o que é! Estamos em plena selva social e onde os mais fortes se sobrepõem aos
mais fracos. Estamos no tempo da caça ao homem. No aforismo de Thomas Hobbes,
filósofo inglês da Idade Moderna, em que o Homem
é o Lobo do Homem, em que o comprador, o dono do dinheiro, apercebendo-se
da vulnerabilidade do vendedor, espezinha-o, humilha-o como se fazia aos
escravos até meados do século XIX. Uma pergunta emerge: mas, ao longo da
história mercantil, da compra e venda, não foi sempre assim? Foi! Mas que custa
muito estar no lugar do calcado, lá isso custa! Fosca-se!
ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: O GREGO
Já passámos tantas vezes por ele nas ruas
estreitas e becos de sombras recolhidas da Baixa da cidade. O que nos deixa a
pensar e mais impressiona na sua imagem algo vacilante é a sua face carregada
de melancolia. Olhar os seus olhos negros, rosto pontiagudo e emoldurado com
uma espessa barba branqueada pelo tempo, imediatamente nos reporta para o berço
da civilização ocidental, a Grécia. Se formos pessoas de mais de meio-século e
continuarmos a pensar, vamos fazer analogia com alguém que vimos no cinema há muitas
décadas: Anthony Quinn, no filme Zorba,
o Grego, de 1964.
Dá pelo nome de Carlos Leonel
Cardoso Gonçalves, tem 56 anos e uma história de vida para contar. Como muitas
narrações, a sua biografia dava um livro. Já foi tudo nesta vida, criança
problemática, órfão, adolescente complicado, adulto edonista,
presidiário, homem rico, sem-abrigo e muito pobre, agora. De rara
sensibilidade, os seus poemas –dos poucos que resistem à sua destruição,
alega-, num sentimento de dor, falam por si. Mas, afinal, quem é o Grego?
Vamos ler as suas declarações:
“Nasci
em Lisboa, em 1958. Os meus avós maternos, muito trabalhadores e humildes, eram
comerciantes de hortaliça. Tinham uma grande quinta, com trinta mil metros e
onde produziam os legumes e outras verduras que iam vender ao mercado. Os meus
pais eram pessoas simples, sem grande arrojo para as letras. Contando comigo,
tiveram três filhos. Desde que me lembro de existir, sempre fui uma criança
irreverente, diferente -talvez difícil, em sentido lato. De tal modo que fui
levado ao padre para me benzer e expulsar o demónio que presumivelmente estaria
dentro de mim. Sempre fui muito virado para as adições. Lembro-me de com cinco
anos ter sido apanhado pela minha mãe a fumar na cama.
Cresci numa família complicada e onde, para mim como mastro de um
navio, o seu esteio era a minha mãezinha. O meu pai era alcoólico. Tinha eu
onze anos quando o destino, como partida azarada, me levou a minha protetora, o
meu amor, e que me acolhia nos seus braços nas noites longas de lua cheia.
Nunca mais recuperei. Pelo choque, foi como se tivesse recebido uma segunda
alma desconsolada e pintada de negro, de amargura cinzelada. Se já era
complicado muito mais fiquei. Não é que pretenda branquear o meu passado e
culpabilizar esse acontecimento, mas, na individualidade, somos o que somos
resultado de uma circunstância. Sempre fui muito sensível. Escrevo poesia para
expurgar o meu sofrimento mas, quando me dá uma crise e para apagar, acabo
a rasgar tudo. Tenho uma especial atinência para diferenciar o bem do mal e
nunca maltratei ninguém. Estudei até ao ciclo e cheguei a entrar num curso industrial
mas a tristeza, projetada na perda da minha mãe, não me deixava cabeça para
mais nada e desisti. Nos anos subsequentes, para afogar aquela angústia que me
consumia a alma, perdi-me a consumir tudo, desde álcool, drogas, e até
anfetaminas. E ganhei esquizofrenia. Vieram as más companhias e, por coisas
simples, conheci a cadeia com 19 anos. Estive pouco tempo preso porque tive
gente muito boa que atestando eu ser boa pessoa estava naquela situação por
falta de apoio familiar e carinho debilitado. Mal saí fui logo cuidar da minha
avó até à sua morte. Depois, como se buscasse remédio para o vazio da minha
solidão, foi um correr de colo em colo nos braços de tantas raparigas. Não é
para me gabar, mas as mulheres gostavam de mim. Tive muitas namoradas. Eu era
um “bon vivant”, arrogante, orgulhoso e bem-apessoado. Tive uma série de carros
todos artilhados e que completavam o quadro de “matador de corações”. Nunca tive
uma profissão de jeito. Fui sempre um biscateiro e distribuindo-me em afazeres
variados.
Por
morte da minha avó, eu e os meus irmãos, herdámos a quinta e vendemo-la logo de
seguida. De repente acordei rico. Entretanto, conheci a mãe da minha filha e, em
meados da década de 1990, abrimos uma loja de modas e pronto-a-vestir em
Setúbal. Aquilo era uma mina. Era sempre a vender. Ganhei rios de dinheiro.
Cheguei a ter duas habitações na cidade do Sado. Uma delas com 140 metros
quadrados. Tinha também um carro descapotável. O estabelecimento durou uma
década. Foi a separação da minha companheira, levando-me a minha filha, que me
aniquilou. Passei uma noite inteirinha a chorar. Lembro-me, até escrevi este
poema: A dor de não te ter agride o meu ser/ ver-te, beijar-te e não me
pertenceres/ as minhas palavras não as consegues ouvir/ por muito que eu grite
não te fazem viver/ vais crescer sem mim, que pouco te posso dar/ não é num dia
por mês que eu te consigo amar (...).
A partir daí foi sempre a descer até às catacumbas da consumição.
Acabei a perder tudo e a terminar como sem-abrigo, a dormir na rua em cima de
papelão. Cheguei a comer dos caixotes do lixo. Foi então que se cruzou comigo a
instituição Vida e Paz. Ampararam-me e enviaram-me para a Cáritas Diocesana de
Coimbra. Estou a receber o Rendimento Social de Inserção e, com ele, pago um
quarto aqui na Baixa e onde habito. Vou comer à Cozinha Económica. Durante o
dia faço piscinas contando as pedras da calçada. Mas o que posso fazer mais?
Estou muito debilitado, da cabeça e dos pulmões. Tenho uma personalidade muito
complexa mas não faço mal a alguém que seja. Domino os meus medos e as vozes
que, por vezes, me atormentam. Sou a consequência das más escolhas que fiz,
reconheço.
Gostava muito de ter uma companheira, mas quem é que me atura? E sei lá
quem vou aturar? Apesar de tudo, sinto-me muito bem aconchegado aqui na Baixa.
Todos me ajudam, me respeitam e tratam bem.”
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