(Imagem da Web)
Olho para trás e sinto tantas décadas de
cumplicidade. Vejo a nossa primeira casinha arrendada com telhas ao léu e por
onde, pelas frestas, o frio entrava sem pedir licença. Transporto-me para o dia
em que a nossa filha nasceu. Estava a terminar a caminha de madeira em que a
nossa filha viria a dormir. Lembro-me que acabei por espetar uma goiva no dedo
indicador esquerdo e fui parar ao hospital onde apanhei três pontos. Mais tarde
nasceu o nosso filho e foi nesse bercinho, saído das minhas mãos e imaginação, que
ele tantas vezes chorou a pedir mama. Recordo quando comprámos o nosso primeiro
frigorífico e a alegria que sentimos na última prestação. Era tudo tão difícil!
Mas estávamos unidos no mesmo objectivo de educar os nossos rebentos e dar-lhes
uma vida melhor do que a que tivemos. Mas era tudo tão difícil! O ordenado dos
dois nunca chegava ao final do mês. Faltava dinheiro e sobravam dias. E o
recurso, tantas vezes, era o fiado. Lembras-te?
Para não pagar renda negociámos
uma casinha modesta e fomos à banca. Como não havia garantias reais, o banco
não emprestou. Mas era tão bom ajuste! E a casa era um amor! Que pena não nos
darem a mão! Pensámos até à exaustão. Foi então que rememorei o meu melhor
amigo. E ele, numa confiança sem limites, concedeu-me a verba pretendida. Com a
tua ajuda, trabalhei dias inteiros, de sol até à lua, e noites sem dormir para
lhe retribuir a graça merecida. Anos mais tarde adquirimos uma vivenda melhor
e, mais uma vez, o meu amigo me confiou milhares de contos de reis. Recordas
como fiquei grato?
Há dois anos ele foi lá a casa.
Tens ideia? Junto da lareira, o meu melhor amigo de sempre, com um sorriso nos
lábios, disse: “tenho um cancro maligno,
vou morrer. És a única pessoa a quem posso recorrer para ajudar a minha família
lá no nosso negócio. Posso contar contigo?”. E na tua presença, sem te
consultar, a chorar, eu disse imediatamente que sim. Como sabes, há um ano suicidou-se e eu, imponderadamente e mais
uma vez sem te ouvir, logo passei a cumprir o prometido. Agora, cansadíssimo, todas
as noites vou dormir quando a madrugada já ressona. Mas tu já não estás lá. A
cama está vazia. Não compreendeste a minha dívida de gratidão. Entendo-te e
perdoo-te. Consegues perdoar-me também?
(Texto original de participação na 9.ª
jornada do Campeonato Nacional de Escrita Criativa e sobre o mote “Entendo-te e
perdoo-te”)
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"A carta" (1)
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