A vida humana é de facto muito curiosa.
Poderíamos dividi-la em quatro etapas: a entrada
triunfal, a afirmação, a conquista do mundo e o quero morrer em paz.
Quer nasçamos em berço de ouro ou
em manjedoura de palha, é sempre a entrada
triunfal, apoteótica e aclamada por quem nos recebe à chegada, pai, mãe e
restante família. Damos imensos tropeções até conseguirmos preencher o primeiro
passo. Depois vêm os seguintes e até ao último. Recebemos as primeiras
indicações dos nossos primogénitos e a subsequente educação, tendo em conta o
meio, rico ou pobre, em que crescemos. Vamos para a escola e recebemos as
primeiras aulas de formação. Esta e aquela serão as pedras basilares da nossa
personalidade.
E entramos na afirmação. Aqui caminhamos na direcção
do ser original. Tendo por ponto de
partida uma reprodução imitada em alguém que conhecemos ou idolatramos. Os
seixos pontiagudos do caminho são meros acidentes de percurso e deles temos
noção de antes fugir do que remediar. O
que interessa é passar. Esta é a fase da irresponsabilidade. Vemos tudo com
filtro, em cores de rosa-suave e azul-céu.
A seguir, já adultos, cuja
designação hoje não tem a ver com a idade mas antes com as responsabilidades
assumidas, estamos na metamorfose da conquista
do mundo. Nesta etapa, cheios de força física e anímica, consideramos que
nada nos pode deter. Passamos por cima de qualquer obstáculo que nos impeça de
atingir o cume da montanha. Precisamos de fazer coisas, tornarmo-nos notados,
ter sucesso, sermos ricos. Pouco interessam os escolhos da estrada. Continuamos
com a mesma filosofia de antes fugir do que
remediar. Relevamos os fins e menos os meios para realizar o nosso sonho.
Este período do nosso calcorrear passa rápido, quase sem darmos pela passagem
dos anos. E de repente, sem se prever, olhamos a imagem no espelho e, pelas
rugas marcadas, pelas cãs prateadas, não reconhecemos a figura representada. Engraçado, pensamos para nós, parece mesmo o meu pai!
Estamos portanto no epílogo da
vida, no último capítulo. Damos por nós a chorar desalmadamente, com as
lágrimas a soltarem-se ao mínimo clique. Passamos a olhar para trás em exame
minucioso e damos por arrepender-nos de termos feito mal ao nosso vizinho. Num
ajuste de contas com o passado, temos necessidade de remediar tudo o que
fizemos mal e evitamos fugir do que quer que seja. Só queremos morrer em paz.
(Texto
original de participação na 4.ª jornada do Campeonato Nacional de Escrita
Criativa e sobre o mote “Antes fugir do que remediar”)
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