Já passámos tantas vezes por ele nas ruas
estreitas e becos de sombras recolhidas da Baixa da cidade. O que nos deixa a pensar
e mais impressiona na sua imagem algo vacilante é a sua face carregada de melancolia. Olhar os seus olhos negros, rosto pontiagudo e emoldurado com uma espessa
barba branqueada pelo tempo, imediatamente nos reporta para o berço da
civilização ocidental, a Grécia. Se formos pessoas de mais de meio-século e continuarmos
a pensar, vamos fazer analogia com alguém que vimos no cinema há muitas décadas:
Anthony Quinn, no filme Zorba, o Grego,
de 1964.
Dá pelo nome de Carlos Leonel
Cardoso Gonçalves, tem 56 anos e uma história de vida para contar. Como muitas
narrações, a sua biografia dava um livro. Já foi tudo nesta vida, criança
problemática, órfão, adolescente complicado,
adulto edonista, presidiário, homem
rico, sem-abrigo e muito pobre, agora. De rara sensibilidade, os seus poemas –dos
poucos que resistem à sua destruição, alega-, num sentimento de dor, falam por
si. Mas, afinal, quem é o Grego? Vamos
ler as suas declarações:
“Nasci em Lisboa, em 1958. Os meus avós maternos, muito trabalhadores e
humildes, eram comerciantes de hortaliça. Tinham uma grande quinta, com trinta
mil metros e onde produziam os legumes e outras verduras que iam vender ao
mercado. Os meus pais eram pessoas simples, sem grande arrojo para as letras. Contando
comigo, tiveram três filhos. Desde que me lembro de existir, sempre fui uma
criança irreverente, diferente -talvez difícil, em sentido lato. De tal modo
que fui levado ao padre para me benzer e expulsar o demónio que presumivelmente
estaria dentro de mim. Sempre fui muito virado para as adições. Lembro-me de
com cinco anos ter sido apanhado pela minha mãe a fumar na cama.
Cresci numa família complicada e onde, para mim como mastro de um navio,
o seu esteio era a minha mãezinha. O meu pai era alcoólico. Tinha eu onze anos
quando o destino, como partida azarada, me levou a minha protectora, o meu amor,
e que me acolhia nos seus braços nas noites longas de lua cheia. Nunca mais
recuperei. Pelo choque, foi como se tivesse recebido uma segunda alma desconsolada
e pintada de negro, de amargura cinzelada. Se já era complicado muito mais fiquei. Não é
que pretenda branquear o meu passado e culpabilizar esse acontecimento, mas, na
individualidade, somos o que somos resultado de uma circunstância. Sempre fui muito
sensível. Escrevo poesia para expurgar o meu sofrimento mas, quando me dá uma
crise e para apagar, acabo a rasgar tudo. Tenho uma especial atinência para diferenciar
o bem do mal e nunca maltratei ninguém. Estudei até ao ciclo e cheguei a entrar
num curso industrial mas a tristeza, projectada na perda da minha mãe, não
me deixava cabeça para mais nada e desisti. Nos anos subsequentes, para afogar
aquela angústia que me consumia a alma, perdi-me a consumir tudo, desde álcool,
drogas, e até anfetaminas. E ganhei esquizofrenia. Vieram as más companhias e,
por coisas simples, conheci a cadeia com 19 anos. Estive pouco tempo preso porque
tive gente muito boa que atestando eu ser boa pessoa estava naquela situação
por falta de apoio familiar e carinho debilitado. Mal saí fui logo cuidar da
minha avó até à sua morte. Depois, como se buscasse remédio para o vazio da
minha solidão, foi um correr de colo em colo nos braços de tantas raparigas.
Não é para me gabar, mas as mulheres gostavam de mim. Tive muitas namoradas. Eu
era um “bon vivant”, arrogante, orgulhoso e bem-apessoado. Tive uma série de carros todos
artilhados e que completavam o quadro de “matador de corações”. Nunca tive uma
profissão de jeito. Fui sempre um biscateiro e distribuindo-me em afazeres
variados.
Por morte da minha avó, eu e os meus irmãos, herdámos a quinta e
vendemo-la logo de seguida. De repente acordei rico. Entretanto, conheci a mãe
da minha filha e, em meados da década de 1990, abrimos uma loja de modas e
pronto-a-vestir em Setúbal. Aquilo era uma mina. Era sempre a vender. Ganhei
rios de dinheiro. Cheguei a ter duas habitações na cidade do Sado. Uma delas
com 140 metros quadrados. Tinha também um carro descapotável. O estabelecimento
durou uma década. Foi a separação da minha companheira, levando-me a minha
filha, que me aniquilou. Passei uma noite inteirinha a chorar. Lembro-me, até
escrevi este poema: A dor de não te ter
agride o meu ser/ ver-te, beijar-te e não me pertenceres/ as minhas palavras
não as consegues ouvir/ por muito que eu grite não te fazem viver/ vais crescer
sem mim, que pouco te posso dar/ não é num dia por mês que eu te consigo amar (...).
A partir daí foi sempre a descer até às catacumbas da consumição. Acabei a
perder tudo e a terminar como sem-abrigo, a dormir na rua em cima de papelão.
Cheguei a comer dos caixotes do lixo. Foi então que se cruzou comigo a instituição
Vida e Paz. Ampararam-me e enviaram-me para a Cáritas Diocesana de Coimbra.
Estou a receber o Rendimento Social de Inserção e, com ele, pago um quarto aqui
na Baixa e onde habito. Vou comer à Cozinha Económica. Durante o dia faço
piscinas contando as pedras da calçada. Mas o que posso fazer mais? Estou muito
debilitado, da cabeça e dos pulmões. Tenho uma personalidade muito complexa mas
não faço mal a alguém que seja. Domino os meus medos e as vozes que, por vezes,
me atormentam. Sou a consequência das más escolhas que fiz, reconheço.
Gostava muito de ter uma companheira, mas quem é que me atura? E sei lá
quem vou aturar? Apesar de tudo, sinto-me muito bem aconchegado aqui na Baixa.
Todos me ajudam, me respeitam e tratam bem.”
Sem comentários:
Enviar um comentário