(Imagem da Web)
Escrevi
esta crónica em 2009.
Correndo
o risco do ridículo pela
auto-citação,
creio que vale a pena
perder
três minutos a reler.
Se
por acaso pensa que eu conheço
a
pessoa que relacionou com este
texto,
desengane-se. O que acontece
é
que, infelizmente, este comportamento
hoje
mesmo continua a ser transversal.
A
DOUTORA JOAQUINA (QUE TODOS CONHECEMOS)
Joaquina é entradota nos “entas”. Nota-se bem na sua cara lavrada com rugas enterradas em carradas de rimel e pó-de-arroz. O totó, ou toutiço, no cimo da cabeça é paradigmático e ilustrativo de um respeito que se impõe verticalmente, de cima para baixo. Quando fala os outros, os burros, calam-se! Ai daquele que a contradiga, ou contrarie as suas teses fabulásticas! Gosta de se fazer ouvir! “Gostar” não é bem assim, impõe ser ouvida! As suas frases são eloquentes e carregadas de saber em longa cátedra. Não permite um único erro de linguagem. Ai daquele que escorregue na gramática! Os seus gestos são largos e de grande abrangência intelectual. Que se livre aquele que ousar tratá-la por “você“ e de “você”! Como espada de samurai, corta logo o pio ao ignorante: “você”… “você” é estrebaria! Está a ouvir?!?” E ai daquele que experimente ser surdo ao apelo douto!
Às
vezes, neste mundo de agnosia, de desconhecimento, para
piorar, um ou outra ainda se lhe dirigem utilizando o vocativo
“dona”. “O quê? "Dona"? Isso é
tratamento cerimonioso para uma senhora?” Indigna-se
furibunda, e as maçãs do rosto tornam-se ruborizadas da cor do fogo
-apesar de abominar o vermelho, desses bandidos comunistas que comem
tudo, até crianças ao pequeno-almoço. Só não comem velhinhas.
A vociferar,
continua: “esse tratamento desrespeitoso é para empregada de
limpeza. Está a ouvir? Eu sou licenciada pela Universidade de
Coimbra, está a ouvir? Eu sou uma intelectual. Sabe o que significa?
Eu estudei filosofia. Li Kant e outros filósofos. Nunca ouviu falar,
pois não?” Interroga a doutora Joaquina, do alto do seu
pedestal imaginário, e dirigindo-se ao ser inferior.
A
senhora doutora é viúva. “Não conheceu o meu marido? Não?
Ai!, conheceu de certeza! O meu falecido, que Deus o tenha em boa
guarda (acompanhado do sinal da cruz) era o doutor
fulano de tal, professor de direito, está ver, não está? Pois
claro que está! Ai! –exalando um grande suspiro, como se
estivesse em transe-, quem é que não conheceu o meu marido?!
Era uma beleza de pessoa. Toda a fina-flor da cidade ia lá a casa
pedir-lhe conselhos!”
E prossegue
a defesa da sua arguição, “eram outros tempos! Não têm
nada a ver com os dias que correm, ou decorrem ao sabor da incultura.
Hoje não há valores! Não há princípios! Isto caminha para o
caos, para o fundo! Ai!, no tempo do António (Salazar) é
que era bom! As pessoas respeitavam-se! Hoje não! É uma balbúrdia,
uma desordem sem ponta por onde se lhe pegue! Não sei para onde
caminha a nossa sociedade! (novamente um grande suspiro, a
fazer subir e descer uns seios que já tiveram melhores dias e não
deixam de fixar o chão).
E continua
no seu tom grave de convicção, “já leu o jornal Diabo
desta semana? Não leu? Ai!, tem que ler mesmo! Traz lá um artigo
sobre os computadores Magalhães que é uma maravilha! Está tão bem
escrito! Valha-nos Deus termos um jornal assim para nos dizer as
verdades. Excluindo este meio de informação, a imprensa que grassa
por aí está toda contaminada, é toda comunista! É só mesmo para
pôr a baixo a classe de portugueses que honram a nossa história!
Quem viu este País… Já viu esta dos casamentos homossexuais? Ai
se o meu amado e falecido marido cá viesse... (novamente o
sinal da cruz)! “Que ver-go-nha!” Expressa-se a
sublinhar pausadamente. “Quem havia de dizer que os
paneleirotes haviam de casar! Que Deus me leve depressa desta terra
de perdição…”
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