(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Tenho dias que creio não pertencer a esta
época hodierna. Sinto que sou do passado, filho de um tempo que já não é o
nosso. Tenho saudades desse período. Era uma época em que tudo rolava devagar.
O vento soprava, a neve caía, o Sol brilhava e nós dávamos conta dos seus
efeitos. Sabíamos que quando os raios solares batessem na esquina da sapataria
do senhor “Manel” seria meio-dia. O
astro-rei era o nosso relógio natural. As pessoas transitavam calmamente nas
ruas com um sorriso colado no rosto. Íamos à mercearia da esquina e o senhor
Salomão, o dono, de bata acinzentada, atendia-nos um quilo de açúcar a granel
retirado da tulha e, às vezes, enganava-se no peso. As coisas não eram
previsíveis. Para alcançar fosse o que fosse era preciso percorrer a pé uma
longa estrada forrada a paralelepípedos, pedras acinzentadas em cubos. Em todos
os largos floridos da cidade havia crianças a jogarem à bola.
Hoje é tudo muito rápido. Os dias, como
mensageiro apressado em levar a boa-nova, passam por mim sem os ver. Não porque
não tenha folga. Tenho muita; demasiada. Então porque passa o tempo a correr,
como se quisesse fugir de mim? Sei lá! Provavelmente os meus olhos já não são
os mesmos. Endureceram e deixaram de se fixar nas coisas simples, como, por
exemplo, um louva-deus a pousar na soleira da porta. Se calhar noutro tempo,
talvez por ser mais novo, ainda que sofregamente, queria somente viver. Agora,
mais velho, no epílogo da vida, tento apenas sobreviver –não que o faça de
qualquer forma e feitio. Isto é, que passe por cima de tudo para o conseguir.
Por agora ainda não. Amanhã sei lá?! Ninguém sabe o que acontecerá daqui a um dia.
Por enquanto consigo pensar. E ao reflectir liberto-me. É como se me dividisse
em dois e, pelas metades, ficasse mais aliviado. Atenuado sim, mas não com as
preocupações resolvidas. Tento ir ao fundo das coisas e perguntar porque são
assim e não são de outro modo? Andamos todos ao engano. Como náufragos perdidos
na imensidão, agarramo-nos a tudo, sobretudo à paganística secular, para chegar
a terra-firme, como quem diz, a amanhã. Fugimos a toda a pressa da jornada de
hoje. À noite, quando nos deitamos na cama, cansados de tanta falta de perspectiva
e sem vislumbrar a luz ao fundo do túnel, em vez de rezar como antigamente e
agradecer a Deus a graça de mais um dia passado, respiramos fundo e pensamos: “ufa! Este já está! Vamos lá ver o próximo!”.
A sensação é sempre de perda. É como se sentíssemos que os sonhos
construídos ao longo da nossa vida são agora farrapos a esvoaçar ao vento.
Sentimos que estamos todos a entrar pelo cano que leva ao lago da imundície. Entre
todas, a maior tragédia que alguém pode suportar é o perder tudo o que foi
conseguido com suspiros de amor e lágrimas de sangue. É sentir que se foi um
mero passageiro sem história, uma nuvem sem corpo, um inútil que não serviu
para nada. Tudo o que se fez, como pingos de chuva no areal, se esvaiu no
vazio. Uma coisa é nunca ter alcançado um estado de conhecimento, mantendo-se
na ignorância, outra é enxergar, vivê-lo e, como se apagasse tudo com uma esponja,
ser obrigado a regressar ao ponto de origem como num eterno retorno
probabilístico.
As notícias, ainda que pareçam de esperança,
são cada vez mais tristes e desanimadoras. Em metáfora, estamos à beira de um
abismo, à espera de acontecer qualquer coisa que, embora previsível, não se
sabe bem o que é. Há cerca de uma semana foram presos altos quadros do Estado.
Nesta última sexta-feira, também por suspeitas de corrupção foi detido para
interrogatório um ex-Primeiro Ministro. Dando pulos, deveríamos exultar de
alegria e gritar que, afinal, a justiça é para todos. Ai é? Como é imensa a
nossa ingenuidade! Como poderemos acreditar que somos todos iguais quando
intrinsecamente somos diferentes? Para alguns, quando os meios de defesa,
na contratação de grandes advogados, são tão díspares como é a desigualdade entre
a pulga e o elefante. Sabe-se, tudo reside numa questão de prova. Está bem!
Está certo! Mas e o mal que nos fizeram, sobretudo, na última década? É difícil
de vislumbrar o probatório? Onde estão os responsáveis pelo nosso empobrecimento?
