LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Para além do texto "UMA CALÇADA ARMADILHADA", deixo também as crónicas "A MANGO CONTINUA ENTRE NÓS"; "DIREÇÃO DO RANCHO DE COIMBRA DEMISSIONÁRIA"; "REFLEXÃO: O DIA DE FINADOS QUE MORREU".
UMA CALÇADA ARMADILHADA
Edmar Ferreira, funcionário da firma A.
Loureiro, e Gualter Oliveira, proprietário da Ourivesaria Marialva, vizinhos,
porta com porta na Rua Visconde da Luz, já perderam a conta às vezes que saíram
espavoridos das suas lojas para darem uma mão a alguém que se estatelou em
frente aos seus estabelecimentos.
Segundo Edmar Ferreira, “sabe o que é, Luís, o passeio deu-se, cedeu, e está completamente
desnivelado. As pessoas vêm descansadas e, de repente, falta-lhes chão. Ainda
ontem uma senhora caiu aqui. Corri para ela e ajudei-a a erguer-se. Perguntei
se tinha ficado ferida mas respondeu que não. A esfregar os joelhos, mais que
certo com dores, lá seguiu a coxear em sobe e desce e em busca de uma calçada
menos agressiva.”
Também Gualter Oliveira está
desgostoso com a armadilha que está à sua porta e acrescenta: “quando chove ficam aqui umas poças de água
e ainda é pior! Isto está uma lástima!”
De salientar que, no geral, os pisos em
calçada portuguesa em toda a Baixa está uma calamidade. Os buracos com falta de
pedras são incontáveis. A situação não está pior por que alguns comerciantes,
dentro das suas possibilidades, vão remendando, ora calcetando, ora colocando
cimento para que ninguém se magoe. Está de ver que, quando se chega a este
ponto, alguma coisa não bate certo. Estes arranjos minimalistas não dão
sorrisos e simpatias para o executivo? Sei lá! Se calhar não!
A MANGO CONTINUA ENTRE NÓS
Há cerca de duas semanas escrevi aqui que a
Mango, na Rua Ferreira Borges, corria risco de vida, sobretudo a sua
permanência na Baixa. Havia um diferendo, uma questão a resolver de aumento de
renda, entre o atual proprietário e o inquilino, o comerciante que explora a
marca e que detém também uma grande loja no Fórum
Coimbra. Ambos estavam dentro da sua legitimidade. O primeiro, o
proprietário, argumentava que a renda praticada há vários anos estava muito
abaixo e o segundo, o locador, como é natural, invocava que o aumento seria
incomportável para o momento comercial e ameaçava abandonar o Centro Histórico.
Sem me alongar, dentro de uma escrita de
influência –que é o modo como me coloco-, procurando o melhor para todos,
entrevistei um dos dois proprietários que pretendia legitimamente elevar o seu
rendimento patrimonial e publiquei no jornal O Despertar. Consegui que da sua parte houvesse um comprometimento
de que, de facto, também procurava o melhor para todos. Ou seja, era sua
intenção chegar a acordo com o seu inquilino. E foi o que aconteceu. Através de
uma fonte que pediu o anonimato, soube que ambos chegaram a bom termo e a marca
Mango, para gáudio de todos nós, vai manter-se por cá.
Gostava de conseguir descrever o quanto sinto
regozijo por perceber que, quer o dono do prédio da Mango quer o arrendatário,
ambos, sem descurar o seu proveito individual, puseram o interesse social acima
do pessoal. Ora quando assim é, sem dúvida que estamos perante cavalheiros de
calibre singular. Por isso mesmo, para os dois, uma enorme salva de palmas! Em
nome dos cinco funcionários da Mango, em nome da Baixa, se posso escrever
assim, muito obrigados!
DIRECÇÃO DO RANCHO DE COIMBRA DEMISSIONÁRIA
A Assembleia Geral, marcada para as 20h00, de
quinta-feira da semana passada, nos editais distribuídos pela Baixa e publicado
n’O Despertar, começou uma hora
depois, às 21h00, no Rancho das Tricanas de Coimbra. A reunião prometia fazer
correr insultos e mais que desse. Ao que parece, em agosto, um ensaio de
folclore acabou em ensaio de pancadaria entre mulheres e sentia-se a tensão
entre o grupo de cerca de uma vintena de associados presentes. Como em tudo o
que são movimentos associativos de pessoas, há sempre duas correntes, uma que
vai na onda e outra que vai contra.
