Durante cerca de quatro décadas fui amante do
meu carro. Por volta de 1977, comecei por ter um mini –usado que me custou 25
contos, vinte e cinco mil escudos, hoje 125 euros. Outros minis usados e de
outras marcas se seguiram dentro do mesmo preço e nunca excedendo os 50 contos.
Em 1990 tive o privilégio de sentir o cheiro a novo de uma carrinha utilitária a
estrear –é um odor inconfundível e marcante. É excepcional. Nunca mais passa da
nossa memória.
Sempre a subir na escala do bem-estar, em 2000
comprei uma carrinha topo de gama –como quem diz com um custo acima da média.
Enquanto a desgraçada viatura aguentou e esteve na minha posse fui afortunado com
ela. Até que um dia, como um sonho que se apaga, partiu e com ela a certeza de
que nunca mais iria ter uma igual. Desde que me deixou comecei a interiorizar
que só nos faz falta o que temos, e mesmo com menos poderemos ser felizes. Apesar
de ainda ter uma carrinha ronceira para questões de trabalho, comecei a
virar-me para os transportes públicos. Como é óbvio, numa substituição
inevitável, perdemos umas coisas para ganhar outras. Então, paulatinamente, fui
conquistando uma liberdade que nunca tivera e desconhecia. Sobretudo em viagens
de longo curso, tenho possibilidade de pensar, posso ler o meu jornal descansado, posso dormir, ou fazer algo que
gosto muito: apreciar o comportamento das pessoas que viajam ao meu lado. Imagino que há muitas mulheres sozinhas por opção e o gato passou a ocupar o lugar do homem. Quando a lei obriga a respeitar o mais fraco é porque a sociedade está doente. Estamos no tempo da futilidade. Há muitos terramotos invisíveis. Somos um país dividido entre o religioso e o profano, numa justiça que tarda, e a várias velocidades.
Já vi um pouco de tudo e escrevi em postal ilustrado. Sou assim, temos pena. Já notei o quanto custa a caçança na Transdev de Coimbra. Já apreciei um gesto
solidário de um motorista e o seu contrário. Já constatei que praticamente a
leitura em papel dentro de um autocarro desapareceu. Perante a passividade de
todos, já vi dar milho aos pombos dentro da gare de Coimbra e sem um reparo.
Já assisti a um diálogo quase impossível
de reproduzir entre um casal de meia-idade, em que o homem, pela força do (mau) hábito e num quadro à
portuguesa tão nosso conhecido de outrora -e novamente na actualidade-, por tudo e por nada, oferecia pancada
à mulher em cada frase saída da sua boca. Era uma adjectivação de tratamento
humano ao contrário. Em vez dele dizer “está
bem, querida”, vociferava e retorquia: “tu
és uma besta! Está mas é calada antes que leves um sopapo!”
Em mais uma viagem em direcção ao interior, há
dias assisti a mais um quadro cada vez mais recorrente e que, sem oposição, invade
a nossa esfera privada. Ainda o autocarro da Transdev não tinha o motor ligado e,
no seu interior, já uma mulher de meia-idade falava ao telemóvel. Falava não é
bem, gritava porque todos os passageiros gramavam a sua conversa. Durante mais de
quarenta e cinco minutos, e num percurso maior que vinte quilómetros, a mulher
debitou toda a sua vida. Só faltou mesmo referir as suas contas bancárias e as
quecas que deu na semana anterior.
Com a viatura parcialmente cheia,
notava-se que os passageiros faziam um esforço para não ouvir mas o metralhar
era tão intenso que impedia, por exemplo, alguns de se concentrarem na leitura
dos tablet’s e computadores portáteis. Escrevendo pelo que senti, tive de
interromper a leitura do jornal porque, perante o ribombar da voz da mulher,
não me conseguia reconcentrar. Aquilo começou a irritar-me profundamente. Comecei
a imaginar um plano para lhe mostrar o ridículo a que se estava expor. E se eu ficcionasse
uma conversa ao telemóvel e, como se falasse com alguém, retratasse o que se
passava? Foi então que, como se a dama adivinhasse os meus pensamentos,
subitamente a conversa acabou –presumo que por falta de bateria ou porque caísse
a chamada. Como sou um grande cromo e nunca resisto a intervir, em face do
silêncio sepulcral que caiu no espaço ambulante, atirei: já acabou? Não pode
ser! Quero mais! Não me pode deixar assim! Não aguento o silêncio!
Como picada por um alfinete, a
mulher içou-se na cadeira e, como raio de luz, percorreu todo o seu espaço
visual. Levantei o braço e disse: fui eu!
Mas um azar nunca anda sozinho.
Passados dez minutos tocou o meu telemóvel e eu, contrafeito, atendi ainda que
sumariamente para não dar nas vistas e fazer o mesmo. A mulher, mais uma vez,
soergueu-se para ver se era mesmo eu que falava ao telefone. Aposto que se
sentiu vingada.
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