quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

UMA RUA EM LIQUIDAÇÃO





A mensagem, como folha seca tocada pelo vento, atravessou esta semana as ruas, becos e ruelas da Baixa: “a Românica vai fechar!”
É certo que o Diário de Coimbra desta última terça-feira, na página 30, titulava: “Românica com campanhatudo a metade do preço – Mudança de actividade é o motivo da campanha que começa hoje e se prolonga até fim de stock”, mas, apesar disso, a notícia não evitou a especulação.
A Românica, com sede na Rua Adelino Veiga, é um ”conglomerado” de várias lojas juntas e com vários artigos, desde brinquedos, roupa para criança, malas e carteiras para senhora, e prendas para homem. Depois de outras grandes marcas terem desaparecido desta outrora importante artéria da cidade e terem deixado esta área quase sem vida, a Românica é um dos últimos pedaços de alma que resta numa Baixa em constante perecimento. Se vier a encerrar esta zona comercial leva um enorme rombo na sua já débil força anímica.
Como é normal, comecei por indagar alguém muito próximo e que me confidenciou que “a única informação que sei é que vai mudar de actividade. Está tudo a ser tratado muito no segredo dos deuses. Para além dos patrões, trabalham ali seis funcionários.”
Hoje de manhã fui directo à fonte tentar saber alguma coisa para escrever o mais correcto possível e não embarcar no boato. Como conheço pessoalmente o homem forte da Românica, Paulo Ramos –conheci-o no início do milénio na ACIC, Associação Comercial e Industrial de Coimbra-, entrei no estabelecimento disposto a fazer as perguntas necessárias para elaborar o texto. Lá dentro havia um movimento desmesurado de clientes e não notado em outras lojas da Baixa. À senhora que estava na caixa –que vim a saber ser irmã do meu conhecido-, depois de cumprimentar, pedi se poderia falar com o Paulo Ramos. “Quem devo anunciar?” –interrogou a senhora. Luís Fernandes, comerciante aqui na Baixa. O Paulo conhece-me. Tenho um blogue e escrevo essencialmente sobre o que se passa na vida comercial desta zona, aleguei. “Um momento”, retorquiu a senhora e pegando no auscultador do telefone. A resposta foi dada assim: “o doutor Paulo está em reunião e não pode atender. Quer deixar recado?”
Perguntei se poderia falar com a sua irmã –que não conhecia. “Sou eu”, respondeu. Num momento de menor fila para pagamento, baixinho, atirei a pergunta de chofre: em face desta “liquidação”, é verdade o que se consta, que vão fechar? “Sobre isso não sei nada! O doutor Paulo é que sabe! Não posso dizer nada!”
Entretanto, um cliente a pagar interrogou: “vão fechar?”. Respondeu Paula Ramos ao inquiridor: “não, não! É a promoção do mês!”
Em constatação final –e para mim já não é surpresa, já que há vários anos me dou conta-, apreendo que o segredo é a alma do desfecho.

UM POUCO DE HISTÓRIA

Diz quem sabe que a história deste grande estabelecimento “é muito gira”. Tudo teria começado em 1950 pela mão do “velho” Serafim Ramos –homem muito trabalhador, com rasgo para o negócio e com um talento invulgar para o desenho, dom que, pela opção pelo comércio, nunca teria sido explorado devidamente.
Alegadamente, ainda miúdo, iniciou a sua vida de trabalho, como balconista e pau para toda a colher –como era normal na época-, no Tapas, uma reconhecida tasca típica ainda em actividade na Rua das Rãs, junto ao Largo das Ameias. Diz a minha fonte que pede o anonimato, “como nos contos de fadas, apareceu um grande amor –a matriarca da família Ramos-, professora e primogénita de uma família abastada”. Ora, está de ver e em juízo de valor, o Serafim, pessoa humilde e filho de pais sem grandes posses, mais que certo para cair nas boas graças dos sogros e provar-lhes que era merecedor da herdeira e, sobretudo, um homem digno, sério e trabalhador, deixou o Tapas e, com uns dinheiros emprestados a juros, começou a vender brinquedos num vão de escada de uma das entradas de um dos edifícios da actual Românica. Comercialmente, foi crescendo e, de um canto limitado em espaço e sem grandes condições, foi alargando e deu origem ao Bazar de Coimbra, um dos alguns outrora existentes na rua do poeta morto Adelino Veiga e que, por isso mesmo, viria também a ser conhecida pela rua dos bazares. A família foi aumentando e deu origem a cinco filhos. Sempre em crescendo, foi adquirindo os edifícios em volta e assim nasceu a Românica, um ícone ligado a brinquedos no Centro Histórico. No pico do auge comercial da Baixa, “na década de 1980, teria tido entre vinte a trinta funcionários”.


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