A liderar a assembleia, como presidente
eleito, no meio da mesa, estava Carlos Clemente –que, embora o Rancho se
mantivesse inativo durante os últimos anos, até ao anterior sufrágio, e durante
vários mandatos, comandou uma das mais antigas coletividades da Baixa de
Coimbra. Ao seu lado direito, acompanhado por alguns membros do atual
executivo, estava Luís Montenegro, o presidente da direção.
Mal começou o congresso, imediatamente,
estalaram as hostilidades contra Montenegro. Lançado por uma associada, caiu
logo um petardo de “mentiroso”. A
coisa prometia serrabulho. A assistência, com uma vontade danada de despejar o
que levava na alma e atropelando-se nas intervenções, como se estivesse no
Coliseu Romano, revolvia-se inquieta e pedia sangue. Como um sino a bater
Trindades, uma voz proclamava: “Eu quero
saber da minha carta de demissão!”
Clemente, adivinhando violência verbal, puxou dos
seus galões de apaziguador e ao mesmo tempo ia contando aquela história velha e
nossa conhecida: “no meu tempo era
assim!”. O problema era que ali havia demasiada areia para a sua camioneta e acabou a enfiar os pés pelas mãos. Ora misturava o seu papel de presidente
da assembleia, onde há necessidade de ser árbitro imparcial, ora amassava
reivindicações de associado comum e fazia de relator com perguntas. Para
seguidamente, centralizando tudo, dar as respostas carregadas de paternalismo
para com Montenegro e admoestando a assembleia: “não podemos sacrificar o senhor presidente da direcção. Provavelmente
ele delegou nas pessoas erradas!”. Ocupando todo o espaço áudio, impunha
silêncio e reinava na pequena sala onde a ignorância geral se apanhava às
pazadas. Não dava a palavra a alguns sócios que, alegadamente, não teriam as
quotas em dia –estes defendiam que não puderam pagar por não saberem o seu
número de associado e mais coisas e tais. Montenegro, ao lado de Clemente,
enfiado na cadeira, como passarinho
encolhido, como se apelasse a um qualquer santo “tira-me daqui”, via, ouvia, abanava a cabeça e nada dizia. Lá no
canto da sala um já desaparecido ensaiador que faz tijolo há muitas décadas, em foto a preto e branco, parecia
ensimesmado com tudo o que se estava a passar à frente dos seus olhos e não
parecia querer sair da terra onde jaz e voltar para o meio daquele forrobodó. Até a Tricana de Coimbra, bem retratada na tela, provavelmente por
António Vitorino na década de 1930, estava incomodada com a situação e sugeria
querer dizer: “levem-me daqui!”
No calor da noite e da discussão
cruzada, dois associados ameaçaram abandonar a sessão mas, depois de divinos apelos
à serenidade, lá voltaram a sentar-se. E mais uma vez se ouviu: “eu quero saber da minha carta de demissão!”
No fim do encontro Luís Montenegro assumiu
que, pelos interesses da coletividade, estava a tentar que a direção não caísse
mas, perante o que se passou nesta Assembleia Geral, não estava para aguentar
tanto desaforo, -que lhe tirava anos
de vida, descanso e dinheiro- e iria apresentar a sua demissão.
Vamos aguardar as cenas dos próximos
capítulos.
REFLEXÃO: O DIA DE FINADOS QUE MORREU
Os relógios bateram há pouco as onze badaladas
neste primeiro dia de novembro, conhecido há mais de um século pelo povo como Dia de Finados, dia dos mortos, em
respeito por quem partiu, elegia à vida. Retirado do calendário como Dia Santo,
pelo Governo, a maioria dos estabelecimentos comerciais na Baixa estão abertos
ao público mas, na generalidade, sem ninguém a comprar. Mesmo as poucas lojas
de flores estão sem gente. Os passantes olham para os cravos e crisântemos como
um elefante olha para um quadro de Picasso.