Em nós, claro! “Gastámos de mais!” –fazem-nos crer, desvalorizando a nossa
inteligência.
O problema é que não sabemos para que lado
cair na avaliação racional. Tomamos o todo, como global que está doente, cancerígeno?
Ou, na dúvida que nos faz conter a irracionalidade e nos dá fé no futuro,
apreendemos que é simplesmente uma parte que tem metástases e ainda se salva
uma outra fatia maior do todo? E se nos andamos a enganar uns aos outros e isto,
este Portugal onde nascemos e crescemos, não tiver salvação?
Sabemos que este Governo é fraco na convicção
que transmite ao povo, não tem autoridade legitimada –não porque não ganhasse
as eleições, mas porque os atentados contra os cidadãos são tantos que lhe
retiram a autoridade moral para continuar a governar. Toda a cúpula do Estado
está entregue a pessoas ora sem passado político, ora com passado demasiado
ligado às patranhas e negociatas. Mas e o governo que vier a seguir? Será
melhor? Claro que não. Para além da corrupção, há muita manipulação política
por detrás e ficamos sem saber onde começa a verdade e acaba a mentira. Em
teses de conspiração, há um movimento deliberado e direcionado para derrubar
este executivo, mais de acordo para se substituir com as convicções partidárias
de cada um –“porque não serve o povo”,
diz-se e a maioria de nós concorda. Porém, poucos acreditam de que o interesse do País
esteja em primeiro lugar. O Governo está transformado num Robim dos Bosques ao
contrário: assalta os mais desfavorecidos, essencialmente os que estão no meio
da tabela, para entregar de mão-beijada aos grandes grupos económicos. E o que
vier a seguir? A mesma coisa, idem aspas, aspas. Este é o verdadeiro drama. É
como se, de espada empunhada, se lutasse contra o vento. E o mais grave é que
este sentimento de ditadura para a classe média perpassou para as autarquias. O
comportamento é igual como papel mata-borrão. Buscam apenas o poder para,
depois de o conseguir, manobrarem a máquina administrativa no oceano dos seus
interesses, colocando os amigos nos pontos-chave, distribuindo empregos aos correligionários
e sobrecarregando os munícipes com mais taxas –tantas vezes disfarçadas de
impostos.
A ignorância é uma pandemia e a maioria dos cidadãos já nem lê
jornais. E muito menos está interessada na verdade factual que lhe permita
pensar e retirar uma ilacção própria, sua, livre e sem ser conspurcada em
motivações políticas alheias. Em metáfora, é como se passássemos a emprenhar
pelos olhos. Vivemos no meio de um universo de informação que, em vez de
informar, desinforma e, sem grande subtileza, pode servir vários interesses,
todos, menos o esclarecer o cidadão. A sensação que se tem é que andamos todos
cada vez mais perdidos e sem saber para onde caminhamos. Que saudades que eu
tenho de outros tempos! Estou velho, eu sei!
1 comentário:
Amigo:
Nos meus tempos livres, uso a fotografia para parar o tempo. No meu "hard drive" açambarco perto de noventa mil fracções de segundo, segundos e até películas com exposições de alguns minutos não só daquilo que me rodeia, como os eventos no seio da minha grande família da qual sou fotógrafo do dia até mesmo quando para o ser não sou convidado, mas em especial de momentos que procuro capturar para neles tentar reconhecer um pouco de mim e deixar registado o que aos meus olhos parece ter eterna venustidade.
Como imagina e sabe pois também retrata, fácil é focar, medir a luz, escolher a velocidade da cortina -especialmente nos dias de hoje, em que podemos de certo modo confiar nos computadores que integram as nossas chamadas câmeras fotográficas - e deprimir o obturador para registrar mais um ano de vida do nosso avô, o baptismo de um sobrinho, uma assada de sardinha com os amigos! Difícil é, ao capturar um pequeno riacho no meio de um bosque transmitir o sossego do lugar, fazer quase ouvir o murmurar das águas rodopiando nas pedras como música de fundo ao chilrear dos pardais, apenas no um pequeno rectângulo de papel depois de queimado e banhado por alguns químicos.
A esse poder de transmitir algo mais, nas telas, nos livros, na música, nos palcos e até nas ruas eu chamo arte. E é à procura dessa arte que eu vou enchendo o meu álbum de fotografias. No dia em que a encontrar na minha fotografia ao nível que a encontro aqui neste artigo por si e sua arte escrito serei um homem bem mais feliz e finalmente poderei dizer: eu, Álvaro, fotógrafo.
Os meus parabéns.
Com um abraço
Álvaro José da Silva Pratas Leitão
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