sexta-feira, 30 de maio de 2014

LEIA O DESPERTAR...


LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Esta semana deixo o textos "REFLEXÃO: O CONSUMIDOR ABUTRE"; e "ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: O GREGO"; 



REFLEXÃO: O CONSUMIDOR ABUTRE

No pequeno estabelecimento de hotelaria onde almoço diariamente por 5,50 € posso comer uma boa sopa, vários bocados de broa e pão, um prato bem servido de carne ou peixe, à escolha, uma bebida e um café. É normal ser-me perguntado: “quer mais um bocadinho, senhor Luís?”
Nos últimos tempos, como o número de clientes continuasse a cair, a dona do pequeno snack-bar lembrou-se de arranjar uns cartões com quinze quadrículas. A cada refeição consumida corresponde um traço. Depois de ter o cartão completo o cliente terá direito a um almoço grátis. Ou seja, o resultado deste desconto passa a refeição para 5,16 €. Então vejo pessoas sentadas ao meu lado e que conheço bem e sei a sua condição económica de relevo a, sofregamente e como se fosse a sua salvação, elevarem o bilhete em busca do risco. Ninguém ousa interrogar-se: “será que a senhora consegue ganhar dinheiro assim, desta maneira, a fazer descontos para se conseguir aguentar?” –declaro solenemente que declinei a oferta do almoço suplementar.
Tenho uma loja de comércio aberta há cerca de 20 anos na Baixa da cidade. Perante a queda acentuada e progressiva da procura interna, o desalento e a falta de motivação para continuar já há muito tomou conta de mim. É preciso dizer que o que move um negociante é a compra e venda –e uma e outra, como irmãs siamesas, estão agarradas. Se a última, a venda, decai logo arrasta a compra. Acho muita graça aos propagandistas quando apregoam aos sete ventos para que quando chove deve vender-se guarda-chuvas e não olhar para os grossos pingos da bátega que lhe caem em cima. Filosofia de quem não sabe o estado em que se encontra o comércio tradicional. Tenho para mim que, na atualidade, transversalmente os profissionais deste ramo andam todos numa declarada e preocupante depressão.
Tal como outros comerciantes, para conseguir fazer negócio, desde já há uns tempos tive de optar por fazer grandes descontos. Se não for assim não se consegue vender seja o que for. Mas fui mais longe. No vidro da montra coloquei uma mensagem assim: “Esta loja, tal como a maioria, está na iminência de encerrar. Entre, deleite-se e compre se puder, enquanto está aberta. Em contagem decrescente, apenas vai restar a memória.”
Perante a mensagem -como se vê ambígua- vale a pena contar o comportamento das pessoas que transpõem a porta. Uma grande maioria, dirigindo-se-me, começa por me interpelar: “vai encerrar? Não posso crer! Ai, não pode fazer isso! Uma loja tão linda!”