Os relógios bateram há pouco as onze badaladas
neste primeiro dia de Novembro, conhecido há mais de um século pelo povo como
Dia de Finados, dia dos mortos, em respeito por quem partiu, elegia à vida.
Retirado do calendário como Dia Santo, pelo Governo, a maioria dos
estabelecimentos comerciais na Baixa estão abertos ao público mas, na
generalidade, sem ninguém a comprar. Mesmo as poucas lojas de flores estão sem
gente. Os passantes olham para os cravos e crisântemos como um elefante olha
para um quadro de Picasso.
Está um tempo acinzentado. Respira-se uma
estranha apatia no ar, uma atmosfera que se apanha numa qualquer localidade
costeira com a neblina a envolver, a tomar o passo e a refrear a ansiedade. Os
transeuntes, de rosto fechado, sem grandes manifestações de alegria e como se
transportassem o credo na boca, calcorreiam
as ruas calcetadas desta parte velha.
A Praça 8 de Maio, há poucos anos, quando era
Dia Santo estaria cheia de flores e com o seu perfume a entrar na Igreja de
Santa Cruz e a invadir tudo em redor, agora, sem cheiro como num deserto de
areia, está abraçada pela modorra colada e incómoda. Nas portas da autarquia uma
agente da Polícia Municipal olha o Céu e, quem sabe, dará graças a Deus por ter
trabalho ainda que pouco profícuo na data de hoje. No largo, junto ao monumento
ao descanso dos trabalhadores romenos, a lembrar o São Martinho e um comércio em desaparecimento, um casal, a senhora Natália e o marido, e a senhora Adelaide, ambos
vendedores de castanhas, estão junto dos carrinhos anodizados e harmonizados
pelas normas securitárias da Comunidade Europeia -creio, poucos se terão
apercebido da transformação. Estão a destruir o património cultural, a memória do povo! Por que é que quem manda é tão estúpido? Não
haverá alguém que impeça este genocídio cultural? Era bom saber quantas pessoas
morreram nas últimas décadas por efeito dos carrinhos tradicionais.
Na rampa de acesso à Rua Visconde da Luz, o
Pino, o vendedor da revista Cais, que
já faz parte da paisagem urbana, está sentado no parapeito de pedra e, pelos
traços do rosto, demonstra pouco ânimo em continuar e está arrumar as coisas
numa sacola.
A dois passos, não fossem os sons melódicos de dois músicos e estaríamos
na cidade do silêncio. Junto ao novo
ou velho banco Espirito Santo, a
cantar, ironicamente, a “menina dos olhos tristes”, de José Afonso. Mais à frente, na Rua Ferreira Borges, junto ao
Milénio BCP, novo ou velho, o Luís Bartolesi
a soprar o seu saxofone, a arrancar uma melodia tristonha faz gelhas na sua
fronte.
Não se avistam crianças a cravar uma moeda com
os saudosos “Bolinhos e Bolinhós”.
Esta manifestação cultural e popular, tão arreigada à prática de antanho, está
em coma e, perante a indiferença da maioria, vai morrer. No seu lugar, para uma
elite, está a nova moda importada dos Estados Unidos, a noite de halloween. Como se precisássemos de Bruxas para levar a saudade! Mais à frente a Celeste
Correia, a mulher de todas as causas, veste um colete vermelho da Liga contra o
Cancro e tenta cravar os amigos, os conhecidos e outros tantos com uma moeda.
O Largo da Portagem, como de costume,
apresenta-se bem. As lojas da Rua de Sargento-Mor, tal como as restantes,
apresentam-se vazias de clientes. Na Praça do Comércio, em frente à Igreja de
São Tiago, o Cadaxo, um caminheiro solitário
destes becos e ruelas, entretém-se a dar pão aos pombos e, sem humanos para
trocar ideias, monologa com os animais voadores.
Na Rua das Padeiras, a dona Paula, florista e proprietária
da Orquídea Silvestre, está à porta.
Adianta-me que o Dia de Finados morreu. Devido ao Governo ter enterrado o
feriado, poucos são os que ainda compram flores para os cemitérios. Servem-se
de algumas rosas e outras plantas simples dos seus jardins.
No Mercado Municipal Dom Pedro V, embora se
apresente bastante florido, já não é como antigamente em que, neste dia, a flor
era a rainha da antiga praça citadina.
No andar superior, uma vendedeira, a meu
pedido, confidenciando que foi pior a emenda que o soneto, aproveita para interrogar:
“o Governo, ao pretender abolir o este
dia para aumentar a produtividade, rebentou com a venda de flores e velas. O
País ganhou alguma coisa com a troca?”
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