Meu caro Carlos Cidade, espero que esta minha
carta o vá encontrar de boa saúde que eu, na companhia de muito lixo e já muito
cansado de andar a pregar como um vendedor de banha da cobra, cá vou resistindo
graças ao altíssimo, que apesar de também não me atender as preces, aparentemente
vai cuidando da minha saúdinha. Não sei se Ele o faz por sadismo, para me testar
e me obrigar a demonstrar a minha tenacidade, se, sei lá, me designou a missão
de chatear o meu caro amigo –que, pela sua sensibilidade de interajuda, até
sabe que gosto de si- e outros seus colegas de vereação e, como não podia
deixar de ser, também o camarada presidente, que não vai à bola comigo nem que
eu fosse uma gaja boa.
Então é assim, meu amigo, vou direito ao que
me levou a escrevinhar estas frases mal-amanhadas. O assunto é a situação insustentável
do lixo espalhado diariamente em algumas artérias e largos da Baixa. Como sabe,
já várias vezes levei ao seu conhecimento este anómalo facto. E confesso-lhe,
apetece-me desistir. Se não fosse o facto de ter fé que o meu amigo ainda vai
ser presidente da Câmara e, dando-me um lugar de assessor, juntos vamos dar a
volta a isto, nem ligava nenhuma. É que a persistência de quem não se importa
nada com o alindamento desta zona histórica é inversa à importância que dou a
este caso. Ou seja, quem coloca os detritos a qualquer hora do dia na via pública
continua a fazê-lo sem desistir e eu, pobre velho e coitado, vou desistindo de
me aborrecer com quem o faz. Penso que o amigo, pelo tempo que leva de
experiência autárquica, já viu que denunciar alguma coisa, dando a cara, e
actuar, é só mesmo para gente doida –ou então, como é o meu caso, que espere um
lugarzito bem remunerado no futuro já que o meu presente, num embirrento
passado, já há muito que deixou de o ser e, a sê-lo, é cada vez mais um
presente envenenado.
Bem sei que o seu tempo é
precioso e deveria ser mais sucinto. Desculpe lá! Mas agora sim! Agora vou
direitinho ao facto. Então aí vai: já há muito tempo que o Largo da Freiria está
transformado em montureira –penso que deve estar a ver onde é este largo, onde presumivelmente
no princípio do Renascimento teria havido freiras virgens. Coisa rara, já sei,
mas isso não é conversa para aqui. É de tal modo habitual que quando não temos
lixo na rua a ser farejado por um ou outro cão até ficamos preocupados e, de
boca-em-boca, a pergunta arrasta-se: o que teria acontecido? Não sei se está a
ver a coisa, numa espécie de síndrome de vasculho, pela agressão continuada, por
tanto sermos lixados, passámos a amar o agressor lixeiro. Nos últimos tempos
até andamos de olho nos sacos a ver se encontramos um nome, um endereço, para
agradecer tão nobres lembranças. Mas, se calhar, pela falta de capacidade
investigativa a coisa está difícil.
Continuando, não foi o caso de ontem que, durante todo o dia, teve
os restos mortais de uma cozinha e outros dejectos exposto para quem passou.
Foi uma felicidade para todos nós podermos cheirar aquele perfume encantador.
Gostos não se discutem, e pronto! É amor declarado de um outro nosso vizinho
anónimo, e mais nada! Hoje, por volta das 9h30 o cenário era pior do que ontem-
quer dizer pior para quem avalie assim. Eram uns sacos pretos e muita roupa,
desde calças a blusões, em bom estado. Ver os transeuntes pararem e, meio
envergonhados, a vasculhar é um procedimento digno de caso de estudo. Os
lamentos são assim: “dizem que há crise?
Crise onde? Ai que roupinha tão boa! Se eu tivesse um saco ia levar à Casa dos
Pobres!”. Passava alguém seu conhecido e a pessoa, justificando-se, dizia: “é para levar à Casa dos Pobres! Não é para
mim… que graças a Deus não preciso!”. Fosse ou não fosse, lá levou uma catrafada de têxteis.
Agora vamos ao lado sério da coisa, desta vez
a sorte sorriu para nós e, ao remexer nos sacos, encontrámos o nome da nossa
vizinha generosa –sim, porque era mulher. Então, porque estamos perto do Dia da
Cidade, achámos que a esta senhora deveria ser atribuída a medalha da cidade.
Vai daí, eram 9h40, ligámos para a Polícia Municipal (PM) –atendeu-nos a agente
Brigite- e contámos que era preciso identificar a contemplada. Esperámos,
esperámos pelas forças municipais mas ninguém apareceu. Acha bem, camarada
Cidade? Foi então que, uma hora depois, vimos sair alguém do andar em
referência e, através do aviso de que a PM estaria para chegar e, mais que
certo, deixaria uma lembrança à volta de 30 euritos, o personagem, com a nossa
ajuda apanhou o lixo e levou-o aos contentores do Bota-Abaixo.
Através de perguntas bacocas, peço-lhe uma
opinião: acha que a PM se importa com estes desvios procedimentais? Não veio
porque é uma questão menor de cidadania? O que nos aconselha? Devemos continuar
a ligar ou não vale a pena?
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