. A seguir dão uma volta ao estabelecimento e apercebem-se das reduções de 20 e 50 por cento. Pegam numa qualquer peça e, mirando-a de trás para frente, interrogam sobre o preço, fazendo contas de cabeça sobre o desconto… e seguidamente oferecem metade. Isto é, prometem dar um quarto do seu valor inicial. Por conseguinte, esquecendo toda a sua argumentação anterior, em que manifestavam pesar pelo futuro de mais um ponto de venda, como abutres cheirando o sangue fresco da manada, tentam retirar o máximo de proveito da expressa fragilidade. Apesar das minhas imensas preocupações acerca do futuro da minha loja e dos comércios em meu redor, por enquanto, ainda posso negar-me a vender artigos com prejuízo e então com um grande desplante, com uma cara de pau, agradeço a oferta e remato dizendo que hoje já almocei, venha amanhã que, se calhar, até lhe venderei o artigo ainda por menos desta sua oferta. Então acontece uma coisa interessante: o até aqui arrogante comprador, como apanhado em falta, cai em si e, desfazendo-se em mil desculpas, não sabe onde se enfiar. “Ai, desculpe! Não queria ofender! Não era isso que queria dizer! Por amor de Deus! Sabe? É que eu sou o comprador, não é? E sempre foi assim! Uma pessoa tem de negociar, não é?”.
Com alguma pachorra, quando ainda consigo tê-la, lá vou explicando que, nos tempos que correm, cada vez mais é imperioso que o cliente detenha alguma moral e ética projetada numa responsabilidade acrescida perante o vendedor. Aquele, o adquirente, muitas vezes, terá de esquecer que está por cima, que detém o dinheiro para pagar, e olhar olhos nos olhos quem está em dificuldades para conseguir sobreviver. Chama-se a isto sensibilidade social e comunitária. Quem está no comércio sabe do que falo, está em marcha uma subjugação do vendedor e um domínio quase absoluto para o comprador –já tive um caso em que o cliente, levantando as notas na mão, atira: “mas o senhor não quer vender? Mas eu tenho o dinheiro! E o senhor denega a venda?”
Como disse, por enquanto ainda posso negar alienar o que me dá prejuízo. E quem precisa mesmo de vender a qualquer jeito para fazer face às suas despesas diárias? Como é que faz? Naturalmente vende e em cada transação que não tem lucro vai ficando cada vez mais vulnerável, empobrecido, e sem meios para repor a sua anterior existência. Isto é preocupante! E não escrevo apenas por mim. Declaradamente, estamos em deflação económica, em que se vende abaixo do custo por precisão, e ninguém fala nisto. As coisas perderam completamente valor e passaram a ser um estorvo para quem as adquiriu com tanto esforço e satisfação ao longo da vida e passaram a ser velharias sem interesse para os descendentes. As necessidades vão perdendo a sua importância e passam a ser apenas o que podem ser.
Perante a crise galopante que soterra quem mais precisa, este comportamento excessivo e abusivo do consumidor é o que é! Estamos em plena selva social e onde os mais fortes se sobrepõem aos mais fracos. Estamos no tempo da caça ao homem. No aforismo de Thomas Hobbes, filósofo inglês da Idade Moderna, em que o Homem é o Lobo do Homem, em que o comprador, o dono do dinheiro, apercebendo-se da vulnerabilidade do vendedor, espezinha-o, humilha-o como se fazia aos escravos até meados do século XIX. Uma pergunta emerge: mas, ao longo da história mercantil, da compra e venda, não foi sempre assim? Foi! Mas que custa muito estar no lugar do calcado, lá isso custa! Fosca-se!


ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: O GREGO

Já passámos tantas vezes por ele nas ruas estreitas e becos de sombras recolhidas da Baixa da cidade. O que nos deixa a pensar e mais impressiona na sua imagem algo vacilante é a sua face carregada de melancolia. Olhar os seus olhos negros, rosto pontiagudo e emoldurado com uma espessa barba branqueada pelo tempo, imediatamente nos reporta para o berço da civilização ocidental, a Grécia. Se formos pessoas de mais de meio-século e continuarmos a pensar, vamos fazer analogia com alguém que vimos no cinema há muitas décadas: Anthony Quinn, no filme Zorba, o Grego, de 1964.


Dá pelo nome de Carlos Leonel Cardoso Gonçalves, tem 56 anos e uma história de vida para contar. Como muitas narrações, a sua biografia dava um livro. Já foi tudo nesta vida, criança problemática, órfão, adolescente complicado, adulto edonista, presidiário, homem rico, sem-abrigo e muito pobre, agora. De rara sensibilidade, os seus poemas –dos poucos que resistem à sua destruição, alega-, num sentimento de dor, falam por si. Mas, afinal, quem é o Grego? Vamos ler as suas declarações:
“Nasci em Lisboa, em 1958. Os meus avós maternos, muito trabalhadores e humildes, eram comerciantes de hortaliça. Tinham uma grande quinta, com trinta mil metros e onde produziam os legumes e outras verduras que iam vender ao mercado. Os meus pais eram pessoas simples, sem grande arrojo para as letras. Contando comigo, tiveram três filhos. Desde que me lembro de existir, sempre fui uma criança irreverente, diferente -talvez difícil, em sentido lato. De tal modo que fui levado ao padre para me benzer e expulsar o demónio que presumivelmente estaria dentro de mim. Sempre fui muito virado para as adições. Lembro-me de com cinco anos ter sido apanhado pela minha mãe a fumar na cama.
Cresci numa família complicada e onde, para mim como mastro de um navio, o seu esteio era a minha mãezinha. O meu pai era alcoólico. Tinha eu onze anos quando o destino, como partida azarada, me levou a minha protetora, o meu amor, e que me acolhia nos seus braços nas noites longas de lua cheia. Nunca mais recuperei. Pelo choque, foi como se tivesse recebido uma segunda alma desconsolada e pintada de negro, de amargura cinzelada. Se já era complicado muito mais fiquei. Não é que pretenda branquear o meu passado e culpabilizar esse acontecimento, mas, na individualidade, somos o que somos resultado de uma circunstância. Sempre fui muito sensível. Escrevo poesia para expurgar o meu sofrimento mas, quando me dá uma crise e para apagar, acabo a rasgar tudo. Tenho uma especial atinência para diferenciar o bem do mal e nunca maltratei ninguém. Estudei até ao ciclo e cheguei a entrar num curso industrial mas a tristeza, projetada na perda da minha mãe, não me deixava cabeça para mais nada e desisti. Nos anos subsequentes, para afogar aquela angústia que me consumia a alma, perdi-me a consumir tudo, desde álcool, drogas, e até anfetaminas. E ganhei esquizofrenia. Vieram as más companhias e, por coisas simples, conheci a cadeia com 19 anos. Estive pouco tempo preso porque tive gente muito boa que atestando eu ser boa pessoa estava naquela situação por falta de apoio familiar e carinho debilitado. Mal saí fui logo cuidar da minha avó até à sua morte. Depois, como se buscasse remédio para o vazio da minha solidão, foi um correr de colo em colo nos braços de tantas raparigas. Não é para me gabar, mas as mulheres gostavam de mim. Tive muitas namoradas. Eu era um “bon vivant”, arrogante, orgulhoso e bem-apessoado. Tive uma série de carros todos artilhados e que completavam o quadro de “matador de corações”. Nunca tive uma profissão de jeito. Fui sempre um biscateiro e distribuindo-me em afazeres variados.
Por morte da minha avó, eu e os meus irmãos, herdámos a quinta e vendemo-la logo de seguida. De repente acordei rico. Entretanto, conheci a mãe da minha filha e, em meados da década de 1990, abrimos uma loja de modas e pronto-a-vestir em Setúbal. Aquilo era uma mina. Era sempre a vender. Ganhei rios de dinheiro. Cheguei a ter duas habitações na cidade do Sado. Uma delas com 140 metros quadrados. Tinha também um carro descapotável. O estabelecimento durou uma década. Foi a separação da minha companheira, levando-me a minha filha, que me aniquilou. Passei uma noite inteirinha a chorar. Lembro-me, até escrevi este poema: A dor de não te ter agride o meu ser/ ver-te, beijar-te e não me pertenceres/ as minhas palavras não as consegues ouvir/ por muito que eu grite não te fazem viver/ vais crescer sem mim, que pouco te posso dar/ não é num dia por mês que eu te consigo amar (...).
A partir daí foi sempre a descer até às catacumbas da consumição. Acabei a perder tudo e a terminar como sem-abrigo, a dormir na rua em cima de papelão. Cheguei a comer dos caixotes do lixo. Foi então que se cruzou comigo a instituição Vida e Paz. Ampararam-me e enviaram-me para a Cáritas Diocesana de Coimbra. Estou a receber o Rendimento Social de Inserção e, com ele, pago um quarto aqui na Baixa e onde habito. Vou comer à Cozinha Económica. Durante o dia faço piscinas contando as pedras da calçada. Mas o que posso fazer mais? Estou muito debilitado, da cabeça e dos pulmões. Tenho uma personalidade muito complexa mas não faço mal a alguém que seja. Domino os meus medos e as vozes que, por vezes, me atormentam. Sou a consequência das más escolhas que fiz, reconheço.
Gostava muito de ter uma companheira, mas quem é que me atura? E sei lá quem vou aturar? Apesar de tudo, sinto-me muito bem aconchegado aqui na Baixa. Todos me ajudam, me respeitam e tratam bem.”


Sem comentários: