“MEMÓRIAS À VENDA EM FEIRAS DEBAIXO DE TECTO”
(Reportagem em final de curso de
jornalismo, a envolver quatro antiquários de Coimbra, realizada por Filipa
Magalhães, em 2012)
“Alessia é uma estudante italiana
de Erasmus que está, de momento, perdida entre as severas estantes de uma das
lojas de antiguidades de Coimbra. “De vez em quando encontro algo, outras vezes
é difícil, como agora”. Diz preferir estes estabelecimentos às habituais
livreiras já que as obras para além de serem “mais baratas” são “antigas”. Mas
há mais para além dos vetustos títulos.
Entre o pó, a ferrugem, o encanto
e as (re)lembranças, em Coimbra, são quatro homens que deslizam e fazem as
lojas de antiguidades correr. Correr contra tudo, contra o tempo, contra a
crise, contra o esquecimento e contra a extinção do próprio ofício, são
feirantes em espaços fechados, teimosos nas suas paixões.
Estas atafulhadas lojas são como
um daqueles livros realmente bons, que se lê e relê, e por cada passagem
descobrem-se sempre ideias e objectos novos. Devem ser dos poucos sítios, no
mundo inteiro, onde um rotundo e magnífico piano passa despercebido, de tantos
serem os companheiros que o rodeiam. Assim se passa nos Encantos da Freiria.
Os encantadores de lembranças
Num beco perpendicular à rua
Eduardo Coelho, está o Largo da Freiria, prazenteiro, em plena Baixa coimbrã. É
uma placa pintada a letras verdes que anuncia um dos quatro orfanatos dos
objectos perdidos da cidade. Depois de passarmos pelo ilustre galo que nos dá
as boas vindas, lá dentro é um frenesim: livros bronzeados pelo tempo,
brinquedos de latão, um gramofone digno de um deus de tão grande, ampulhetas,
frascos de xarope, cristais, loiças, bonecas de porcelana extasiadas, tão
deslumbradas connosco como nós com elas. Os sempiternos vinis. O gestor desta
casa é Luís Fernandes, proprietário há dezasseis anos. Afiança que, na área das
antiguidades, é preciso ter-se, acima de tudo, uma sensibilidade exacerbada
“nós temos que ver o que os outros não vêm” e exemplifica: “até uma pedra gira,
as pessoas dão-lhe pontapés e há quem a ache
giríssima”. Quando fala da sua
classe assume: “nós somos restauradores de memória – e isso está comigo, eu
procuro sempre que nada vá para o lixo – dá-me um prazer muito grande beber um
café numa chávena de há cinquenta anos”. Pois também há uma dupla valência, a
do restauro, no que toca às coisas antigas.
cKoisas Antigas pousa numa morada
famosa: em plena Rua Sá da Bandeira está a loja bipartida de Armando Oliveira.
Atarefado mas feliz, pois falta de tempo traduz bom negócio, declara
sorridente: “isto aqui é uma guerra”. Depois do habitual regateio por uma
efígie de Santo António (em que pelo meio, após ceder no preço diz que “esta
loja também é para fazer as pessoas felizes”) confirma regalado: “já tenho
dinheiro para o almoço”. A loja, como o proprietário, expõe as coisas mais
simples, úteis e belas, mais de dia-a-dia que de colecção. Como o mostrador do
lado esquerdo da entrada, recheado de banda desenhada (que vai até às edições
brasileiros do Urtigão), as pilhas de pratos à direita, o pote de moedinhas do
mundo, os conjuntos de rechonchudos budas e os jogos da Major, como o Risco ou
o Paga e Cala.
Na segunda parte da loja, em
estilo de garagem, estreita e com um benevolente pé direito está outra parte do
desarrumado recheio. Logo pela esquerda um jeitoso e cansado móvel de gavetas
abertas, de que saem, como línguas, vários títulos de livros. As paredes, quase
a cair em cima de nós apresentam de tudo: um cavalo de baloiço de madeira,
regadores de latão, muitos candeeiros, cestinhos de vime, mais brinquedos,
chaleiras, quadros – num um farol distante, noutro um casal embriagado dançante
– telefones, um cinto de balas e até um par de barbatanas. Pois se é difícil
erguer paredes tão altas, não menos hercúlea é a tarefa de empilhar tanta peça
na vertical, até ao tecto.
Do bricabraque à arte sacra
Passando para o subterrâneo, no
piso -1 do centro comercial Mayflower está a loja de Manuel Barata, Antiguidades
Mayflower. Por dentro tudo tem aprumo. Ao contrário das lojas anteriores, o
espólio deste antiquário destaca os produtos de colecção. Todas as peças
pousam, vaidosas, em formidáveis móveis de vitrinas luzentes. Num desses, estão
os encaracolados relógios de pulso de mostradores e braceletes extravagantes. A
dar para o corredor do centro comercial estão enfileiradas, como num exército,
canetas e lapiseiras enobrecidas pela idade; por cima, as
máquinas fotográficas, Zenit,
Pentax ou Kodak. Pendurado do tecto está um formoso painel, cor de areia, um
tapete goblan onde lutam, de sabres, dois jovens persas. Manuel Barata
categoriza: “noventa porcento minha clientela são médicos ou advogados e
pessoas com outras licenciaturas”.
