(Imagem da Web)
Cavalgaria eu os meus oito anos, lembro-me muito
bem dele no início de 1960, na minha aldeia. De fato bem aprumado, camisa
branca e gravata pendurada no pescoço e sapatos abicados de verniz a condizer, a
sua idade andaria pelos 18 anos. Durante o dia, no Inverno ou no verão de
canícula escaldadiça, o Pinhão percorria a rua principal empoeirada, de alto-a-baixo,
várias vezes sem contas de rosário. Durante a noite, como autómato com a corda
toda em caminho pré-concebido, transitava na mesma senda e a horas por ele
cronometradas ou alguém que lhe tomou o destino.
Chamavam-lhe louco, um daqueles maluquinhos que há sempre em qualquer
lugar habitado e que fazem emergir histórias do arco-da-velha. Mas o Pinhão,
pelo ar aperaltado e fineza no falar, fugia ao estereótipo e, enquanto fui
criança, foi sempre para mim um símbolo de mistério. Aos meus olhos, pelas suas
maneiras fina e simpática num recôndito e rude lugar, voz bem colocada e
adocicada, era perfeitamente normal o seu caminhar em busca de coisa nenhuma. E
até o fazer a corte cerrada à Cremilde, a criada do homem mais rico da aldeola,
fazia parte consubstanciada da minha análise de convicção avolumada.
Uns diziam por lá que não dormia.
E se não dormia também não sonhava, retorquiam com ênfase Lapalissiana. Outros,
mais introspectos na relatividade psico-somática, afirmavam que a razão de não
sonhar era a causa directa do seu desalinhamento social e da sua demência. Os
mais eruditos do lugarejo, em diagnóstico de conhecimento presciente na
matéria, afirmavam com a certeza de quem sabe ver o tempo futuro pela Lua que o
tonto não viveria muito para além dos vinte anos. Afirmavam, a pé-juntos, que
todo o homem que não sonhasse teria existência curta. Todo o humano que não
imaginasse amores eternos, castelos em nuvens passageiras, como planta não
regada, secava lentamente por dentro e acabaria por definhar para a vida.
Inevitavelmente, transformar-se-ia num cavaleiro andante sem a ponte que ligava
a existência prática à esperança fluída do sonho.
A verdade é que o Pinhão não durou muito. Com
cerca de vinte anos, suicidou-se num poço de águas turvas e profundas de um
quintal próximo. Sempre que lá passava, olhando as águas lodosas, cogitava
ouvir sua voz caramelizada saída do fundo do poço em quadra fatalista:
Por cá, caminhei na vida,
sem saber ao que vim,
procurava uma avenida
e encontrei um triste fim.
(Texto original de participação na 10.ª jornada do Campeonato
Nacional de Escrita Criativa e sobre o mote “Entendo-te e perdoo-te”)
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"A carta" (1)
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