sexta-feira, 10 de outubro de 2014

"MEMÓRIAS EM FEIRAS DEBAIXO DE TECTO"




“MEMÓRIAS À VENDA EM FEIRAS DEBAIXO DE TECTO”



(Reportagem em final de curso de jornalismo, a envolver quatro antiquários de Coimbra, realizada por Filipa Magalhães, em 2012)


“Alessia é uma estudante italiana de Erasmus que está, de momento, perdida entre as severas estantes de uma das lojas de antiguidades de Coimbra. “De vez em quando encontro algo, outras vezes é difícil, como agora”. Diz preferir estes estabelecimentos às habituais livreiras já que as obras para além de serem “mais baratas” são “antigas”. Mas há mais para além dos vetustos títulos.
Entre o pó, a ferrugem, o encanto e as (re)lembranças, em Coimbra, são quatro homens que deslizam e fazem as lojas de antiguidades correr. Correr contra tudo, contra o tempo, contra a crise, contra o esquecimento e contra a extinção do próprio ofício, são feirantes em espaços fechados, teimosos nas suas paixões.
Estas atafulhadas lojas são como um daqueles livros realmente bons, que se lê e relê, e por cada passagem descobrem-se sempre ideias e objectos novos. Devem ser dos poucos sítios, no mundo inteiro, onde um rotundo e magnífico piano passa despercebido, de tantos serem os companheiros que o rodeiam. Assim se passa nos Encantos da Freiria.

Os encantadores de lembranças

Num beco perpendicular à rua Eduardo Coelho, está o Largo da Freiria, prazenteiro, em plena Baixa coimbrã. É uma placa pintada a letras verdes que anuncia um dos quatro orfanatos dos objectos perdidos da cidade. Depois de passarmos pelo ilustre galo que nos dá as boas vindas, lá dentro é um frenesim: livros bronzeados pelo tempo, brinquedos de latão, um gramofone digno de um deus de tão grande, ampulhetas, frascos de xarope, cristais, loiças, bonecas de porcelana extasiadas, tão deslumbradas connosco como nós com elas. Os sempiternos vinis. O gestor desta casa é Luís Fernandes, proprietário há dezasseis anos. Afiança que, na área das antiguidades, é preciso ter-se, acima de tudo, uma sensibilidade exacerbada “nós temos que ver o que os outros não vêm” e exemplifica: “até uma pedra gira, as pessoas dão-lhe pontapés e há quem a ache
giríssima”. Quando fala da sua classe assume: “nós somos restauradores de memória – e isso está comigo, eu procuro sempre que nada vá para o lixo – dá-me um prazer muito grande beber um café numa chávena de há cinquenta anos”. Pois também há uma dupla valência, a do restauro, no que toca às coisas antigas.

cKoisas Antigas pousa numa morada famosa: em plena Rua Sá da Bandeira está a loja bipartida de Armando Oliveira. Atarefado mas feliz, pois falta de tempo traduz bom negócio, declara sorridente: “isto aqui é uma guerra”. Depois do habitual regateio por uma efígie de Santo António (em que pelo meio, após ceder no preço diz que “esta loja também é para fazer as pessoas felizes”) confirma regalado: “já tenho dinheiro para o almoço”. A loja, como o proprietário, expõe as coisas mais simples, úteis e belas, mais de dia-a-dia que de colecção. Como o mostrador do lado esquerdo da entrada, recheado de banda desenhada (que vai até às edições brasileiros do Urtigão), as pilhas de pratos à direita, o pote de moedinhas do mundo, os conjuntos de rechonchudos budas e os jogos da Major, como o Risco ou o Paga e Cala.
Na segunda parte da loja, em estilo de garagem, estreita e com um benevolente pé direito está outra parte do desarrumado recheio. Logo pela esquerda um jeitoso e cansado móvel de gavetas abertas, de que saem, como línguas, vários títulos de livros. As paredes, quase a cair em cima de nós apresentam de tudo: um cavalo de baloiço de madeira, regadores de latão, muitos candeeiros, cestinhos de vime, mais brinquedos, chaleiras, quadros – num um farol distante, noutro um casal embriagado dançante – telefones, um cinto de balas e até um par de barbatanas. Pois se é difícil erguer paredes tão altas, não menos hercúlea é a tarefa de empilhar tanta peça na vertical, até ao tecto.

Do bricabraque à arte sacra

Passando para o subterrâneo, no piso -1 do centro comercial Mayflower está a loja de Manuel Barata, Antiguidades Mayflower. Por dentro tudo tem aprumo. Ao contrário das lojas anteriores, o espólio deste antiquário destaca os produtos de colecção. Todas as peças pousam, vaidosas, em formidáveis móveis de vitrinas luzentes. Num desses, estão os encaracolados relógios de pulso de mostradores e braceletes extravagantes. A dar para o corredor do centro comercial estão enfileiradas, como num exército, canetas e lapiseiras enobrecidas pela idade; por cima, as
máquinas fotográficas, Zenit, Pentax ou Kodak. Pendurado do tecto está um formoso painel, cor de areia, um tapete goblan onde lutam, de sabres, dois jovens persas. Manuel Barata categoriza: “noventa porcento minha clientela são médicos ou advogados e pessoas com outras licenciaturas”.
A fazer o centro da loja está um altaneiro bandolim da Turquia, bem acompanhado por conjuntos de chá, em casquilha, garrafas de whisky, insectos cristalizados em resina, caixinhas de cigarros em prata, expostas num tabuleiro, cheio de outras pratas, todas juntas até parecem ter menos valor. Doutro lado, notas russas, desvalorizadas após a revolução de Outubro. Uns binóculos que parecem ter vivido as mais penosas guerras e, por fim, um magnífico relógio suíço de madeira, com um soldado de clarinete a enviar alvoradas de hora em hora. Se somássemos os anos de todas as peças com certeza voltaríamos ao início dos tempos.

