Encontro-o todos os dias na Praça do Comércio,
logo ao abrir da aurora. O cenário é sempre o mesmo: um homem sentado, rodeado
de gente mas sozinho, de mão estendida a dar comer a um grande número de pombos
e a falar com eles como se tratasse de pessoas. Antevê-se naquele quadro da
natureza uma estranha simbiose entre pessoa e animais. A algumas aves trata-as
por nome próprio. Num jogo de ilusão onde a mentira ocupa uma realidade
necessária à sua coexistência pacífica e isolada, julga que os pássaros reconhecem
o chamamento personalizado e carinhoso. Como cartão identificador, tem sempre
consigo um pacote de vinho tinto. Os seus olhos avermelhados mostram que a sua
ligação umbilical ao sangue de Cristo
é inseparável e constitui o viagra reanimador para endurecer e não ceder à
moleza deste tempo de Natal. A sua indumentária, de calça curta e um pé desmesuradamente
grande, tem algo de personagem cénico, de romance infantil, a lembrar Charlot.
Como inadaptado ao progresso e ao futuro, parece transmitir que o tempo passou
mas ele mantém-se inamovível e continua a olhar as estrelas, a contá-las e a
imaginar desenhos em noites de luar.
O Cadacho é um vigilante do nada. Numa
imaterialidade, vazio como alma em busca de um encosto, há no entanto nele algo
de tangível que se adivinha. Um pouco de tudo. Uma projecção de todos nós. Já
foi criança, já foi homem –no sentido da utilidade societária, porque sem
préstimo o humano torna-se coisa-, já foi empregado, já foi patrão, já foi pau-mandado a troco de qualquer coisa. Já
foi significado de respeito. Agora, significante de sombras, faz que faz apenas
para se manter ocupado sem nada fazer. De propósito, no orgulho de que quem
roga é subalterno, não pede nada a ninguém mas, implicitamente, pede alguma
coisa, quanto mais não sejam dois minutos de atenção e se puderem ser acompanhados
com umas frases tanto melhor. Embora quando fala procure ser rebuscado na verve, não quer saber se a conversa conduz a algum lado e se as palavras têm profundidade
ou fazem sentido na semântica. Nesta paisagem urbana, onde a palavra em diálogo
é apenas património de alguns, é um actor de silêncios fechado sobre si mesmo e
na sua aura de mistério. Talvez para não esquecer a diferença entre ele e os passarinhos
que alimenta, mesmo sem se pronunciar, só procura mesmo alguém que lhe dê
atenção e nada mais. E se houver quem lhe puxe pela língua, como em passe de mágica,
torna-se imaginativo e conta histórias efabuladas de encantar. As suas
narrativas vão desde uma riqueza acumulada numa casa na Beira até mirabolantes
notícias sobre si mesmo publicadas num grande jornal nacional.
O Cadacho é um calcorreante
destas pedras pisadas sem dó nem piedade, onde tanto carrega o rico, de peito
ufano, face emproada e que nunca se apercebe onde põe os pés, como o pobre, de
cabeça baixa, que só conhece a distância que vai do chão até à altura do seu
olhar. É um passageiro efémero do tempo enquanto este mesmo tempo se dignar
dar-lhe tempo. Não tem conhecimento de política. Não sabe. Não quer saber.
Limita-se a sobreviver. Pede apenas que o deixem viver neste mundo em que um
dia lhe perdeu o palco e passou a espectador. A sua rotina, de dias em cima de dias, é sempre igual. Levanta-se com o Sol a espreguiçar e a acordar
para a manhã, ingere uma sopa e bebe um copo, enfatiza. Durante a jornada come o
que calha. Ao cair do crepúsculo regressa ao leito onde enterra os fantasmas e
regurgita os sonhos sempre virados para trás. Nada mais! Não há Páscoa por si louvada
nem Natal sem solidão. São celebrações que vê nos outros, imagens rápidas a
piscar, movimentos de silhuetas nos transeuntes apressados que passam em busca
de uma felicidade para si há muito perdida.
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1 comentário:
Amigo
Por aqui no pequeno meio portucalense, (somos um pouco mais de quatrocentas mil almas Lusitanas, as registradas na nossa embaixada em Otawa) costumamos ouvir dos que por alguma razão estão satisfeitos, a frase -encheu-me as medidas!
Estou emigrado há tanto tempo que nem sei se também é usada por aí, mas permita-me usá-la sobre este seu artigo.
Esta sua redação encheu-me as medidas.
À medida que fui lendo, e muito rapidamente, fui transportado até à minha Aeminium e como que entre ondulante tinta-dos-pobres ouvi o misterioso anacoreta suplicar entre o arrulhar dos pombos saltitando em frenesim, depenicando migalhas de pão que roubadas à própria boca lhe vão dando a certeza de não estar só e que algo há que dá validade à sua vida pois precisa de si.
Abençoado o tinteiro que contém tão bom líquido chinês que depois de mergulhado o leve aparo produz este tipo de escrita. Escrita tão fina que dispensa o uso do também desaparecido mata-burrão .
Um obrigado em forma de abraço
Álvaro José da Silva Pratas Leitão
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