LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Para além do texto "REFLEXÃO: HUMILDADE DE NATAL", deixo também as crónicas "UMA TARDE DE SÁBADO QUE ATÉ PARECIA NATAL"; "O VITOR APAIXONOU-SE POR UMA BRASILEIRA"; e "O QUE É PARA SI O NATAL?".
REFLEXÃO: HUMILDADE DE NATAL
Quem faz o favor de ler o que escrevo, provavelmente, já viu que, tantas vezes com pouca humildade, gosto muito de mandar
bitaites. Por conseguinte, reconheço que, mais que certo, consigo ser mesmo
irritante pelo aparente espírito de superioridade que transparece dos meus
escritos. Mas, acreditem-me, a acontecer, não é isso que me move nem o que pretendo.
Na maioria das vezes rio para não chorar. Escrevo porque gosto e, chamando a atenção
pública, procuro ser proactivo mas, de fragilidade assumida, gostaria de
confessar que faço este exercício essencialmente para expurgar os meus
fantasmas.
E faço esta ressalva em jeito de contrição e
simplicidade para desejar a todos um Feliz Natal e um Bom Ano com coragem e
muita esperança no amanhã. Muito obrigado à direção d’O Despertar pela
possibilidade de me deixar depurar o que me vai na alma. Muito obrigado a todos
pela pachorra que tendes para me aturar semanalmente.
UMA TARDE DE SÁBADO QUE ATÉ PARECIA NATAL
Faltam quatro dias para o Natal. Para a maioria
de comerciantes com quem tenho falado é uma época para esquecer, comparando com
o ano anterior e apenas para relativizar já que desde há uma década que o
negócio tem vindo a baixar drasticamente. Como animal que, pelas mudanças de
ambiente na natureza, é obrigado a adaptar-se às circunstâncias, o comerciante,
sempre a encolher-se é cada vez mais um sitiado encostado na parede e que já
não pode recuar mais. Desde a publicidade até comunicações e hábitos, já cortou
onde podia e por isso mesmo olha para o céu em busca de uma estrela brilhante
que lhe indique o caminho e lhe dê esperança para um Ano Novo que, tal como os
impostos, está prestes a entrar sem pedir licença e a fazer parte da sua vida
atribulada de preocupação.
Durante a semana vê-se a Baixa muito
despovoada de pessoas nas ruas e os estabelecimentos, com patrões e empregados
de braços cruzados à espera de quem não prometeu vir, disso mesmo dão conta.
Durante o passado Sábado as artérias desta
zona velha estiveram movimentadas com grande fluxo de transeuntes. Durante a
manhã esteve animada com a atuação dos Dixie
Gringos e uma feira de Artesanato Urbano a decorrer entre a esplanada do
Café Santa Cruz e as Ruas Visconde da Luz e Ferreira Borges –na minha
avaliação, a intencional vontade camarária de deixar livre a Praça 8 de Maio
resultou muito bem e trouxe alguma dignidade a este vetusto largo em frente ao
Panteão Nacional.
Mas o pleno, a invasão de gentes de todos os
quadrantes e vindas não se sabe de onde, foi mesmo durante a tarde.
Praticamente com todas as lojas de comércio abertas ao público foi um encanto
sentir esta área de antanho a reviver tempos idos de saudade e a vibrar de
emoção. Em complemento, a contribuir para a vinda de uma parte da cidade fugida
que, como caracol a esticar da concha e a espreitar o sol, aos poucos está
redescobrindo uma zona de encantar, foi também o espetáculo das “montras vivas”, em que em muitas
vitrinas de vários estabelecimentos estiveram manequins de carne e osso. A
verdade é que este evento, pela diferença para melhor, veio dar um outro colorido
e alegria a esta parte histórica. Portanto, estão de parabéns a APBC, a Agência
para a Promoção da Baixa de Coimbra, e a Câmara Municipal de Coimbra, parceiros
neste projeto “Natal Baixa de Coimbra
2014”. Com um orçamento racional, sem exageros e envolvendo várias
entidades, estão a fazer-se coisas interessantes.
Se é certo que muita parra não é sinónimo de
muita uva, mesmo em meio silogismo há sempre algo de verdade: havendo gente há
sempre negócio para os lojistas em geral. Creio por isto mesmo que todos, mas
todos, ficamos mais contentes e a ganhar, quer quem veio de novo em visita
sentiu um terno reconforto com o que viu e levou para casa uma enorme vontade
de voltar, quer quem por cá tenta ganhar a vida e experimentou uma nova
esperança, mais viva e reforçada.