Finalmente, Fausto Carvalho Antiguidades, loja situada no Arnado. Repara-se de imediato, pelo perfume emadeirado que aqui, também se faz restauro. Nota-se ainda que todos os objectos têm o sublime toque da manufactura. Do tamanho de um salão, a loja recebe-nos com um tosco alambique. Há quadros originais, pintados a óleo e a pastel e muitas peças de arte sacra. Da parede direita está um brasão de armas completo, a segurar um conjunto de esgrima. A ocupar parte da sala está uma rica mesa de jantar, vergada por vários conjuntos de loiças.
Depois de passar o enorme cadeirão que também se mostra à entrada, que nos assombra pelas pinturas à mão, está um simples tocador e por fim um generoso mostrador, encabeçado por vários tipos de candeias de azeite. Para quem é novo são pedaços de cobre irreconhecíveis. Há ainda bengalas, cabeceiras de cama de madeira rendilhada e estofos em carmim. Duma vista só parece-nos que ainda há muito mais para ver do que está à mostra. Adiante, no sul da sala, está uma divisão, metade envidraçada, onde se pode ver a “oficina” de restauro da loja. A marcar o meio da nobre superfície está pousado, num discreto banco sem costas, a Apologia de Sócrates.
Fausto Carvalho já tem 25 anos de experiência de antiguidades. Diz que a loja não está especializada em nenhum tipo de material, preferindo “tudo o que seja antigo; é o que gosto”, remata. Para além de proprietário é ainda restaurador, bem como estofador – tem, claro, uma equipe que o ajuda. O negócio que começou por palpitação familiar ressente-se agora, em dias de aperto, “desde que o FMI veio para cá, notou-se logo, entram menos pessoas”.

Duas crises para os antiquários

Num ofício que torna estes negociadores metade consumidor, metade vendedor, os dias que correm são duplamente árduos. Apesar de na oferta haver sobeja por que, como diz Armando Oliveira “a actual crise potencia de forma exponencial a venda de artigos”, já que “as pessoas vendem os seus bens para suprir as suas necessidades mais ínfimas, como comprar pão”; por outro, no acto da revenda os clientes de Manuel Barata quase que desapareceram, “parece que morreram, estou a vender dez por cento daquilo que vendia há quatro anos”. Assim se recorrem a actos extremos, mais uma vez de forma bilateral. “É preciso ter extrema cautela na compra dos artigos, conhecer a sua proveniência, se são verdadeiros e não provém de ilegalidades”, revela preocupado Armando Oliveira. Já para combater a precariedade nas vendas, que este mês somou apenas 100 euros rentáveis nas Antiguidades Mayflower, Manuel Barata recorreu a algo inédito neste género de comércio: “pus na montra um anúncio de 20 por cento de desconto. Durante os quarenta anos de antiquário nunca fiz promoções, a gente faz um desconto, mas promover através de descontos nunca fazemos”.
Todavia, tal como o produto que vendem, estes marcos da intemporalidade resistem. Todos os dias há mais regateio por parte da clientela. Como refere Luís Fernandes “o regateio faz parte da cultura portuguesa”.
Na verdade, é verificável uma paixão implacável, que raramente se encontra hoje em dia, por parte destes homens. Assim reitera o encantador da Freiria: “eu gosto de tudo o que é arte, gosto de tudo indiscriminadamente; sou capaz de ir a uma sucata e ver um ferro giro, muito velho e compro; tenho muita dificuldade em disciplinar o meu gosto”. Mas, mais do que isso, há um profundo sentido comunitário, conta Luís Fernandes “as pessoas socorrem-se a estas casas, para entrarem aqui e contarem a sua vida, talvez por serem casas de memória, as pessoas vêm, dão uma volta e param e conversam”.
O mesmo acontece com Armando Oliveira, depois de questionado sobre o produto mais barato que tem na loja: “alguns são oferecidos, gratuitos, ainda no Natal pus uma banca lá fora com livros para dar”. Assim se despreocupa das austeridades, como quando uma senhora lhe pergunta
o preço de uma porcelana nacional e Armando Oliveira responde jovial: “muitas vezes são os clientes que fazem os preços - sabe que eu já sou rico”, e depois uma larga risada.
Quando confrontados com previsões do futuro tremem, todos receiam o porvir. Se Manuel Barata anuncia o encerramento para este ano, caso as coisas assim continuem, Luís Fernandes, num misto de conformação e súplica reduz: “se puder continuar, continuarei, senão terei que optar por outra coisa qualquer”. Fausto Carvalho, em seu turno, resume, pois afinal enquanto houver trabalho “é reduzir despesas e trabalhar mais”. “

Ana Filipa Magalhães


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