terça-feira, 20 de maio de 2014

A DAMA DO REALEJO



Pouco passava das duas badaladas nos relógios, na tarde brilhante e ensolarada deste último Sábado. O Sol estava quente e de feição e abraçava e beijava sem cerimónia quem com ele se cruzasse nas ruas estreitas que, pelo seu ambiente natural e fresco, o continham no fustigar da canícula. Junto ao Largo do Poço, onde outrora e em décadas de memória funcionou o Salão Brasil e agora o Jazz ao Centro Club, em melodia de fundo, o som arrastado de cavalo cansado, um realejo tocado a manivela chamava a atenção dos alguns transeuntes e outros que paravam, na Rua do Corvo e em frente ao Be Tasty. Mas o que marcava mesmo o contraste entre a máquina ronceira e o silêncio da tarde cálida era o acompanhamento no cantarolar desprendido e ligeiramente rouco de uma dama esbelta em corpo de boneca de olhos verdes e pernas bem torneadas. Com vestir ligeiro e cartola na cabeça, com uma voz afinada e bem timbrada e a fazer lembrar Édith Piaff –artista francesa reconhecida internacionalmente e imortalizada pelo seu estilo de cantar a tristeza-, misturando sorrisos direccionados, a figura desta mulher, como saída da banda desenhada ou de um qualquer museu, prendia os olhos de quem olhava. Enquanto rodava o manípulo com cadência de maestrina, fazendo com o movimento o ar sair em pressão pelos pequenos furos e debitar os acordes, a diva de pronúncia francesa cantava, encantava e distribuía sorrisos sem olhar a quem. Os vários estrangeiros sentados nas mesas em frente ao bonito estabelecimento do Be Tasty como que hipnotizados pela performance e em câmara lenta, hesitavam ora em levar a comida à boca ora em olhar a musa cantante na língua de Asterix. Esta catedral de cultura, onde se realizam serões de poesia e retalhos de prosa, foi até há poucos anos o Centrum Corvo, o sonho interrompido de António Cerveira, que conheci bem e a morte levou antes da sua total concretização imaginária. Nessa altura estava dedicado ao artesanato, a produtos endógenos e a outros planos abrangentes de índole regional. Agora, mantendo os mesmos móveis centenários, a mesma traça e o espírito do meu desaparecido amigo, é uma espectacular casa de hotelaria, de paragem obrigatória e ponto de encontro entre turistas nacionais e estrangeiros.
Mas vamos lá saber quem é a mulher que, arranhando o português, canta em francês: “chamo-me Emmanuelle Rouvray e adoptei o nome artístico “Emma Nivelle”. Sou natural de Poitiers, França. Tenho 46 anos e trabalhava na minha cidade-natal. Faz hoje precisamente sete meses que peguei no meu realejo e abalei rumo ao desconhecido. Estive em Espanha e cheguei recentemente a Coimbra onde fui como que perfilhada pela gerência do Be Tasty. Quanto tempo irei ficar na cidade? Não sei! Nem me interessa saber! Estou de passagem, como todos andamos nesta existência fugaz. Esta minha recente opção de vida é um projecto sem projecto. Viver o momento. Livre e sem compromissos. Não quero mais a vida que levei até há pouco tempo. Quero apenas ser feliz!”