A fazer o centro da loja está um
altaneiro bandolim da Turquia, bem acompanhado por conjuntos de chá, em
casquilha, garrafas de whisky, insectos cristalizados em resina, caixinhas de
cigarros em prata, expostas num tabuleiro, cheio de outras pratas, todas juntas
até parecem ter menos valor. Doutro lado, notas russas, desvalorizadas após a
revolução de Outubro. Uns binóculos que parecem ter vivido as mais penosas
guerras e, por fim, um magnífico relógio suíço de madeira, com um soldado de
clarinete a enviar alvoradas de hora em hora. Se somássemos os anos de todas as
peças com certeza voltaríamos ao início dos tempos.
Finalmente, Fausto Carvalho
Antiguidades, loja situada no Arnado. Repara-se de imediato, pelo perfume
emadeirado que aqui, também se faz restauro. Nota-se ainda que todos os
objectos têm o sublime toque da manufactura. Do tamanho de um salão, a loja
recebe-nos com um tosco alambique. Há quadros originais, pintados a óleo e a
pastel e muitas peças de arte sacra. Da parede direita está um brasão de armas
completo, a segurar um conjunto de esgrima. A ocupar parte da sala está uma
rica mesa de jantar, vergada por vários conjuntos de loiças.
Depois de passar o enorme
cadeirão que também se mostra à entrada, que nos assombra pelas pinturas à mão,
está um simples tocador e por fim um generoso mostrador, encabeçado por vários
tipos de candeias de azeite. Para quem é novo são pedaços de cobre
irreconhecíveis. Há ainda bengalas, cabeceiras de cama de madeira rendilhada e
estofos em carmim. Duma vista só parece-nos que ainda há muito mais para ver do
que está à mostra. Adiante, no sul da sala, está uma divisão, metade
envidraçada, onde se pode ver a “oficina” de restauro da loja. A marcar o meio
da nobre superfície está pousado, num discreto banco sem costas, a Apologia de
Sócrates.
Fausto Carvalho já tem 25 anos de
experiência de antiguidades. Diz que a loja não está especializada em nenhum
tipo de material, preferindo “tudo o que seja antigo; é o que gosto”, remata.
Para além de proprietário é ainda restaurador, bem como estofador – tem, claro,
uma equipe que o ajuda. O negócio que começou por palpitação familiar
ressente-se agora, em dias de aperto, “desde que o FMI veio para cá, notou-se
logo, entram menos pessoas”.
Duas crises para os antiquários
Num ofício que torna estes
negociadores metade consumidor, metade vendedor, os dias que correm são
duplamente árduos. Apesar de na oferta haver sobeja por que, como diz Armando
Oliveira “a actual crise potencia de forma exponencial a venda de artigos”, já
que “as pessoas vendem os seus bens para suprir as suas necessidades mais
ínfimas, como comprar pão”; por outro, no acto da revenda os clientes de Manuel
Barata quase que desapareceram, “parece que morreram, estou a vender dez por cento
daquilo que vendia há quatro anos”. Assim se recorrem a actos extremos, mais
uma vez de forma bilateral. “É preciso ter extrema cautela na compra dos
artigos, conhecer a sua proveniência, se são verdadeiros e não provém de
ilegalidades”, revela preocupado Armando Oliveira. Já para combater a
precariedade nas vendas, que este mês somou apenas 100 euros rentáveis nas Antiguidades
Mayflower, Manuel Barata recorreu a algo inédito neste género de comércio: “pus
na montra um anúncio de 20 por cento de desconto. Durante os quarenta anos de
antiquário nunca fiz promoções, a gente faz um desconto, mas promover através
de descontos nunca fazemos”.
Todavia, tal como o produto que
vendem, estes marcos da intemporalidade resistem. Todos os dias há mais
regateio por parte da clientela. Como refere Luís Fernandes “o regateio faz
parte da cultura portuguesa”.
Na verdade, é verificável uma
paixão implacável, que raramente se encontra hoje em dia, por parte destes
homens. Assim reitera o encantador da Freiria: “eu gosto de tudo o que é arte,
gosto de tudo indiscriminadamente; sou capaz de ir a uma sucata e ver um ferro
giro, muito velho e compro; tenho muita dificuldade em disciplinar o meu
gosto”. Mas, mais do que isso, há um profundo sentido comunitário, conta Luís
Fernandes “as pessoas socorrem-se a estas casas, para entrarem aqui e contarem
a sua vida, talvez por serem casas de memória, as pessoas vêm, dão uma volta e
param e conversam”.
O mesmo acontece com Armando
Oliveira, depois de questionado sobre o produto mais barato que tem na loja:
“alguns são oferecidos, gratuitos, ainda no Natal pus uma banca lá fora com
livros para dar”. Assim se despreocupa das austeridades, como quando uma
senhora lhe pergunta
o preço de uma porcelana nacional
e Armando Oliveira responde jovial: “muitas vezes são os clientes que fazem os
preços - sabe que eu já sou rico”, e depois uma larga risada.
Quando confrontados com previsões
do futuro tremem, todos receiam o porvir. Se Manuel Barata anuncia o
encerramento para este ano, caso as coisas assim continuem, Luís Fernandes, num
misto de conformação e súplica reduz: “se puder continuar, continuarei, senão
terei que optar por outra coisa qualquer”. Fausto Carvalho, em seu turno,
resume, pois afinal enquanto houver trabalho “é reduzir despesas e trabalhar
mais”. “
Ana Filipa Magalhães
Sem comentários:
Enviar um comentário