O homem de aspecto cadavérico está deitado na
cama do hospital. De face encovada, tez amarelada e barriga saliente que se
eleva no plano horizontal do lençol, está sozinho no quarto branco. Hirto, de
pálpebras cerradas, não fosse o arfar contínuo, espaçado em tiques de
sofrimento, e parecia estar sem vida. No pequeno compartimento sente-se o silêncio
e recolhimento que se respira nas catedrais. Aquele ambiente granítico, impessoal,
que entra dentro de nós e nos faz sentir partículas de um todo que tem uma
história e está a prazo no espaço de tempo que lhe foi dado como mistério de
dádiva divina.
É terça-feira à noite e falta um dia para o
Natal. O homem que descrevo, de cinquenta anos de idade, está no chamado
corredor da morte. Resultado de uma curta existência de excessos, entre tudo o que poderia encurtar a sua actividade, ele está ali, quem
sabe, a negociar mais tempo e a tentar agarrar-se à vida que desperdiçou de uma
forma inglória, sem fama e sem prestígio para quem viveu com a sua
idiossincrasia, na sua egoísta passagem terrena.
A família foi avisada de que a
qualquer momento poderia ocorrer o último sopro. É uma questão de horas. Muito contra
a vontade de alguns familiares, a mãe do enfermo, mesmo arrastando-se numa
cadeira de rodas foi despedir-se do seu amado, carne do seu ventre, espírito de
si mesma. Para ela, aquele corpo inerte e sem mexida continuava a ser o seu
menino que viu nascer, espernear, crescer, e agora morrer. Chegou junto do
moribundo e, baixinho, como se temesse que a sua voz pudesse magoar o doente,
proclamou: “meu filho! Meu amado filho!” –e
as lágrimas, como torrente em descongelo de nevada, arrastaram todos os sulcos
daquela pele enrugada pelo tempo e caíram em catadupa. E eis o grande enigma da
força que anima os humanos: o homem abriu as pálpebras. Sem pestanejar e de
olhar mortiço, a respiração tornou-se mais apressada e entrecortada. Sem o
conseguir, mais que certo em profundo desespero de sentidos, ele buscava todas
as forças do fundo da sua alma para apanhar uma só palavra e poder presentear o
seu amor existencial. Mas nenhum grito saiu. Só a abertura dos olhos
permanecerão para sempre na memória de quem assistiu. Ali, à frente da família,
estava um filho a comunicar mentalmente com a sua mãe e, quem sabe, a querer
transmitir: “perdoa-me, mãe, o quanto te
fiz sofrer! Desculpa, querida, o quanto fui imerecido da vida que me deste.
Obrigada, mãe, por tudo quanto fizeste por mim! Parto do nosso meio com a
certeza de que fui muito amado! Bem-haja mãe!”
Passada meia dúzia de horas o Paulo Fernando Carvalho Pereira faleceu.
Morreu hoje, véspera de Natal, durante a manhã nos HUC, Hospitais da
Universidade de Coimbra. Não deixa de ser irónico, atentemos. Uma pessoa que
desprezou a sua própria vida, desvalorizando-a de uma maneira atroz, morrer a
poucas horas do símbolo da luz existencial da humanidade, o nascimento do
Menino Jesus.
Até sempre, meu amigo Paulo. Por tudo, pelas
alegrias e mesmo até pelas tristezas que nos deste –fruto, quem sabe, de um
caminho que tinhas reservado e traçado em destino-, foi um gosto ter-te entre
nós. Descansa no sono eterno dos justos. Já pagaste tudo. Estás perdoado por
todos! Paz à tua alma!
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