Tem um ar angélico e apático. Por ser simples
e directa, faz recordar um lago de águas paradas que só se movimenta quando o
vento, em rajada, se lembra de soprar. A tristeza no seu rosto é patente até
pelos mais distraídos e que nunca se dignam olhar alguém que, na rua, luta por
uma dignidade difícil de manter neste oceano de sobrevivência. Só quem, como
eu, conhece a Sónia Margarida, que vende bolos de Ançã junto à Loja do Cidadão,
percebe e pode imaginar o provável turbilhão de emoções que se agitam no seu
interior.
Já lá vai o princípio dos anos de 1980, com
menos de meia dúzia de anos, era a Sónia uma criança tímida, insegura
e cheia de medos que entraram na família pelo seu pai, recentemente falecido, cuja
memória ainda inunda os olhos da filha porque
pai é pai, mesmo que não mereça ser. Onde quer que esteja o progenitor da
Sónia, que a terra lhe seja leve e que Deus o mantenha, que não faz cá falta, e
não o chame para o nosso meio –que a acreditar nas filosofias espírita e budista,
inevitavelmente, a sua alma voltará em busca da redenção, da absolvição e da
purificação. Hoje quando se fala em violência doméstica não se cogita o pânico que
foi a vivência diária da Sónia e da sua mãe, Cândida, junto ao Largo da Sé
Velha. Bem sei que não fica bem falar de quem já nos deixou e mais que certo já
foi julgado e pagou pela infelicidade causada aos mais próximos mas, porque a
Sónia e a sua progenitora são sobreviventes de um campo de tortura física e
psicológica e de um calculado terror e destruição, com uma admiração
desmesurada por elas, não posso deixar de rememorar a suas vidas de sofrimento.
Sem receber qualquer subsídio, com o
companheiro, o Paulo, desempregado, e dois filhos a estudar, a Sónia, tem a
sorte de ser acompanhada por uma mãe-coragem,
a Cândida, que, apesar de toda a sua existência de padecimento, ampara e cuida
da filha e dos netos com um incomensurável e indescritível amor. Esta protectora,
como símbolo de bravura e abnegação, merecia ser condecorada. Esta mulher de
arrojo, para exemplo de tantos que se
lamentam por isto e aquilo, que já fez de tudo e apanhou a esmo, nunca se queixou. Mesmo a
ganhar pouco, continua sempre em frente e protege a Sónia dos espinhos que a
miséria tece. Por isso mesmo se entende que, apesar de algumas limitações e
erros de percurso da filha, continue a ser a sua guia material e espiritual e lhe
indique o caminho certo para a obrigação de ser boa madre.
A Sónia já fez de tudo, desde limpezas até
vender pinhoadas na rua, para não submergir e tentar equilibrar uma família que
tinha tudo para não dar certo, seguida de perto por Cândida, faz do esforço a
sua luz. Há uns tempos lembrou-se de que, em criança, ia com a avó vender uns
especiais bolos de Ançã para a porta do antigo Hospital da Universidade, na
Alta, no início de 1980. Agora, levanta-se todos os dias às 5h00 da matina para
conseguir estar ao romper da aurora junto à Loja do Cidadão. Com enfase
declara: “com muito amealhar de
sacrifício, já consegui comprar um carrinho usado para o Paulo, o meu marido,
proximamente vender castanhas aqui no Largo das Olarias. A vida está correr e a
sorrir para nós!”
Para ajudar esta família a viver com decência,
vamos provar o delicioso bolo de Ançã que a Sónia, este exemplo de resistência,
vende junto à Loja do Cidadão?
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