O VITOR APAIXONOU-SE POR UMA BRASILEIRA
Durante os últimos três anos o Vitor Costa foi
um carismático personagem da Baixa de Coimbra. À quinta-feira a vender o Campeão das Províncias e à sexta a levar
a todos, personalizadamente, O Despertar,
o Costa era já por direito próprio, conquistado a pulso pela sua forma simples
de ser, um ícone desta zona velha. Não alcançou este estatuto somente por ter
sido o primeiro a fazer renascer a velha profissão de ardina, também mas nada
disso. Por detrás do ofício está o homem, um homem despretensioso, generoso por
vezes, até quando a luta pela sobrevivência o permite ser. E o Vitor é assim
mesmo.
A maioria de nós apreende apenas o que os
olhos veem. Tantas vezes, pegamos num livro, que nos chama a atenção,
unicamente pela capa bem construída e luzidia, pelo título original ou pelo
nome do feitor nosso conhecido e badalado nas colunas sociais. Em contraste
absoluto, deixamos um outro de encadernação simples de cartão, obra de escritor
desconhecido e edição de autor. No entanto, se tivermos a sorte de folhear o
segundo, não será de admirar se a sua leitura suplantar em muito e nos abrir
outras fronteiras que o primeiro, o do consagrado pelos holofotes, nem de longe
conseguiu. Somos animais inteligentes que reagem, facilmente e de sobremaneira,
aos estímulos e acreditam facilmente no que apenas os olhos passam ao cérebro.
Em analogia, daí o êxito da publicidade, sabendo todos que nos transmite umas
ideias erróneas tomamo-la como verdadeira. Para além disso somos seres de
hábitos, de rotinas, e miméticos, de imitação graciosa. Se o nosso vizinho crê
que determinado produto é bom, logo, é meio caminho andado para também
acreditarmos que o é. Ou seja, facilmente aceitamos os modelos –tantas vezes
medíocres e destruidores de valores positivos e necessários à sociedade- e os
estereótipos como verdadeiros sem questionarmos a sua experimentação e fundamentação.
E o caso do Vitor é bem o paradigma de tudo o
que mostrei em cima. Para muitos que lhe adquiriam os jornais, tomavam a sua
imagem como um todo, um produto acabado. Um ardina, um vendedor de jornais, sob
um ponto de vista restritivo e discriminador, se faz o que ninguém mais quer,
não pode ser mais nada do que o que faz. Isto é, a profissão desempenhada é uma
espécie de extensão do homem, o seu cartão de identidade, e valerá mais ou
menos consoante seja ou não classificada pela comunidade.
Ora o Costa, a morar na zona da Lousã e
divorciado, que já fez de tudo nesta sua vida de meio século, é um artesão de
excelência e um bom pintor de telas e aguarelas. Quantos sabiam disto?
Naturalmente poucos. Mas a notícia que me levou a escrever esta crónica foi
outra: o Vitor Costa está, há cerca de um mês no Brasil. Através da Internet,
começou a namorar com uma brasileira há meses e, para meu gáudio e contentamento
–que, preso aos meus lugares-comuns, tantas vezes o adverti: cuidado! Muito cuidado com as brasileiras!-
está muito bem. Quase sem palavras, onde a felicidade parecia querer saltar, telefonou-me
há pouco a desejar bom Natal e a dizer que está com o coração a transbordar de
alegria e muito feliz. Que história contada assim não gostaria de ter um final
tão profícuo? Segundo, as suas palavras, em Fevereiro voltará para arrumar aqui
a sua vida e regressará de vez ao país descoberto por Cabral e onde o Cristo
Rei abre os braços aos portugueses.
A cidade e a Baixa, pelos vistos, perderam um
bom ardina e um grande embaixador de um tempo de memória mas não se desperdiçou
o amigo. Ficará para sempre na nossa recordação. Muita ventura é o nosso desejo,
Vitor Costa. Ficamos todos a torcer para que esse grande amor dê certo. És um
bom homem e mereces tudo o que a sorte te possa retribuir em função da tua humildade,
meu amigo. Feliz Natal!
O QUE É PARA SI O NATAL?
O senhor
Alonso Sayal é um recatado prosador e poeta anónimo. Acompanhado da amargura
que, como trituradora, consome a sua alma, não gosta de se expor e só com
grande persistência minha me vai mostrando alguma coisa. Se vivêssemos num país
de reconhecimento, creio, este homem teria montes de livros publicados entre
poesia e prosa. Como estamos numa terra onde o talento tem um valor muito
relativo, quase despiciente, continua a escrever para o fundo da gaveta. Como é
de prever, um dia, no calor de uma fogueira ou num amontoado de lixeira, o
espírito destes escritos vários de uma vida, em fluidos, se libertará das
amarras que os mantém presos à recordação. No ano passado, por esta altura,
deixou-me um belo poema com o título “Recordação”.
Desde há cerca de dois anos que é um
visitante, semanal e amiúde, dos meus e dos seus dias. Diz-me muitas vezes que
não tem com quem conversar e, dentro dos seus 86 anos, conta-me retalhos da sua
existência, em desabafo. Sempre que tenho tempo, porque também gosto de
cavaquear mas sobretudo ouvir as muitas histórias algumas de desencanto e
outras de alegria, durante mais de uma hora, lá desenrolamos o novelo das
nossas fragilidades de humanoides a termo existencial.
