quinta-feira, 8 de março de 2018

OITO ANOS DEPOIS... CHOVER NO MOLHADO

(Imagem da Web)


Escrevi esta crónica em 2009.
Correndo o risco do ridículo pela
auto-citação, creio que vale a pena
perder três minutos a reler.
Se por acaso pensa que eu conheço
a pessoa que relacionou com este
texto, desengane-se. O que acontece
é que, infelizmente, este comportamento
hoje mesmo continua a ser transversal.


A DOUTORA JOAQUINA (QUE TODOS CONHECEMOS)


Joaquina é entradota nos “entas”. Nota-se bem na sua cara lavrada com rugas enterradas em carradas de rimel e pó-de-arroz. O totó, ou toutiço, no cimo da cabeça é paradigmático e ilustrativo de um respeito que se impõe verticalmente, de cima para baixo. Quando fala os outros, os burros, calam-se! Ai daquele que a contradiga, ou contrarie as suas teses fabulásticas! Gosta de se fazer ouvir! “Gostar” não é bem assim, impõe ser ouvida! As suas frases são eloquentes e carregadas de saber em longa cátedra. Não permite um único erro de linguagem. Ai daquele que escorregue na gramática! Os seus gestos são largos e de grande abrangência intelectual. Que se livre aquele que ousar tratá-la por “você“ e de “você”! Como espada de samurai, corta logo o pio ao ignorante: “você”… “você” é estrebaria! Está a ouvir?!?” E ai daquele que experimente ser surdo ao apelo douto!
Às vezes, neste mundo de agnosia, de desconhecimento, para piorar, um ou outra ainda se lhe dirigem utilizando o vocativo “dona”. “O quê? "Dona"? Isso é tratamento cerimonioso para uma senhora?” Indigna-se furibunda, e as maçãs do rosto tornam-se ruborizadas da cor do fogo -apesar de abominar o vermelho, desses bandidos comunistas que comem tudo, até crianças ao pequeno-almoço. Só não comem velhinhas.
A vociferar, continua: “esse tratamento desrespeitoso é para empregada de limpeza. Está a ouvir? Eu sou licenciada pela Universidade de Coimbra, está a ouvir? Eu sou uma intelectual. Sabe o que significa? Eu estudei filosofia. Li Kant e outros filósofos. Nunca ouviu falar, pois não?” Interroga a doutora Joaquina, do alto do seu pedestal imaginário, e dirigindo-se ao ser inferior.
A senhora doutora é viúva. “Não conheceu o meu marido? Não? Ai!, conheceu de certeza! O meu falecido, que Deus o tenha em boa guarda (acompanhado do sinal da cruz) era o doutor fulano de tal, professor de direito, está ver, não está? Pois claro que está! Ai! –exalando um grande suspiro, como se estivesse em transe-, quem é que não conheceu o meu marido?! Era uma beleza de pessoa. Toda a fina-flor da cidade ia lá a casa pedir-lhe conselhos!
E prossegue a defesa da sua arguição, “eram outros tempos! Não têm nada a ver com os dias que correm, ou decorrem ao sabor da incultura. Hoje não há valores! Não há princípios! Isto caminha para o caos, para o fundo! Ai!, no tempo do António (Salazar) é que era bom! As pessoas respeitavam-se! Hoje não! É uma balbúrdia, uma desordem sem ponta por onde se lhe pegue! Não sei para onde caminha a nossa sociedade! (novamente um grande suspiro, a fazer subir e descer uns seios que já tiveram melhores dias e não deixam de fixar o chão).
E continua no seu tom grave de convicção, “já leu o jornal Diabo desta semana? Não leu? Ai!, tem que ler mesmo! Traz lá um artigo sobre os computadores Magalhães que é uma maravilha! Está tão bem escrito! Valha-nos Deus termos um jornal assim para nos dizer as verdades. Excluindo este meio de informação, a imprensa que grassa por aí está toda contaminada, é toda comunista! É só mesmo para pôr a baixo a classe de portugueses que honram a nossa história! Quem viu este País… Já viu esta dos casamentos homossexuais? Ai se o meu amado e falecido marido cá viesse... (novamente o sinal da cruz)! “Que ver-go-nha!” Expressa-se a sublinhar pausadamente. “Quem havia de dizer que os paneleirotes haviam de casar! Que Deus me leve depressa desta terra de perdição…

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