sexta-feira, 2 de maio de 2014

LEIA O DESPERTAR...


LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Esta semana deixo o textos "REFLEXÃO: POR QUEM OS CRAVOS MURCHAM?"; e "A MULHER QUE JÁ NÃO SONHA"; e "A MINHA VIZINHA PARTIU"



REFLEXÃO: POR QUEM OS CRAVOS MURCHAM?

Passaram 40 anos sobre o 25 de Abril e festejados na sexta-feira passada com vários milhares de manifestantes nas ruas. Para uns foi uma jornada de protesto contra o governo, para outros foi a comemoração da revolução dos cravos e de que o projeto está vivo e recomenda-se.
Tenho muita pena de não ter participado nem no contesto nem na celebração da data. E quando escrevo que tenho pena não digo que foi por impossibilidade. Não! Nada disso! Não fui porque não me identifico com qualquer das duas motivações. Tenho pena! Com toda a sinceridade o 25 de Abril trouxe muitas coisas boas mas, como a onda do mar, está levar de volta tudo o que deu. Por um lado, não alinho nesta forma de protesto partidário, com os partidos políticos sempre a manipularem a opinião pública e para daí retirarem dividendos no futuro. Por outro, olhando à minha volta, não me revejo na recordação para enaltecer seja lá o que for nesta democracia que nos rege, quando o desemprego, a miséria, a fome, está a invadir a casa de muitos nossos vizinhos. O que vejo é que os que se encostaram à revolução, os ao tempo capitães, políticos da época e outros herdeiros em linha reta destes estão todos muito bem de vida. Reclamam de barriga cheia. Apesar disso, como atores de um teatro encerrado há muito tempo, continuam a barafustar contra o atual estado de coisas. Sem ponta de dignidade, buscam apenas os interesses ideológicos das agremiações a que sempre estiveram ligados. O que me admira é estas pessoas, estas caras sem-vergonha, que ao longo destas quatro décadas estiveram sempre a defender os seus interesses pessoais, continuarem a ter eco na sociedade hodierna e conseguirem fazer-se ouvir. Com um despudor escandaloso, chegam a pedir para que se derrube o Governo através da força das armas. Mais grave ainda é que esta instigação à violência sendo crime, pela importância destes revoltosos, o Ministério Público faz de conta que não lê, não ouve, não sabe de nada. Se for um qualquer anónimo está feito! Quem mais deveria indignar-se é o que está calado e sofre na pele as agruras deste movimento que ainda não se sabe muito bem ao que vai dar.
Este sistema em que vivemos, e a que chamam democracia, é um processo continuado, totalitário de controlo da sociedade, que visa apenas o esbulhar do contribuinte. Cada vez mais somos o resultado daquilo a que alguns querem que sejamos. O Estado está transformado numa entidade opressora que, segundo a segundo, vigia o cidadão e desrespeita os seus direitos constitucionais. Num pasmar de sarcófago ainda se fala e defende esta liberdade. O valor liberdade, nestas condições, tem alguma importância?
O que é triste é este entorpecimento coletivo. Só se reage em massa, como rebanhos de ovelhas. Por outro lado é a alienação. É o futebol em toda a sua força de massificação embrutecida e o cada vez mais correr atrás do outro sem pensar na razão que move o primeiro da fila.
Ainda agora neste fim-de-semana último, na cidade, cerca de doze mil pessoas, pagando 15 euros cada um, novos e velhos, aceitaram pintar-se de mil cores e participaram numa corrida coletiva de cinco quilómetros, a “Color Run”. É óbvio que a decisão de cada um em participar só ao próprio diz respeito, é da esfera da sua liberdade, mas uma pergunta subjaz: o que é que este tipo de iniciativa traz de positivo para a sociedade? Mostrar a alegria? Mas nos dias seguintes já andam a lamentar-se e com cara de enterro! Quem percebe?