A semana
passada, em conversa sobre esta quadra natalícia que atravessamos, de supetão,
atirei ao meu amigo Sayal: para si, o que
é o Natal? Entre frases curtas, médias e mais compridas foi-me contando a
sua interpretação e não pensei mais no assunto. No dia seguinte, para minha
surpresa, em 4 páginas manuscritas, veio trazer-me a sua versão escrita em
prosa poética. Espantoso! Muito obrigado, meu amigo Sayal. Feliz Natal e um
Novo Ano com muita esperança.
FILHOS DO NADA E ENTEADOS DO NATAL
Encontro-o todos os dias na Praça do Comércio,
logo ao abrir da aurora. O cenário é sempre o mesmo: um homem sentado, rodeado
de gente mas sozinho, de mão estendida a dar comer a um grande número de pombos
e a falar com eles como se tratasse de pessoas. Antevê-se naquele quadro da
natureza uma estranha simbiose entre pessoa e animais. A algumas aves trata-as
por nome próprio. Num jogo de ilusão onde a mentira ocupa uma realidade
necessária à sua coexistência pacífica e isolada, julga que os pássaros
reconhecem o chamamento personalizado e carinhoso. Como cartão identificador,
tem sempre consigo um pacote de vinho tinto. Os seus olhos avermelhados mostram
que a sua ligação umbilical ao sangue de
Cristo é inseparável e constitui o viagra reanimador para endurecer e não
ceder à moleza deste tempo de Natal. A sua indumentária, de calça curta e um pé
desmesuradamente grande, tem algo de personagem cénico, de romance infantil, a
lembrar Charlot. Como inadaptado ao progresso e ao futuro, parece transmitir que
o tempo passou mas ele mantém-se inamovível e continua a olhar as estrelas, a
contá-las e a imaginar desenhos em noites de luar.
O Cadacho é um vigilante do nada. Numa
imaterialidade, vazio como alma em busca de um encosto, há no entanto nele algo
de tangível que se adivinha. Um pouco de tudo. Uma projeção de todos nós. Já
foi criança, já foi homem –no sentido da utilidade societária, porque sem préstimo
o humano torna-se coisa-, já foi empregado, já foi patrão, já foi pau-mandado a troco de qualquer coisa. Já
foi significado de respeito. Agora, significante de sombras, faz que faz apenas
para se manter ocupado sem nada fazer. De propósito, no orgulho de que quem
roga é subalterno, não pede nada a ninguém mas, implicitamente, pede alguma
coisa, quanto mais não sejam dois minutos de atenção e se puderem ser
acompanhados com umas frases tanto melhor. Embora quando fala procure ser
rebuscado na verve, não quer saber se a conversa conduz a algum lado e se as
palavras têm profundidade ou fazem sentido na semântica. Nesta paisagem urbana,
onde a palavra em diálogo é apenas património de alguns, é um ator de silêncios
fechado sobre si mesmo e na sua aura de mistério. Talvez para não esquecer a
diferença entre ele e os passarinhos que alimenta, mesmo sem se pronunciar, só
procura mesmo alguém que lhe dê atenção e nada mais. E se houver quem lhe puxe
pela língua, como em passe de mágica, torna-se imaginativo e conta histórias
efabuladas de encantar. As suas narrativas vão desde uma riqueza acumulada numa
casa na Beira até mirabolantes notícias sobre si mesmo publicadas num grande
jornal nacional.
O Cadacho é um calcorreante
destas pedras pisadas sem dó nem piedade, onde tanto carrega o rico, de peito
ufano, face emproada e que nunca se apercebe onde põe os pés, como o pobre, de
cabeça baixa, que só conhece a distância que vai do chão até à altura do seu
olhar. É um passageiro efémero do tempo enquanto este mesmo tempo se dignar
dar-lhe tempo. Não tem conhecimento de política. Não sabe. Não quer saber.
Limita-se a sobreviver. Pede apenas que o deixem viver neste mundo em que um
dia lhe perdeu o palco e passou a espectador. A sua rotina, de dias em cima de
dias, é sempre igual. Levanta-se com o sol a espreguiçar e a acordar para a
manhã, ingere uma sopa e bebe um copo, enfatiza. Durante a jornada come o que
calha. Ao cair do crepúsculo regressa ao leito onde enterra os fantasmas e
regurgita os sonhos sempre virados para trás. Nada mais! Não há Páscoa por si
louvada nem Natal sem solidão. São celebrações que vê nos outros, imagens
rápidas a piscar, movimentos de silhuetas nos transeuntes apressados que passam
em busca de uma felicidade para si há muito perdida.
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