Está um tempo acinzentado. Respira-se uma
estranha apatia no ar, uma atmosfera que se apanha numa qualquer localidade
costeira com a neblina a envolver, a tomar o passo e a refrear a ansiedade. Os
transeuntes, de rosto fechado, sem grandes manifestações de alegria e como se
transportassem o credo na boca,
calcorreiam as ruas calcetadas desta parte velha.
A Praça 8 de Maio, há poucos anos, quando era Dia Santo estaria cheia de flores e com
o seu perfume a entrar na Igreja de Santa Cruz e a invadir tudo em redor,
agora, sem cheiro como num deserto de areia, está abraçada pela modorra colada
e incómoda. Nas portas da autarquia uma agente da Polícia Municipal olha o Céu
e, quem sabe, dará graças a Deus por ter trabalho ainda que pouco profícuo na
data de hoje. No largo, junto ao monumento ao descanso dos trabalhadores
romenos, a lembrar o São Martinho e um comércio em desaparecimento, um casal, a
senhora Natália e o marido, e a senhora Adelaide, ambos vendedores de
castanhas, estão junto dos carrinhos anodizados e harmonizados pelas normas
securitárias da Comunidade Europeia -creio, poucos se terão apercebido da
transformação. Estão a destruir o património cultural, a memória do povo! Por
que é que quem manda é tão estúpido? Não haverá alguém que impeça este
genocídio cultural? Era bom saber quantas pessoas morreram nas últimas décadas
por efeito dos carrinhos tradicionais.
Na rampa de acesso à Rua Visconde da Luz, o
Pino, o vendedor da revista Cais, que
já faz parte da paisagem urbana, está sentado no parapeito de pedra e, pelos
traços do rosto, demonstra pouco ânimo em continuar e está arrumar as coisas
numa sacola. A dois passos, não fossem os sons melódicos de dois músicos e
estaríamos na cidade do silêncio. Junto ao novo
ou velho banco Espirito Santo, a
cantar, ironicamente, a “menina dos olhos
tristes”, de José Afonso. Mais à frente, na Rua Ferreira Borges, junto ao
Milénio BCP, novo ou velho, o Luís
Bartolesi a soprar o seu saxofone, a arrancar uma melodia tristonha faz gelhas
na sua fronte.
Não se avistam crianças a cravar uma moeda com
os saudosos “Bolinhos e Bolinhós”.
Esta manifestação cultural e popular, tão arreigada à prática de antanho, está
em coma e, perante a indiferença da maioria, vai morrer. No seu lugar, para uma
elite, está a nova moda importada dos Estados Unidos, a noite de halloween. Como se precisássemos de
bruxas para levar a saudade! Mais à frente a Celeste Correia, a mulher de todas
as causas, veste um colete vermelho da Liga contra o Cancro e tenta cravar os
amigos, os conhecidos e outros tantos com uma moeda.
O Largo da Portagem, como de costume,
apresenta-se bem. As lojas da Rua de Sargento-Mor, tal como as restantes,
apresentam-se vazias de clientes. Na Praça do Comércio, em frente à Igreja de
São Tiago, o Cadaxo, um caminheiro
solitário destes becos e ruelas, entretém-se a dar pão aos pombos e, sem
humanos para trocar ideias, monologa com os animais voadores.
Na Rua das Padeiras, a dona Paula, florista e
proprietária da Orquídea Silvestre,
está à porta. Adianta-me que o Dia de
Finados morreu. Devido ao Governo ter enterrado o feriado, poucos são os
que ainda compram flores para os cemitérios. Servem-se de algumas rosas e
outras plantas simples dos seus jardins.
No Mercado Municipal Dom Pedro V, embora se
apresente bastante florido, já não é como antigamente em que, neste dia, a flor
era a rainha da antiga praça citadina. No andar superior, uma vendedeira, a meu
pedido, confidenciando que foi pior a emenda que o soneto, aproveita para interrogar:
“o Governo, ao pretender abolir o este
dia para aumentar a produtividade, rebentou com a venda de flores e velas. O
País ganhou alguma coisa com a troca?”
Sem comentários:
Enviar um comentário