A MULHER QUE JÁ NÃO SONHA

Passa por nós na rua, segura de si, com uma graciosidade que nos toca e a fazer lembrar o filme “mulher de vermelho”, com Kelly leBrock, de 1984. Em passo cadenciado, toc, toc, toc, deixa no ar uma envolvência perfumada e libidinosa. Já passou a fronteira dos “cinquentas”, mas o seu corpo é modelado em formas como saído de um barrista de grande nomeada. Quando ela passa, leva os olhares de todos pregados ao seu corpo esbelto e belo. Olha o novo, o de meia-idade assobia e o velho, de olhos a ameaçarem saltar das órbitras, sem amarras, e sem conseguir suster o desejo materializado nas palavras, atira: “ai ó filha, que és tão boa!”.
É divorciada há mais de uma década, ou, se for menos, já está separada de facto há muitos anos. Os seus filhos, já crescidos, estão na faixa etária entre os vinte e os trinta anos e, na maioria dos casos, já abandonaram o lar. Tem em casa um cão e um gato, cujos latidos e miados, em correria por entre salas e corredores, substituem as outrora vozes humanas. Ambos têm nome de pessoa. Se for macho terá nomenclatura de homem, se for fêmea será apelido de mulher. Apesar da rivalidade natural, canino e felino são felizes e se dão como irmãos da mesma espécie. Estes animais são a sua companhia, no sofá, na cama e ocupam a sua mente em preocupações variadas. Esta mulher solitária fala com eles como de pessoas vivas se tratasse. Quando algum dos filhos telefona leva horas a ouvir, em desabafo, tudo o que eles têm para dizer. É muito natural que eles liguem para pedir dinheiro. Aqueles, os filhos, para além de não terem tempo para a escutar, nunca lhe perguntam: “estás bem, mamã? Como vai a tua vida? És feliz?”. Pode acontecer esta mãe sozinha ter também de ouvir as suas críticas acerca da forma dela vestir: “essa camisola vermelha não te fica bem -é demasiado ousada para a tua idade. Essa saia está muito curta! Qual é a tua mãezinha?!”
Quando bate a porta de saída não gastou muito tempo do seu dia a mirar-se ao espelho. Aliás, não gosta da imagem refletida. Aquelas rugas malditas que teimam em nublar a sua fronte preocupam-na mas não lhe tiram o sono. A seguir em rotina de campanha, o trajeto de vida desta dama independente divide-se entre o emprego e a casa –aqui tem sempre trabalho, ora limpa o pó, ora arruma o que está mais que arrumado, ora cuida das roupas dos filhos que, mesmo a morarem fora, virão recolher mais tarde. Se tiver quintal, para além do cão e gato, pode ter também galinhas, patos e até coelhos. Quando está aposentada as suas voltas são sempre iguais: casa, café, passando pela rua principal no seu andar ondulante e voluptuoso, ginásio ou passeios pedestres, e retorno ao lar-doce-lar. Uma e outra tornaram-se escravas da sua própria limitação e prisioneiras de grilhetas invisíveis. Apesar de continuarem à espera do seu príncipe encantado –que mesmo que apareça duvidará das suas intenções e fugirá dele como o diabo da cruz-, há muito que deixaram de sonhar com uma vida prazenteira e diferente. Passaram a gostar de viver só. Fizeram da solidão a sua droga e viciaram-se no seu próprio círculo de entediamento.
Uma grande parte  foi vítima de violência doméstica. Por isso, é uma mulher medrosa, assustada, retraída  nos afetos, desconfiada e de autoestima balouçante como cana no canavial. Passou a ver todo o homem como potencial agressor e a ter medo de tudo, de todos e até da sua própria sombra. Só o imaginar que possam supor que ela namore com alguém das redondezas dá-lhe suores frios e faz-lhe tremer as canetas. E os filhos? O que irão dizer os filhos? “Ai, Senhora! Nossa Senhora de Fátima me valha!” –exclama em dois suspiros e antes de se atirar ao colchão já a madrugada vai a trote e entradota. Por isso mesmo, à noite, rumo ao silêncio de conluio convergente, navega na Internet, no Facebook ou num qualquer site de namoros. Ao menos ali, duvidando de tudo e de todos, estará sempre protegida da vigilância dos herdeiros, das vistas curtas da vizinhança e da crítica acintosa da maioria.
É hipocondríaca. No entanto, no paradoxal, cuida mal da sua saúde e não teme o fim. Apregoa aos sete ventos que vai desaparecer cedo deste mundo, talvez para justificar a si mesma a sua própria inutilidade, impotência e incapacidade de amar. Ao desvalorizar a morte, a intenção é, em grito surdo, chamar a atenção para os mais próximos. Apesar de distante do coração mas tão perto da memória, o ex-marido continuará a considerá-la como uma propriedade perdida e prosseguirá o desejo doentio de controlar a sua vida amorosa. Aquele, em manipulação sentimental, usará os filhos como instrumentos de influência para a sua concretização.
Quem a vê a dar esmola ao pobre no recanto da viela é levado a pensar que é muito generosa. Acontece que nem por isso. Envolvida numa secura como defesa pessoal, tornou-se egocêntrica, fria e fechada na sua concha. “E porque pratica o esmolar?”, interroga um dos seus admiradores. “Porque sou muito temente a Deus! E fazer o bem é próprio de um bom cristão!”, responderá em surdina, sem o olhar nos olhos, e continuando a caminhar rumo a um destino que não escolheu mas que lhe calhou em sorte.
Qual teria sido a razão desta mulher, tão bela e graciosa, ter deixado de sonhar? O receio de falhar! O medo de não conseguir ser feliz!


A MINHA VIZINHA PARTIU

Durante os últimos dois anos partilhámos os bons-dias, as boas-tardes, as boas-noites, a chuva nos beirais e o sol a beijar o chão do nosso largo comum. No Natal veio dar-me uma garrafinha de bom vinho e embrulhada num sorriso de boas-festas. Chama-me sempre “Ti Luís”. Porque sou muito despistado, nem o seu nome procurei saber. Não é por nada, mas o respeito mútuo, a amizade solidária, estão muito para além da denominação social. Vão até ao coração e imbricam na alma. Talvez por isso não me preocupe muito com os apelidos e nomenclatura –ou então é uma grande desculpa que arranjei para justificar a minha lacuna.
Há pouco tempo, com votos de “Páscoa Feliz”, veio dar-me uma caixinha de amêndoas. Mas também para me deixar triste. Veio despedir-se com um abraço e um beijinho. “Mudei-me para um edifício, para um andar mais cómodo, ali para os lados do Estádio”, disse-me com leve pesar. Praticamente vai pagar a mesma renda e, para melhorar, o prédio tem elevador. “Estas escadas matam a gente, sabe? Dão-me cabo da coluna! Tenho tanta pena de sair daqui. É um ambiente tão familiar! Vou mesmo sentir saudades do Largo da Freiria. Mas vou voltar de vez em quando. Acredita? Não se esqueça de mim!”


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