É terça-feira, o relógio marca 22h00 na velha
Cabra, na torre da Universidade. Apesar do dia, enquanto a luz perdurou, ter
sido fastidioso e fustigado pela chuva, a noite apresenta-se fria mas
escorreita e, em nome do santo de todas as caminhadas, gera vontade de se
entrar nela, usufrui-la e sentir o pulsar da vida.
Acabei de jantar e apeteceu-me um café. Saí de
casa e atirei os pés à calçada. Fui atraído pelo som ritmado de música no “Be Fado”, na Rua do Corvo. Dirigi-me na
sua direcção. À frente do estabelecimento estão várias mesas e, apesar da
atmosfera gélida, um homem, sentado, enrola um cigarro. Através da montra, vejo
lá dentro dois músicos. Anteriormente vi-os a tocar na rua larga. Com uma voz
clara e acompanhados dos trinados das violas dão alegria e, num ambiente
agradável, fazem bater palmas a cerca de uma dezena de clientes.
Prossigo visando a Praça 8 de Maio. Como é
hábito, é minha intenção ir beber o café à catedral da Baixa. Dou com as bentas
na porta. Ora bolas!, pensei. Eu já sabia mas esqueci que o “Café Santa Cruz” estava encerrado para
limpezas até ao próximo dia 13. Inverti a marcha. Não há problema, dei por mim
a pensar, há mais cafés por aí abertos. Apesar de só uma ou outra pessoa se
cruzar comigo e o Centro Histórico parecer uma aldeia grande, ainda é cedo.
Coloquei as minhas botas na Rua Visconde da Luz. O café “Nicola” está encerrado. Mais à frente, o Mário, o funcionário de “A Brasileira” está à porta a despedir-se
do último cliente. Já tem a máquina do café desligada. Despedimo-nos com
cordialidade e avanço para o Largo da Portagem. A “Briosa”, o “Montanha” e o
“Toledo” já estão encerrados. Desço as
Escadas do Gato, não há estabelecimentos de hotelaria abertos, e sigo para a
Praça do Comércio. Na “Taberninha” um funcionário está a recolher as cadeiras da esplanada. Ao lado, o Vítor, o
empregado do “Café Praça Velha”
carrega sobre o regaço os chapéus que dão colorido às cadeiras do terraço.
Pergunto se ainda dá para beber um café. Diz que sim. Entro e o senhor Fernando,
mesmo com os manípulos da máquina já lavados, serve-me uma bica. Ao lado o “Praça Café”
tem as luzes apagadas.
Entro na Rua das Azeiteiras. O restaurante “Zé Neto” ainda tem clientes na sala e
mantém a porta entreaberta. Ao lado, a “Adega
do Funchal” tem uma mesa com fregueses mas já tem a porta cerrada.
Continuo. A “Viela” está aberta e tem
dois clientes. Mais à frente uma pequena casa típica está aberta. A dois passos
à frente o restaurante “O Giro” está
a encerrar. Ao cabo da rua, o “Solar do
Bacalhau”, a “Cozinha”, no espaço
do desaparecido “Kanimambo”, e o “Calado e Calado” estão ainda com
clientes no interior. Atravesso o Largo das Ameias, está tudo encerrado e não
se vêem transeuntes. Uma prostituta, que me conhece, olhou para mim, mas não me
deu importância, mais que certo por não ser o peixe para a pescaria que ela
pretendia. Vou para a Rua Adelino Veiga. Sem me cruzar com alguém, chego ao
Restaurante “Paço do Conde” e,
através dos vidros, verifico que ainda estão clientes no seu interior mas a
ambiência é de despedida. Como barco a sulcar as águas do oceano, em passo
rápido prossigo e atravesso as vielas, os becos e ruas estreitas. Estou na Rua
da Gala e está tudo encerrado. Estou agora no Largo das Olarias e, apesar do tempo
gelado e curiosamente, não se avistam sem-abrigo a dormir no chão e no
resguardo dos edifícios revestidos a mármore frio. Na Rua da Louça, o pequeno “Café
do Fernando” está com luz e dois clientes fazem-lhe companhia. Entro na Rua da
Moeda, o café “Sanzala” –mais conhecido
pelo “café da Cacilda”- está aberto e
ouvem-se vozes femininas misturadas com masculinas. Estou próximo da Praça 8 de
Maio. Já agora, por interesse em saber o que está ainda a funcionar, atravesso outra
vez a velha praça de Sansão. Reparo que o restaurante “Carmina de Matos” tem dois clientes sentados no interior. Passei o
átrio da Câmara Municipal vazio de pessoas e estou agora na Rua da Sofia. Só as
luzes dos carros que se cruzam dão cor e movimento à centenária rua das escolas
e recentemente classificada com Património Mundial. Avisto várias pessoas ao
longe com camisolas de cores berrantes. Junto às pastelarias Palmeira e Sírius, em frente, ambas encerradas, sou interpelado pelo grupo.
O MEDO COMO FADO
São quatro casais espanhóis, de Burgos.
Olhando-me com algum temor, interrogam-me onde fica o “Café Santa Cruz”. Querem ouvir fado de Coimbra. Informo-os de que
está fechado para limpezas. Ofereço-me para os levar à “Capela”, um outro local onde a canção
de Coimbra, bem cantada e postal ilustrado da cidade, pela elevada
qualidade, se confunde com a velha igreja onde está implantado. Certamente por
não haver ninguém em redor, o grupo olha-me com alguma desconfiança. Tive de
demonstrar a minha seriedade por palavras. Marchamos em direcção à “Capela”, na Rua Corpo de Deus. Enquanto
caminhamos vamos falando. Admiram-se de esta parte da cidade não ter vida e
perguntam-me se é seguro andar por aqui. Dizem-me também que são parte de um
universo de centena e meia de confrades que estão alojados no “Hotel Vila Galé”. E chegamos ao Largo da
Vitória, à entrada da velha capela de Nossa Senhora da Vitória. Faço o meu
papel de embaixador citadino e preparo-me para os deixar ao porteiro,
recomendando que os trate bem porque fazem parte de mais cento e cinquenta que
estão hospedados no “Vila Galé”.
Começo a despedir-me de “nuestros
hermanos” e dando por concluída a missão de boa vontade que, a meu ver,
cabe a todos quantos moram por cá. É então que, para minha surpresa, as
mulheres não querem entrar na “Capela”.
Fiquei sem saber se o fizeram por não querer pagar 10 euros por pessoa, com
consumo incluído –que é uma ninharia tendo em conta a elevada qualidade
apresentada pelo estabelecimento-, se tiveram temor de alguma outra coisa. Dou
por certo que foi o medo anteriormente sentido pelo silêncio das ruas que acabou
por as tomar de assalto.
Voltei com eles e tentei indagar da recusa. Um
dos espanhóis, mais falador, arguiu: “mulheres!
Tu não sabes como elas são? Temos de voltar aqui, mas sem elas. Sozinhos!”.
No retorno, ofereci-me para os levar a uma
outra casa, “A Diligência”, na Rua
Nova, mas recusaram. Voltavam para o hotel, disseram. Ainda os tentei
encaminhar para o “Be Fado”, na Rua
do Corvo, mas declinaram.
Em resumo final, estou em crer, que o vazio e
a falta de animação das ruas da Baixa da cidade, pela pouca fé dos hoteleiros
no geral, está a minar o futuro e a prejudicar todos. Talvez valesse a pena
pensar nisto.
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