(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)
Em jeito de auto-análise catártica e psicanalítica,
começo com uma confissão e uma ressalva. Como confissão, declaro: sou um grande cromo –diz-se assim de certas
personagens que, algumas sendo patetas, tendo um comportamento considerado
estranho pela maioria, pelo excêntrico, ridículo, ou demencial, se tornam alvo
de chacota. Em constatação societária, a maioria de vezes são desprezados em
vida e amados na morte pela colectividade. Para alguns elementos da comunidade,
tendo acoplado a demência, são conhecidos como os “loucos da cidade”. É uma loucura simpática. São sombras de nós. Outras vezes são considerado lixo urbano. É habitual misturar alhos com bugalhos. Para
outros, cuja vizinhança nem aquece nem arrefece, considerando-os invisíveis, são
personagens triviais que, vivem e convivem em completa liberdade de circulação
e, por serem irresponsáveis civil e criminalmente, no actuar sem medir as consequências dos seus actos por vezes estapafúrdicos.
Na destrinça do comum pelo seu interagir, transformam o meio onde se vive pela
quebra de rotina e evitando que esta seja sempre igual.
Entre membros ditos normais, há
um sentimento comum perante o cromo: uma manifesta superioridade existencial.
Como ressalva, escrevo porque gosto. Com
objectividade, se tiver a pretensão de responder à razão por que redijo com
alguma assiduidade e acutilância, bom, isso já é mais complicado. Costumo dizer
que, por um lado, porque fui bafejado com este talento –passando a imodéstia-
tenho obrigação de o desenvolver pro bono,
gratuitamente, e desempenho este papel
como missão. Por outro, talvez devido às minhas origens humildes, gosto de
intervir onde estou inserido socialmente e ser a ampliação do grito rouco do
oprimido –talvez uma manifestação de superioridade, em silogismo, vaidades
individualistas, de que falava Nietzsche na “Origem da Tragédia”. Em resumo sou um bom cromo que caberá bem numa das minhas descrições acima
referenciadas.
Depois deste salvo-conduto, e mesmo que
incorra nos mesmos erros regularmente, saliento que odeio o pedantismo, a cagança, o apresentar-se como superior, sócio-económico, ético e moralmente. Somos todos iguais em pelo menos dois momentos da vida: no
nascimento e na morte. Ainda que a circunstância e o meio envolvente possa
diferenciar, todos vemos a luz da mesma maneira e deixamos de a enxergar do
mesmo modo. Penso que, a começar por mim, não temos noção de quanto somos frágeis,
a balouçar no abismo, e estamos a prazo enquanto andamos por cá. Na morte lava-se a alma. Tenho momentos
gravados na memória e que me fizeram ver o quanto somos desprovidos de importância
para a natureza. Esta trata-nos com frieza mas com completa equidade entre os
seres vivos e todas as coisas. Já tive vários cães e alguns deles morreram
praticamente nos meus braços. Antes de os enterrar, por momentos e numa espécie
de oração terrena, fiz comparação entre o que foram a calcorrear o jardim e o
que eram naquele momento em que estavam hirtos e prestes a se transformarem em pó
na cova aberta para o efeito. Depois, passando para os humanos, já convivi de
perto com a morte e esta não me mete medo. É apenas uma passagem entre um estado
anímico de vontade e perda de sentidos e de agnição. Lembro-me, há cerca de 15
anos, quando o meu pai faleceu e que acompanhei de perto. Em analogia, pude
verificar, mais uma vez, que –mesmo com direito legítimo de respeito enquanto
pessoa-, após a perda de conhecimento, somos apenas um símbolo ainda físico por
pouco tempo e depois recordação para os mais próximos, uma coisa sem qualquer valor de mais e que se vai misturar nos
elementos. Numa nova experiência, há duas semanas fui reconhecer um corpo que
estava congelado num dos muitos gavetões do HUC, Hospital da Universidade de
Coimbra. Mais uma vez constatei a demasiada importância que nos damos enquanto
vivos. Em metáfora, se um dia pudesse regressar após a passagem do túnel que
divide a existência gostava de me rir na cara de uns tantos ainda vivos e que
se julgam uma espécie especial, uma casta superior.
Mesmo que seja apenas agora, ao ler
esta crónica, talvez valha a pena pensar nisto.
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